quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Clichet que vale o que cobra

Antecede uma invasão. Um galpão onde estão guardados mil e uma faces de uma história de um grupo de viajantes, desses que não viajam por países, mas pelo tempo em que foram amigos. Já sobraram por aí mil e uma lembranças narradas efusivamente, cujo ardor das palavras reconstituem os sons e as formas da graça que fazem rir a qualquer espectador numa verdadeira história de espertalhões que antagonizam com mafiosos de outra safra, malvados, os da rua de cima. Muito já se passou e a trama faz força para seguir ao seu clímax. Por isso, dispostos a dissolver o suco que jorra da amizade, os antagonistas da rua de cima procuram o elo mais fraco da corrente, aquele disposto a trair seus camaradas. Ele é pobre, ao contrário dos amigos, e está enterrado em dívidas. Triste, miserável, quase sem-teto. Ele faz a guarda das mil e uma faces da história futura, como se por um erro de juízo dos amigos que sempre o consideraram forte e fiel. Sofre por causa de um fraco por bebidas de alto valor e certa raridade; risco no jogo; toda a sorte de divertimento ilustrado, à moda dandi, entretenimento de cultivo. Os mafiosos o compram aí, fazendo com que deixem que passem sem luta ou alarde, conseguindo acesso ao galpão. Eles entram.

“Entraram, moçada.”

Por fim ele aparece ao lado dos amigos vitoriosos, sorvendo sua cerveja de 300 pratas a garrafa, diante dos olhos incrédulos dos mafiosos.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Folha nossa

Tenho andado meio à moda serviço público por aqui. E estou criando laços de amizade

que abraçam a força algumas sugestões de Denise Bottman, tropeça na cabeça de Bonifácio de Andrada e toma, ou tomaria uma cerveja com os irmãos Bocchini.


Houve um tempo, e não exatamente long time ago, que um ambiente digital se dispôs à paródia. Lino (redator-chefe da revista Trip) e seu irmão, Mário (Mário?) montaram um site batizado com o nome Falha de São Paulo. Piada feita, a Folha de São Paulo moveu uma ação contra a Falha.

Mover uma ação contra a Falha, em geral, teria como pressuposto uma forma qualquer de disciplina do corpo visando a correção do espírito, ou mesmo algum tipo de dispositivo pedagógico que reproduz ou inventa uma forma de ordem. Lamentavelmente não é disso que se trata. Como o site se dispunha a fazer paródia, buliu de perto com a logomarca da Folha, que fez passar a piada adiante, tornando-se ela a própria Falha. Queixou-se na justiça de violação dos direitos sobre a marca. Os irmãos Bocchini fizeram sua defesa, com a qual estou fechado. Mas gostaria de ir além, pois há algo que me incomodou.

No processo, disponível no site http://desculpeanossafalha.com.br/ , a Falha, digo, a Folha reclama de danos morais e, não suficiente, recorre à seguinte locução: uso indevido do conteúdo do jornal. Em primeiro lugar, gostaria de saber quais danos morais, e a quem a paródia produziu e em que medida a Folha de São Paulo, ainda que sem parodiar - o que não é verdade; parodia - não faz o mesmo, exatamente porque o fator político da liberdade de expressão não é outro senão o de causar danos morais importantes. Afinal, publicar charges de políticos arranham sua imagem pública, assim como colunistas como Eliane Cantenhêdee Clóvis Rossi não economizam no verbo quando alguém lhe é desafeto ou alvo. E não deveriam, ainda que ache a leitura do que ambos escrevem um saco. A liberdade de expressão é importante porque lesa. E o papel da paródia numa democracia moderna passeia por aí. Tavinho sabe disso muito bem.


Mas o incômodo maior participa da noção de mau uso do conteúdo, pois aí teríamos um universo de considerações a fazer. Imagine-se produzindo uma pesquisa documental sobre as práticas de jornalismo no Brasil contemporâneo. Você escreve uma tese sobre comunicação, capital político e jornalismo e, a partir disto, mostra como a Folha de São Paulo alia ao lay out colorido a uma forma de oportunismo semiótico. Além disso, descobre como o oportunismo do veículo colaborou para se constituir uma relação de aparelhamento do espaço público e a demolição de projetos coletivos por via de ação sistemática contra iniciativas civis de pequeno e médio porte, apoiando a forma de centralização executiva que é marca do país, seu próprio desenho político-institucional. Você publica a tese na qual encontraríamos, além de outras coisas, a fotocópia de algumas páginas do jornal, com manchetes, etc. A Folha considera ser uma Falha do pesquisador chegar a tais conclusões e reclama ser este uso indevido do conteúdo, e não obstante traz em suas páginas a exata logomarca do diário.


Afinal de contas, o que é "uso indevido do conteúdo" de um jornal? E o que fazer, a quem devo processar pelo "uso indevido do conteúdo" estatístico, conceitual e jurídico que a Folha de São Paulo, e o jornalismo em geral pratica diariamente? Ainda faço isso, quero dizer, pego uma matéria "x" que mostra como um evento é determinado por duas variáveis - método utilizado à exaustão pelo jornalismo em geral -, o que estatisticamente é mais que impossível. É uma Falha. Parece-me mais que o erro dos Bocchini foi simplesmente o de terem deixado sua paródia por demais evidente.



Tavinho tem calos nos pés.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Autorização

No ano passado, o deputado do PSDB de Minas Gerais, que responde pelo nome de Bonifácio de Andrada, encaminhou o projeto de lei 7913/10, que carrega consigo a brilhante idéia de que as livrarias não podem se recusar a vender nenhum livro de qualquer autor. E caso venham a fazê-lo, devem se reportar à Câmara Brasileira do Livro (CBL), relatório este endereçados ao editor e ao autor da obra em questão. A reportagem que faz emergir esta notícia é do Estadão de hoje, 13 de janeiro de 2011. O projeto de lei é de 17 de novembro de 2010. Bonifácio de Andrada.




A redação do projeto de lei, já disponível no site da Câmara dos Deputados (http://www.camara.gov.br/sileg/integras/818871.pdf) sugere que 1) a mesma, como adendo à lei 10.753 opere em favor da livre circulação da produção intelectual nacional. Disso segue a afirmação de que 2), no caso de uma se livraria recusar em oferecer um determinado livro, deve reportar-se à CBL como exposto acima. Somado a isto, segue que 3) toda livraria será protegida pelo Poder Público, o que permitiria que o mesmo cometa este abuso de interferência muito semelhante à forma de distribuição de impressos do século XIX.




A idéia torpe de Andrada - ou de seu ghost writer, vá lá - é que as livrarias não são meros negócios, pois correspondem a uma atividade indispensável para a vida cultural nacional. Comentar esta verdadeira freada de bicicleta que é este projeto de lei permite que algumas coisas possam vir à baila. A primeira delas é a de uma legislação que não compreende o mercado livreiro em nenhum nível, principalmente no que diz respeito de ser, sim, um mercado. Paga-se impostos, e muitos, nesta atividade. Legislar uma atividade econômica alienando-a de sua própria atividade é patologia bacharel. Mas o mais bizarro é que além de serem contribuintes por comercializarem uma mercadoria depreciada no país, o ilustre deputado almeja que os livreiros do país se resignem a acumular às tarefas diárias o serviço de bibliotecário entendido como funcionário público, redigindo relatórios nos quais constem razões de recusa de uma mercadoria.


A produção agrícola é parte fundamental, para não dizer fundante de qualquer cultura. É daí que vem a palavra. Assim, se um feirante se recusar a vender a batata de um fornecedor porque a espécie vegetal que ele oferece não tem saída, ou porque é cara, ou seja o que for, o feirante precisaria escrever ao Ministério da Agricultura, ou órgão que o valha.



A disposição de obras produzidas no país é papel tanto de livrarias como de bibliotecas - cabendo a ressalva de que o tipo de política pública para o qual mira o deputado não é compatível com nenhuma das duas. Mas fundamentalmente, bibliotecas públicas que, em geral, cumprem esse papel mal e porcamente - como a maior parte das livrarias, por sinal. Afinal, sem a recusa de exemplares, colocar livros em qual espaço? Como constituir um acervo? Mesmo a Fundação Biblioteca Nacional tem um espaço tímido para as funções que promove - além do fato de eu não conhecer nenhuma biblioteca pública que não seja setorial, que não promova descarte de exemplares por economia de espaço; e ainda assim, todas muito maiores que as livrarias que conheço.



O projeto de lei ignora a difusão digital do livro - que oferece riscos ao comércio livreiro, como a queda de liquidez do mesmo; ignora a disparidade entre responsabilidades fiscais e exercício do comércio nas pequenas livrarias; a complexidade da distribuição de livros das editoras pequenas e das editoras universitárias, nunca contempladas com uma medida administrativa razoável que impactasse no preço do livro impresso - ainda que se entenda haver outras prioridades na gestão de infra-estrutura nacional.
A bem da verdade, o presente projeto de lei simplesmente ignora.



Seria muito mais interessante que os livreiros conhecessem e cultivassem interesse pelo material que vendem; que soubessem conversar; que soubessem receber e indicar. Que conhecessem seu ofício. Desejo o mesmo aos deputados, tremendamente deslocados, crianças soltas no mundo, bebês em tiroteio.



Segue daqui um recado amigo, ou no mínimo irônico:



Caro Bonifácio de Andrada;



Para desfilar suas frustrações como autor recusado, e de forma tal que faça da frustração uma atividade pública, escreva um blog, e não um projeto de lei. Just like me.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Durante a seca ou na iminência do inverno



Acho que foi lendo Bruce Chatwin, o migrante clandestino da seara alheia, escritor de O Vice-Rei de Uidá, Utz e Na Patagônia... foi lendo Chatwin, quando figura do escritor de O rastro dos cantos. Todos estes romances tem outros títulos, é bem verdade, e sua tradução embora aqui o seja suficientemente. Na verdade, Utz é como tal, ainda que o sentido escorregue pela língua logo mais, quando digo algo sobre Utz. Afinal, a tradução aparece somente quando acontece. E agora traduzo minha viagem, mais uma, e minhas viagens, num princípio acumulativo que me permite afirmar, ao contrário da simplicidade elegante dos informantes de Chatwin, de que não basta o nomadismo sem o comércio das coisas. É nele, como modo de vida, que o peso escoa.


O rastro dos cantos é um elogio do nomadismo que nenhum pensador contemporâneo e trôpego formularia, pois apresenta aquilo que o próprio Chatwin desenvolveu numa medida menor, porque biográfica: recusar um endereço. Há muitos nomadismos em voga que formulam princípios de uma certa beleza sem custos, ou que todos os custos estariam atrelados a uma forma qualquer de desbunde anarquista, anti-estatizante. Mas não ficar tem um custo próprio, me parece, e demanda certa ciência; digo, certa cultura.


Estou de mudança. Levo livros mais do que os móveis, ainda que mobilidade seja igualmente uma marca do papel encadernado. Mas mais que livros, os mesmos são a marca de minha estadia, de meus tempos diversos e do espaço que ocupam, cujo efeito sanfona é tudo menos regular. Neste jogo, no pormenor destacado, os livros operam reminiscências fortes, o que fiz da vida, com o tempo. Traduzindo, o que fiz com meu dinheiro. Como conquistei e como o fiz circular logo mais, me fazendo desconfiar de que sou, homeopaticamente meu próprio financiador, círculo a ser fechado quando – e se – eu publicar meu primeiro livro. Sem marcas de qualquer exatidão ou movimento certeiro, a mudança tão elogiada pela sociologia local, que se estende por toda a América Latina – isto é, até Paris – é minha forma de permanência. Empacotar, desempacotar, cuja freqüência é sempre proporcional ao tamanho do pacote. Viagens solitárias, para fins de curto prazo, pouca bagagem. Longas viagens, minha vida inteira. E no entanto, sedentário.


O nômade é o que vende, é o que se desfaz e, para fins de contato, não se esquece. Sabe que vendeu, sabe que passou, e esta medida mnemotécnica é uma artimanha dos caminhos. Não é meu caso. Lembrar me ensina muito pouco, porque a coisa está na busca de um bom lugar, e não do melhor caminho para seguir. Não reconheço nenhum nomadismo por aqui, não tenho conhecidos nômades. Minha casa vai nas costas. O cheiro do endereço segue comigo.

Tudo isto escrito, exatamente desta forma, porque assisti a Le Concert e, supostamente o motor de ambas as histórias, é o mesmo: o peso que se carrega com a mudança.