sexta-feira, 29 de julho de 2011

Dois poloneses soltos no mundo




Ando me dedicando aos trobriandeses. E um bocado. Não aos que, hoje, estariam reclamando sua posição geográfica aliada a alguma forma de identidade social, cultural, ontológica, etológica - ou simplesmente, sua sobrevivência econômica. É uma dedicação trobriandesa àquele que, de alguma forma inventou esse negócio canônico de dizer sobre os outros povos na forma de “juntos somos um” sistematicamente. O sistema, os massim das ilhas trobriand, os que fazem kula, as personagens de Bronislaw Kasper Malinowski, cânone da variação etnográfica do relato. Este sujeito faz, via de regra, um par imperfeito da prosa polonesa com Józef Teodor Nalecz Korzeniowski. Ambos migrados, envoltos na figuração mezzo britânica, mezzo alienígena das formas abruptas do mar, ruminaram um inglês lento e cuidadoso, que trabalha numa crescente própria à inconstância marinha, esta alma selvagem ou, no mínimo, pagã, o que dá no mesmo. Ou quase. Desconfio, porém, que as semelhanças cessem por aí. Afinal, entre marinheiros mercantes e matemáticos há um mar. E não necessariamente o pacífico. Explico.
Ainda que seja incontestavelmente mais conhecido como antropólogo, campo no qual de fato se destacou, Malinowski fora matemático, como os interessados bem sabem, e que num surto de mal-estares fortes, foi internado em hospital e, assim, dedicou-se ao livro infinito de James George Frazer, The Goulden Bough. Foi sua segunda febre, fazendo do mesmo Frazer prefacioador de sua obra maior. A despeito das viagens e territórios inóspitos, da profunda absorção da camaradagem entre viajantes que só tem a relação entre-si – ao menos até o primeiro assassinato, fuga ou ato de espionagem; e nisso, Malinowski é o espião; mas o ponto central é, a despeito de todas as semelhanças entre um e outro polonês, eu nunca sonharia com Korzienowski. Já com Malinowski...
Pois foi em um salão universitário que balbuciava à congresso científico, movimento e pessoas passando. E o sujeito estava lá, o espião da Coroa em plena Melanésia, no meio da sala. Reconheci pelos óculos, os mesmos estampados na capa da edição brasileira de Os argonautas do pacífico ocidental, ainda adornada pela curva oblíqua que sua cabeça fazia, acrescentada somente de restos brancos de cabelo e numerosas rugas e manchas de sol – quando não, quase melanomas. O terno azul marinho não combinava com a minha memória em preto e branco, típica de quem tem a memória mediada por cristais de prata muito velhos. Azul marinho, e uma camisa branca acompanhada por um sorriso franco, fácil e branco à prova do tempo. E, não sei como, nem porquê, veio falar comigo, o brasileiro, sobre sua última descoberta, que estava enveredando para uma nova frente, e que pensava que a etnologia americana era farta, fértil, e que estava muito entusiasmado com O índio no mundo dos brancos de Roberto Cardoso de Oliveira. Sorri feliz porque vi. Era a mesma edição que disponho em minha biblioteca e, como Malinowski, sempre pensei que ali tem algo a mais, a despeito da simplicidade do argumento. Taí o velho polaco que não me deixa mentir. Ali, tem.
Imagino que, se for um leitor atento, terá percebido que isso em nada tem a ver com os dois poloneses, que falta amarrar este pequeno vôo (na verdade um salto). Confesso, então, que Korzeniovski, também conhecido como Conrad, Joseph Conrad, era só um pretexto. Mas, convenhamos. É Joseph Conrad, é um baita pretexto. Ou então Malinowski é seu secret sharer que, a despeito de tudo e da possível semelhança, fugiu da mesma forma que veio: ilegal e nu.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Pro Zé Antônio, meu comuna preferido

Ainda livreiro, aporrinhava clientes como o Aviário Portella em busca de sacadas literárias que um gesso formado sociólogo jamais teria. Aviário tecia elogios ao amigo Pablo que colecionava as Cantadas Literárias da Brasiliense, enquanto ele mesmo fazia pouco caso da única coisa que eu conhecia, de fato, no ambiente literário: o trabalho de Luis Costa Lima. Na época, era enorme a plêiade de figuras que destilavam impedimentos e preferências literárias as mais variadas que, exatamente por ter que antecipar macacos velhos em suas preferências já destiladas há décadas, fazia uma corrida contra o relógio de leituras mil, chegando a ler um romance por dia. Devorei poetas para atender (sic) Carlito Azevedo; jornalismo literário por causa do Marechal Costa e Silva; li sobre samba, mulata e futebol por causa do padrinho Zílio Tosta; devorei Eisenstein e Vertov por causa de Hilda Machado e Henry Grazinoli; conheci Boris Vian junto com Paulo Camacho - com quem vim fazer um curta metragem, felizmente inédito. Há uma semana tomei coragem para começar a ler Teatro de Sabbath, traduzido pelo mesmo Rubens Figueiredo que me ajudou, por telefone, a confirmar a tradução de "rubbing the buttocks" que havia encontrado em Naven de Bateson; antes deste, li outros dois romances de Phillip Roth. Um deles, já com conhecimento de causa, o que não tem graça. O outro foi Complexo de Portnoy. Foi um começo.

É que, na verdade, nunca entendi porque é que alguém leria um romance engraçado. Aviário foi um dos primeiros a sugerir, com ênfase adequada, que poderia ser bom. Mas nunca levei a graça a sério. Não em romances. Pensava ser este o reduto das formas breves. Mas, enfim, tinha que ler algo engraçado, dado que é imperativo vender quando se é comerciante. E, no meio da enorme e vasta fauna afetiva que órbita pela livraria Berinjela até hoje, havia uma doce figura que destilava uma erudição literária monumental suficiente para calar o mais falante dos poetas, o mais matreiro dos jornalistas. Passeava com gosto e saliva por Homero, Virginia Woolf, Muriel Spark, Machado de Assis, Conrad, Roth, Euclides da Cunha, Safo, Proust, Joyce, Mirisola, como se não houvesse desnível que sua memória e prazer prodigiosos não superassem. E se eu precisava ler algo engraçado, um romance engraçado, mas respeitável – afinal, é perigoso vender livros na Berinjela -, perguntaria a Zé Antônio. O que ler, Zé? E nunca esqueci a brochada-mor em Israel que me fez gargalhar às 2 da madrugada, fazendo acordar minha esposa que dormia em um dos 4 cantos possíveis do apartamento quarta-sala que alugávamos na Praça Sarah Kubitchek, em Copacabana. Mas na mesma dica, veio a cautela. “Se vai levar esse Roth, leva um outro. Este é engraçado, mas é neste outro que a coisa acontece.”

“Mesmo, Zé? Então vou levar.”


O exemplar que ora leio de Teatro de Sabbath é o mesmo que Zé Antônio me passou em mãos, como se o vendedor fosse ele, o que me faz lembrar que cada página que leio, é uma página que foi um pouco dele. E isto é bom, porque ele fica. Mas há algo que dói demais, agora. É que cada página que eu vier a escrever, por uma razão ou por outra, é uma página a menos que ele lerá. Se há algo na morte dele que é imperdoável é o fato de eu não ter sido um redator veloz o suficiente para arrancar dele, ao menos uma vez, o sorriso de quem saboreou o prato e pôde desenhar no gesto a mais meritória das aprovações, sempre arte-finalizada com o mesmo nanquim verbal:

“Gênio.”

sábado, 23 de julho de 2011

Freakin´ jester ghost

Há quem prefira remeter a coisa toda para os vermes, para o sulco na terra aonde jogamos os corpos, fazendo fremir a putrefação. Há quem prefira fazer a coisa toda incorpórea, lamentando a alma como a forma própria da saudade, praticando a arte memorial, como se a imagem fosse um eterno epitáfio. Há quem faça a coisa diferente, e se contente em morrer e deixar que isso seja, por fim, tudo. Mas, mesmo assim, mesmo que seja assim, a coisa não encerra o jogo de cena que a morte impõe quando morrer é o tema. Vejamos coisas insuspeitas – que, na verdade, pertencem mais à fantasmagoria do ouvido. Porque, ainda que jogado por terra, há quem volte. Em meados dos anos 90, Faith no More gravou I started a joke(http://www.youtube.com/watch?v=MUTo6kSZlPI). Não suficiente, filmaram um vídeo clipe que, tal como o imagino, trata-se da aplicação do ponto de vista da audiência futura disto aqui: http://www.youtube.com/watch?v=RRNTQvXSsfA




É nestas horas é que tenho medo de fantasmas.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Flutuação, inércia e atrito zero: em quê concorda o dissenso







Sempre leio que a população indígena brasileira está morrendo, informação esta que é agravada com uma taxa de mortalidade infantil acrescida de mais de 500%. Já li que são as reservas que empobrecem e expulsam índios que já não são tanto. Li também que somos nós que os impedimos que o sejam. Índios. Trata-se do desenrolar da história do capital, trata-se do atravanco da mesma por parte da tradição caduca e romântica. Para estes, que nunca fuçaram os assuntos indígenas, salvo quando o tema é economia nacional, recomendo o silêncio. Mestres em dizer que há índios que já não são índios, parecem muito seguros em formular proposições baseados em nada, ou pior, em muito pouca coisa. Índio que veste roupa e come enlatado já não é índio. Daí, a pergunta: diante de qual tribunal essa fórmula pode ser defendida? Quem foi chamado para depôr? E, num só golpe, quase todos os indígenas mexicanos, bolivianos, peruanos, argentinos e, surpresa, brasileiros, por razões diferentes, deixam de existir. Numa só canetada, permitindo que quem quer que tenha assinado a carta de extinção passeie só, liberal e auto-definido em sua autonomia de consciência. E isto tem nome. Chama-se Reynaldo Azevedo – ou José de Alencar, cuja profundidade da ressonância poderia ir mais além. De outro lado, a figura do índio nu e entregue aos meios naturais demanda esforços nada desprezíveis para serem encontrados fora desta definição, que só preza por ela mesma. A morte das crianças está indissociavelmente conectada à destruição de reservas, sem que possamos definir que esta conexão não é exatamente adequada. A história indígena no país – daqueles que, de quando do genocídio, extermínio e exclusão foram índios por bem; e que para fins administrativos se transformam, à base da canetada, em coisa diversa como “campesino”, “favelado”, ect. – parece não ter lugar que seja seu. Nem o passado escravocrata criou um legado tão perverso quanto este, a de que o lugar institucional, e por isso histórico, de um enorme coletivo de pessoas, é o de ser o que já não é, não foi e não será jamais. Nem em nome de sua defesa. Índio fora da floresta é excluído, injustiçado, etc.. E este é o blog do Sakamoto – ou José de Alencar, cuja profundidade da ressonância poderia ir mais além. Invariavelmente, a noção de existência autônoma, e a elaboração de que índio é o que for, mesmo que não, não tem sequer valor cognitivo para o debate público. Sequer os mortos são tratados assim. Pergunte aos argentinos. Até porque, índio morto - ainda que assassinado - é antes índio do que morto ou assassinado.












Há quem diga que a foto que ilustra este desagravo é sem graça, ocidentalizada, e pouco representativa da diferença para a qual tento apontar. Já eu diria que uma reação como essa, comum e repetida, não é nada além de uma versão de C.Q.D.. Há quem diga que a diferença só importa quando ela é intolerável, ou quase isso. Pois bem. Intolerável parece ser a idéia de que alguém possa estar tão perto e, ainda assim, tão longe quanto uma kaingang estudando vestindo um suéter, tão parecida com uma colega de sala que tive na graduação e, ainda assim, não. Não o suficiente. E um abismo de alguns centímetros se abre que, ainda que à primeira vista indique uma diferença de grau, após a zona do infinitesimal, sugere ser uma diferença de natureza.












Uma kaingang, de suéter, soa à traição.