segunda-feira, 26 de março de 2012

Hiléia:Altamira; Yuto Sotozaki vai à Cotijuba I


Há um momento em que não há mais o que fazer, e pode-se lacrar o tempo com esta frase tanto por causa de seu término quanto pela exaustão das forças. Forte é o tempo em que um e outro coincidem. O dia começava a se encerrar em definitivo. Contava as horas passadas após um almoço já tardio enquanto as tiras de couro das sandálias sulcavam a pele dos calos do pé, vermelha e irritadiça, ao mesmo tempo em que o suor imposto pelo calor das ruas loteadas por mangueiras tratava minhas roupas com impiedade. Recebi, ainda assim no meio do caminho onde reencontrava o hostel, uma longa indicação daquilo que se espera de um turista, acrescendo à informação uma dose de otimismo indisfarçável – sugerindo que eu faria a pé o trajeto desde onde estava até o Mangal das Garças que, confesso, até hoje não sei como é. O que sei é que é possível encontrar uma rua cuja altura do asfalto há muito já ultrapassou as medidas da calçada. As margens da rua são valas, e a topografia pouco usual.

“É pra correr melhor a chuva” – poderiam ter dito. “É uma questão de respeito. O povo daqui não entende disso, porque já tá sufocado com os ares da cidade, mas aqui deixamos a rua correr a chuva. É melhor. Deixamos os valões em Terra Firme e Guamá, e aqui conseguimos salvar esta rua aqui. Queríamos que não jogassem lixo, é fato. Mas é melhor deixar a chuva correr em profundidade”.

O deserto em que havia me envolvido na caminhada, e que cumpria um regime solitário desde minha partida do hostel nunca me abandonou. A ausência serviu de companhia, a cidade começou a ser desenhada, e os pontos de encontro reatavam linhas outras dando luz e som às histórias de outrora, de quando dancei carimbó pela primeira vez na Casa das Onze Janelas. Festa de fim de congresso, recheada de conversas perdidas sobre a obra de Gilberto Freyre, o futuro da universidade, a cultura popular, a eleição da presidente da associação, o gosto ruim da cerveja, a comida cara, as roupas dos demais, descendo o nível de interesse até o ralo, por onde corre a água da chuva, as outras águas, e o tema das águas começa a afogar o verbo, a ponto de se eu não escrever o suficiente e exagerar na tinta, a frase borra, o texto escoa, e fim. Diluído, o texto corres sempre o risco homeopático de, apesar do efeito seguir na inexistência. E então, recomeça dissolvido num infinito d´água.

Infinito é como eu chamo o que não sei contar, ou o que não dá pra contar, ou que me afogaria pelo cansaço. Mas eu nunca havia visto as onze janelas à luz do dia, sozinho, sem a proteção dos vidros de um táxi. Se à noite a fronteira marcada pelo cenário suntuoso parecia intransponível, sob a luz do sol me pergunto quem é que invade esta fortaleza todos os dias e humilha sua imponência, que tem o tamanho de sua vulnerabilidade sensível, a mesma sensibilidade ao toque que senti só de olhar o tom ranzinza do chumbo que se comprimia num lado do céu, que desaguou. Meia hora sob marquise, o mais próximo e íntimo que me fiz do Museu de Artes, voltando para o hostel com a única finalidade de não ter mais o que fazer senão me render. Não havia mais o que fazer. Cansado no fim do dia.

Com a chuva, e a iminência da noite os percursos dentro do casarão se tornaram sensivelmente povoados. As filas de pessoas que vi na Av. Nazaré, que faziam um exame de seleção do SUS, ou coisa que o valha, também estavam por ali. Da Bahia ao rio Grande do Norte, pude cumprimentar com um só “boa noite” cada um de seus representantes quase sem saber que, sem distorção alguma são todos infalivelmente paraenses. E assim, e felizmente, e a televisão, a sala com sofás e o futebol e a conversa efêmera de todos os domingos, quando todos temos uma história em comum que, num corte seco se acaba num sem mais.

A cena se compôs muito rapidamente, com os candidatos ao redor da TV, esperando mais alguns confrades para uma refeição de rua. Todos queimados de sol, embolando os odores do abafado indisfarçável da cidade, da casa e da sala, do suor, suores antigos e os da pele, sob o signo da mesma água agressiva que oprime e nos faz resignar. Melhor não, melhor deixar correr, e corramos nós, os jogadores de futebol. Minados todos, e mais um se aproxima, o que me fez recorrer a um do you wanna sit? imediatamente. Seguido do assentimento, apertei as mãos de Yuto Sotozaki, que me disse estar no Brasil pela segunda vez, e que, apontou para o monitor de televisão, tinha jogado a Taça São Paulo de Futebol Júnior pelo Palmeiras, mas abandonou o futebol, no futebol teria que fazer só uma coisa na vida e queria fazer outras coisas, como estudar inglês. Veio a se transformar em professor que, foi como começamos uma jornada ao inferno local, precisava de um tradutor. Do inglês ao português – e uma cena para filmar. Yuto me apresentou um roteiro minúsculo que traduzi pouco depois, com o compromisso de levá-lo a uma praia extraordinária que veio a ser em Cotijuba. Por aqui o diabo não bate à porta, mas Yuto sim. Às 6:30 da manhã de uma segunda-feira.



Uma segunda-feira não me é há muitos anos. Os dias também se tornaram uma zona de repetição, um exercício entre o tédio e a paciência, um aquecimento das articulações que nunca passa do mesmo desenho. Acordar de manhã é um jogo enfadonho em que a sensação de repetição, ou pior, de um movimento sem atrito produz por fim, movimento algum, ou mesmo um movimento que não se converte em movimento. Inútil. O sabor espesso da saliva guardada entre os dentes cerrados e a língua semimorta reforça a tese, o sabor, e o tormento do ar parado ao redor. A tese, já anunciada da inutilidade marca o amargo da saliva dormida e o odor de coisas velhas traduzidas em repetição por via dos sonhos que nada mais fazem senão me situaram no absolutamente banal de uma fila de banco, por exemplo. Os dedos, os braços, os pescoço, cada uma das articulações começa o dia sem fé, recusando-se aos primeiros movimentos, servindo de uma ampulheta preguiçosa que trava a cada novo grão revelando que as dimensões não se comportam entre si, arrastando e suspendendo cada novo momento, até que finalmente abro os olhos pela primeira vez, pela segunda, pela terceira, devagar e sem saber o dia, como todo o resto, o que não sei. O futuro dura muito tempo, exatamente como deixou registrado um dos principais perturbados da história do marxismo, e esta sina tem muitos desdobramentos, todos eles movidos pela desesperança, ignorância e, com alguma felicidade, pela resignação ao tempo inflexível que insiste em não passar, ao menos não segundo a dose de obediência que se demanda de um cão. O tempo não é um cão.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Hiléia:Altamira, Gimpel, o bobo


Dentro dos meus poderes. Soa à clausura, ainda que eu estivesse em plena viagem, solto por aí, sendo que para onde eu apontasse fosse Belém eu estaria preso. Mas não é clausura. É o corpo. As ruas vazias do caminho de volta, desde o almoço com Alípio mostraram a quantidade desmedida de mangueiras, todas igualmente enormes que ornam a região central da cidade. Não por acaso, ao tentar contar uma história qualquer para um ou outro conhecido que já esteve nesta paisagem, uma história que exija reconhecer um endereço mais preciso, o chiste demanda saber se “é perto de uma mangueira”. Para todos os lados.

Tricotar entre ruas, em especial entre a avenida Nazaré e a rua José Malcher, com ambas simplesmente evacuadas surtiu o efeito de me mostrar raízes, tendo as travessas o efeito de me espalharem pela cidade possível, pondo algo de mim em circulação viva. Caso morto com estocadas descuidadas, escorreria em sangue pela corrente sangüínea logo na primeira chuva, coisa que não demoraria a acontecer; uma das duas, eu imaginei, ou ambas. O terreno da violência de Belém cultivado nos meus ouvidos desde muito antes, desde um certo atraso em vir, desde tudo o que li, e as cautelas que tanto preparam meus passeios, por fim não serviram de outra coisa senão para criar impulsos diferentes, futuros diferentes permeando as rotas e os encontros, raríssimos, que vieram a acontecer. Afinal, lá estava eu, lá estavam as ruas, lá estava o deserto de mangueiras e rotas ornamentadas por edifícios postos para pregar peças, assustar e esconderem-se de todos. Mais ninguém, e eu, com a mente vazia, e a casa do diabo. E lá estava, fantasiando minhas mortes possíveis; e começando a gostar da vida paraense e a morte que ela trazia engarrafada como um gênio maligno.



            Como cheguei até Belém de avião, e como tenho medo de voar ainda que tenha certa delícia por altitude, carreguei comigo minha vasta coleção de livros imperfeitos. Uma mochila deles que, não tardou, deixei numa casa delicadamente erguida no final do arco-íris. Nesta mochila arquivei meu estoque de leituras que teriam efeito profilático em momentos de crise – que foram vários. Assim, meus livros de René Girard, Juan Rulfo, Stanley Cavell, Eduardo Galvão e Alasdair MaCyntire me pesavam nos ombros a cada chamada de um portão de embarque lembrando ser esta uma viagem repleta de tarefas, algumas delas pouco confessáveis. Parte destas tarefas estava devidamente sinalizada pela presença, sempre heterodoxa de A morte de Matusalém de Isaac Bashvis Singer, escritor iídiche novayorkino com quem passei a travar longas jornadas de conversa e simpatia, jornadas também divididas com Amós Oz e Elias Canetti. Por toda uma zona que preza o artifício das línguas secretas, gosto de imaginar, à moda da imaginação adoentada, que ando meio judeu e, por não sê-lo sei, nos apertos de mão e símbolos dispostos na lapela, que não estou sozinho.
            A leitura dos contos de Bashevis Singer cumpria a função de toda leitura trágica ou teologicamente informada que sempre ponho no colo a cada vôo em que me sento. Uma vez dentro de um avião desejo, para fins de refreio de um ou outro faniquito, que a viagem seja a última e que ela termine na queda e na explosão que antevejo a cada vez que lembro ser minha hora de voar. Entendo que o medo seja em grande parte carregado pela antecipação de algo que, por ser contingente não pode ser antecipado. Este hiato me arremessa em uma zona infinitesimal em que o adiamento do infortúnio, do fim tantas vezes temido, transforma-se num castigo eterno, as tripas devoradas por abutres, corvos e urubus. Para sempre; a eternidade na antecipação de uma mente pobre. O mal que se busca evitar não chega jamais, até porque vir pode não ser de seu domínio. O que entendi é que para evitar o abismo, para contorná-lo me é imperativo desejá-lo enquanto for o momento de sua irrupção. Não esperar que venha, mas desejar que venha. A fenda na terra me fará saltar, diria aqui se fosse um profeta pregando no deserto.



            Voltei ao hostel na eminência de chuva forte (diria iminência, mas eminência talvez faça mais sentido) que, por força do hábito me faria parar. Não parei. Travei conferência longa sobre destinos possíveis, novos rumos cujo passeio me levou ao que acontece em crônicas ruins: detalhes pitorescos do aparelho urbano e chuva. Muita chuva. Domingo interrompido.



Alguém bate à porta. Por alguma razão, todos os contos de Bashevis Singer parecem começar assim. É assim que os ordeno, é assim que me lembro deles, é assim que eles não são. Alguém bate à porta. Porque está escuro, porque é noite, porque é inverno, porque há um incêndio, porque se está a amar. E então, alguém bate à porta – em geral é o diabo. No quarto sem janelas que já trazia marcas de acolhimento, comecei a pensar na porta. Sem janelas, uma porta. Ninguém jamais bateria àquela porta. Fechei o volume que lia, um conto em que alguém chegava até uma outra pessoa, batendo à porta mais uma vez. Não sei, na verdade. É como me lembro. Choveu de novo, mas com ímpeto e energia que só vi se repetir duas ou três vezes no percurso que viria a fazer. Dois dias depois, fiz o mesmo caminho, do quarto, subindo a escada apertada até a recepção, de forma a me espalhar na sala de TV. Choveu a mesma chuva que, impetuosa e indiscreta fez parar tudo. Na verdade, é difícil descrever um momento como esse. Uma tempestade amazônica tem uma marca indiscutível. Não é que não chova forte, de forma definitiva na cidade de Campinas. Perdem-se muros, árvores e calçamentos a cada vez que o céu pratica sua violência. Mas, ao exemplo dos passarinhos, a chuva, lá e cá, não são as mesmas. Em casa, gotas finas, de voz aguda, em meio a trovões esganiçados e repetitivos. Histeria destrutiva, pressa. Enquanto subia para ouvir a chuva no salão, e esta sensação se repetiu em cada oportunidade, o grave predominava como tom, e os golpes de vento eram feitos a punho cerrado, encerrando a questão. Os trovões não vinham em berro, mas em rumor. Tudo sob controle da chuva, enquanto o resto de nós, ou escondidos, ou escorrendo pelas travessas encarnadas.
            Obviamente que me peguei pensando. O momento patético do viajante literário que, pensativo e atrapalhado, olha para o teto, reflete e disserta. Ridículo. Escrevi em meu caderno verde:

            Tem que ver. Há uma leitura de que gosto muito – e escrevo sobre esta leitura debaixo da pior tempestade que já vi em território amazônico. E por isso mesmo que me veio à memória. Afinal, aqui, nada mais improvável do que qualquer coisa que Isaac Bashevis Singer tenha escrito. Gimpel, o bobo seria devorado e morto, ou simplesmente apodrecido. O velho manco aficcionado pela prosa do narrador, e que condena com frieza toda a poesia do mundo por causa da amizade não-contraditória que pôde nutrir com o nazismo; bom, ninguém pediria autógrafos tendo que atravessar uma chuva dessas, os livros ficariam molhados e se entregariam ao bolor da umidade posta ao sol abafado; seria um velhinho assaltado, como temia Alípio em nosso almoço; não seria. O que quero dizer é que Bashevis Singer faria suas personagens desistirem, lesos e inchados  pelo calor, desesperados ou sonolentos para aventarem qualquer cotejo ao Torah. E com isto não quero dizer que Belém é uma cidade particularmente cruel em um corte patológico. O que digo é que não há nada para uma personagem de Bashevis Singer fazer por aqui e que, talvez o melhor que fizessem fosse retornar à Val-de-Cães e, então, para a enorme casa internacional da geopolítica judia. Nesta chuva, uma coisa é certa. Nesta chuva, ninguém lê. Nesta chuva  o diabo não bate à porta.
           

terça-feira, 13 de março de 2012

Filosofia numa cacetada só, ou duas, vai, vol. 09


René Descartes
Fragmentação. Self dividido. Pessoa Fractal. Santíssima Trindade. Divíduo. Self Múltiplo. Menos que um. Todas operações de divisão desta kabbalah pitagórica que demanda como resultado qualquer número inteiro e racional que não seja 2, para prejuízo de René Descartes.

Hiléia:Altamira, ambos os três


Não creio que eu tenha conseguido esconder minha decepção um minuto sequer. Obviamente que Codorna fez o esforço gentil em dissimular, vindo a reconhecer alguma mesmice nos dias somente no fim da jornada, quando ainda estava doente. Sabendo que posso compreender perfeitamente tudo o que se passou, como pude, aqui mesmo dizer todas as coisas que competiram para o entrave, os dias repetidos de caminhada solitária não poderiam esconder outra coisa senão a impaciência de esperar. No afã de repetir no entusiasmo patético a máxima de uma viagem com fins de “dar uma força para um amigo da FUNAI”, o tempo conta num regressivo de segundos divididos ao meio em progressão aritmética em que, sabendo ter cada vez menos tempo, os segundos que passam são cada vez menores sendo ainda sim um segundo, e só. Saber que o andamento dos dias não respeita nenhum sentido métrico justo e regular não permite que da abdicação dos planos advenha necessariamente a alegria. Antecipação do malogro, é bom saber, não é malogro algum. Se por acaso fui até Altamira respondendo ao apelo de um amigo não é por ser nominalmente convocado, ainda que possa ou tenha dito que sim.

 Não o lançou sequer aos amigos que tem. Nos convocou a todos, na margem aberta de qualquer folheto de anúncio jogado ao chão. escreveu para qualquer um, pedindo aos amigos que, à moda antiga espalhassem a notícia. O que fez foi, no limite, assinar um cheque e eu, tolo vi na fortuna numerada um bilhete de amor assinado. Não tenho qualquer autoridade para demandar condecorações e festividades pelo simples fato de me mover, como faço com minhas caminhadas, e não poderia esperar uma ação militar de combate pelo simples fato de me condoer da situação de Cordorna, meu amigo que trabalha na FUNAI. A responsabilidade de viver esta viagem na clave da tragédia é minha. A grandiloqüência fez de mim um pregador de rua, um pastor sem fiéis num comício nu; o jogo de cena então, digno de pena. Desde que cheguei em Altamira vi o ponteiro da trama me acelerar, dizendo que os 50 anos futuros, a próxima geração inteira, seriam vividos em 2 ou 3 horas e, lamentavelmente, não havia contracena. Não poderia conversar com alguém aqui ao lado em meio à simulação da voz que, sussurrada deveria ser ouvida na última fileira de cadeiras. Definitivamente, uma personagem em busca de uma peça que, como que por conspiração, não será escrita.

No caso de eu acusar alguém de ser meu amigo, e por causa disso me comprometo com isso – por ter chamado de amigo, significa que me considero seu amigo também -, nada permite dizer que se trata de uma situação simétrica, ou mesmo harmônica, e certamente não é exclusiva. Entenda-se a trajetória de três estudantes de piano clássico, brilhantes o suficiente para se recluirem no Sitftung Mozarteum de Salzburg, que narra uma relação em degraus: um segue a sina de ser um gênio do piano que, no auge de sua carreira, abdica das apresentações em público e em estúdio, isolado grava suas performances mais brilhantes; um segundo admite a mediocridade e, medíocre, contenta-se em redigir uma novela de fôlego curto sobre ter parado ao meio do caminho entre o gênio e o fim; um terceiro entra em desespero porque, imune à resignação recorre a um suicídio abrupto e narcisista atingindo aquilo que, aparentemente seria um naufrágio. As coisas não são feitas à dois porque, quando enfim sós, versa-se sobre o esconderijo. Há sempre mais alguém na espreita.

Saí do apartamento de Codorna. Só. Nesta altura, Altamira não era exatamente um mistério. O apanhado aleatório de ruas que definem uma cidade que não conhecia tinha mais do que pontos cardeais, alguma história devidamente guardada. No bolso, anotada num caderno verde.

Minha impaciência por deixarmos o tempo passar lentamente por grande parte do dia já estava relativamente amortecida pela compreensão forçosa de reconhecer na enfermidade e numa paixão igualmente repentina a recomposição do triângulo obrigatório de uma relação,  de qualquer relação, o que afirma que, obrigatoriamente, um casamento é um triângulo amoroso.  À repetição dos dias anteriores fui passear. Por mais que eu tente sugerir algo mais atento do que um passeio, não fiz senão isto. Atento, indignado, grandiloqüente. Passeio. Saí com a mochila nas costas repetindo o mesmo trajeto que leva à orla de Altamira, de onde se assiste à eterna passagem do Xingu lembrando que os trens são muito curtos. Da rua sem nome de onde parti, onde Codorna mora, dobrava à esquerda na travessa Pedro Gomes. Acenava aos proprietários, tanto da loja de ferragens quanto do prédio onde estava abrigado, de uma só vez. São as mesmas pessoas, o mesmo casal. Segui para o cruzamento com a avenida Djalma Dutra, sempre atento a cada cruzamento para o que Codorna chamou de “mão chinesa”, cujo sentido não é difícil de abstrair porque não há regras para se atravessar a rua senão seguir aos poucos, um passo por vez, ocupando espaço e cedendo a extensão anterior até que, com a devida agilidade se possa atingir um novo território protegido contra bicicletas, motos e caminhonetes 4x4, a fauna do tráfego regional. Não há como dizer que o enxame de ferro articulado com gente dentro e ao redor é alguma novidade. De inédito somente a fluidez da prática constituída como costume, tradição de não obedecer ou, melhor, de não haver o que ser obedecido. Não há contradição nisso. Aqui, nenhuma. É como a vida e a morte.

_____________________________________________________________________

Não posso deixar de transparecer o medo infantil que toma conta de cada uma das frases que narro. Tudo, absolutamente tudo parece errado, ao ponto em que as palavras, redigidas no mais rigoroso silêncio soam erradas. Não é nada disso, sussurram, é um engodo, chegando por fim ao veredicto, traidor. Não sinto mais a febre da viagem, e os sinais da doença que me liquefez na volta já não acometem nenhum dos episódios anotados no caderno verde. Ainda que a continuação desta redação seja imperativa não vejo nela nenhuma razão de ser senão o mero prosseguimento. Mero prosseguimento. Mero prosseguimento. Aqui, mera interrupção porque chove, sem contradição.

_____________________________________________________________________

Espaço Cultural Francisco Melo. Porque Altamira tem o que jamais conheci, ainda que saiba ser uma marca dos solos regionais. Altamira tem um artista da cidade. Este responde pelo nome de Francisco Melo. Melo é uma figura. E como todas as figuras, obriga a quem lhe vê a decidir por detalhes e recompor o conjunto. Apontei pára a Bíblia sobre sua mesa, encadernada em verde. Sugeri ser boa leitura.

“Eu não sou filósofo, entende? Não sou estudado, não entendo muito essas coisas. Leio porque... porque tá aqui. Leio, faço minhas notas, entendo, dou um jeito. Mas não sou filósofo. Eu sento e penso. Mas o que eu queria dizer é que acho que fazemos as coisas de um jeito meio parecido... do jeito que um vulcão acontece. Porque, no centro da terra, não é bem no centro... você sabe. Mas tem ferro derretido, incandescente, que passa por onde der até chegar à superfície. Ele passa entre as fendas das placas tectônicas, passa por onde é mais fraco. Acho que agimos assim, e fazemos por onde somos mais fracos.”

sexta-feira, 9 de março de 2012

Hiléa:Altamira, no Pomme D´Or II


Tudo o que eu posso dizer a esta altura é que não é difícil antecipar, tendo em vista as grossas camadas de acontecimentos futuros sob os quais nos abrigamos quando nos sujeitamos a uma viagem. A antecipação pode ser tão precisa que eu, a esta altura da vida, ainda me permito escrever sobre isto na primeira pessoa do plural, imaginando poder implicar você, leitor em cada uma das possibilidades que eu poderia aventar. A viagem não é, se assim posso dizer o território do desconhecido para aonde saltamos com vistas no simplesmente irreconhecível. A viagem parece se justificar enquanto tal porque dela antecipamos alguma coisa, nos adiantamos de alguma forma e a felicidade está em termos nos tornado recipientes adequados para um dado contínuo de experiências. O destino e os meios empregados para viajar, o que se dispõe a fazer, a forma como se deixa guiar pelas pessoas que trava contato parecem desenhar aquilo que é o próprio sistema de crédito da viagem. Assim, voltar doente de uma viagem que contou com um período de imersão em condições mais inóspitas, mas não se adoecer em nenhuma situação de risco real durante a viagem pode ser, e no caso é uma das condições de sucesso e felicidade. Ir a um hospital após o retorno à casa e tomar algo de intravenoso pode ser aquilo que se espera, um dos objetivos para se ter viajado. E não se trata de nenhuma sorte de masoquismo, pois o mal-estar e a dor podem ser decididamente desagradáveis, mas é uma questão de lucidez, antecipação. Há coisas para as quais não estamos preparados e, ao nos prepararmos para tal acabamos nos sujeitando aos custos de viajar e, aceitando o preço que se paga admitimos que antecipar não significa ter como lidar com tudo como se fosse rotina. Antecipação não é, em hipótese alguma normalização. É assim que viajar pode ser, ao mesmo tempo previsível e extraordinário.

“Sabe, rapaz, que este plebiscito é um equívoco. Dividir o estado do Pará deste jeito, criando os estados do Tapajós e do Carajás, é um equívoco. O rio Amazonas não pode servir de fronteira. O Amazonas não é uma fronteira. É um rio que é um mar. Não se atravessa o Amazonas. Se atravessa no Amazonas. Espero que entenda isso. Ouvi muitos rapazes que, assim de sua idade jogaram no rosto das autoridades toda uma série de equívocos a respeito deste plebiscito, de como favoreceria mineradoras e usinas hidroelétricas. Entenda, rapaz, que qualquer processo decisório que entenda o Amazonas como fronteira está fadado ao fracasso. Porque, entenda, e você que está viajando irá perceber como as coisas são por aqui. Te disseram para ir a Cotijuba. Eu nunca vou a Cotijuba. Recomendo que vá mais adiante, conheça Mosqueiro. É lindo, uma delícia, com casas de veraneio maravilhosas. Não tem essa coisa toda daqui... porque eu não posso andar a pé por Belém. Velho, você sabe como é. Posso precisar andar um quarteirão que seja, coisa pouca que logo vem alguém e, bem... Mas vá a Mosqueiro. Uma beleza. Porque tem muita coisa nova acontecendo, lugares novos surgindo. Finalmente parece que o Pará está se movendo para alguma direção. Dinheiro está aparecendo depois de muito tempo, e sempre que o tivemos... nossos políticos são muito ruins. Não houve jeito. Políticos muito ruins e quando se extrai alguma coisa daqui, não fica nada. Leva-se tudo. O Pará nunca ficou com nada. Parece que estão revendo isso, mas desde a história coma borracha, a mineração, o Pará nunca fica com nada. Tivesse ficado com alguma coisa, estaria em outra situação. Mas tem coisas novas aí, com essa mudança de rumos, com os pobres comprando mais, com essas hidroelétricas. Se você vai à Altamira, pegue a estrada. Mas não vá dirigindo, porque é uma estrada muito traiçoeira. Muita gente fica presa sem ter como sair, por dias porque vai dirigir, segue apressado e mesmo na seca, é pega de surpresa pela poeira. Quando chove, é o atoleiro. Mas se faz sol, é a poeira. O carro atola do mesmo jeito. Meu filho, que é médico em Tucuruí vai dirigindo, mas até Tucuruí a estrada está boa. E a cidade está uma maravilha, depois da usina, que nem parece uma cidade amazônica. O mesmo vai acontecer com Altamira.”

No que Alípio cuspiu, discretamente meu último osso, dizendo que tinha que partir, pois conduziria o gerente do restaurante onde estávamos para um outro restaurante, o que se abrigava sob o teto de um dos inúmeros redutos da família Yamada.

Dormi com a possibilidade de que Altamira não seria mais uma cidade amazônica. Aquilo calou fundo, a idéia de que, tal como me disse Alípio, o sul do Pará eliminavaa, feliz e lentamente as cidades amazônicas. Entenda-se que não tinha idéia do que aquilo significava, mas imaginar uma situação como essa não é muito diferente da de imaginar uma cidade japonesa em plena floresta. Vale dizer que Alípio não disse nada semelhante a respeito de Tomé-Açu não ser uma cidade característica das bandas de cá. Pelo contrário, a cidade parece assentar muito bem na forma histórica de acomodação de espaços da região. Ainda assim, tudo o que pude fazer para me orientar na imagem que eu teria de Tucuruí constituía a imagem de uma cidade com ruas bem desenhadas, limpas, com ônibus seguindo seu itinerário com calam e regularidade, enquanto pessoas seguiam suas vidas em relativo silêncio e resignação, adequadas a um princípio austero de prosperidade. A negação de uma cidade amazônica, na minha cabeça e na de Yuto era, na verdade uma cidade japonesa. Para ser o que ouvi, Tucuruí precisaria ser Tomé-Açu. E isso, obviamente não poderia ser. Minha cartografia estava tomada por completo por um grande sistema de erros minuciosamente elaborado.

Alípio se levantou com dificuldade, após a longa introdução ao estado do Pará que motivou muita de sua conversa, sua forma de me fazer companhia. Tucuruí vinha bem porque se destacava das demais cidades. Menos amazônica. Quando de pé, Alípio me estendeu a mão direita, no que respondi pondo-me de pé e cumprimentando-o, grato pela conversa. Disse que partiria também, porque estava tarde e deveria voltar até o hostel a pé. Foi quando nos separamos. Alípio ficou sem reação, seu rosto se manifestava incrédulo, sua boca se contorceu em reprovação. Tinha falado com a pessoa errada, o tempo todo. Tudo o que disse depois não pode ser descrito de outra forma senão como uma linha cruzada, uma conversa confidencial entre agentes que trabalham em casos diferentes e que se encontram, por engano na mesma mesa. Toda a conversa, cifrada parece indicar que seu interlocutor é quem deveria ser, um informante ou um contato. Nada durante toda a conversação entrega o que só é revelado por um ato falho na última frase dita. Um não era quem o outro pensava. Alípio fora traído.

Eu? Eu não. Belém sequer existia para mim senão como uma memória desagradável. Ninguém existia, até então, senão uma cortina de fumaça enorme e persistente. Caminhei lentamente, dando voltas entre quarteirões, costurando ruas, obedecendo a recomendação que meu amigo de angola, Eduardo Lourenço tinha me dado: nunca voltar pelo caminho que veio. Há sempre um inimigo lhe esperando por onde você partiu.

terça-feira, 6 de março de 2012

Hiléia:Altamira; no Pomme D´Or I


Não é por causa do cartão de visitas que eu voltei. Creio, inclusive que em lugar nenhum o tenha feito. As redondezas que compõem o cenário de Montserrat e San Juan, em Buenos Aires não são os mais convidativos. A vizinhança de oficinas mecânicas também não me ajudou a esperar o melhor quando cheguei de táxi ao hostel. Não demorou até que o taxista fizesse uma recomendação das mais eficazes. Tome cuidado, preste atenção, eres turista que sale de un hostel. A prescrição requisita do viajante mais afoito alguma atenção, o que exige que caia em ouvidos atentos. Ouvi, ainda que convencido da idéia de que bastaria me comportar como morador da cidade do Rio de Janeiro e nada de muito grave poderia me acontecer. Estava em casa. A sujeira enegrecida da fachada, as grades nas janelas e as rachaduras nas paredes, não impediram grande coisa. A recepção em Boa Vista não foi menos interessante. Sempre de madrugada, cheguei à capital de Roraima desesperado por uma noite de sono. A rampa desastrada na calçada do hotel repetia uma certa cena que já tinha testemunhado em Belém no ano anterior, coisa que jamais entenderei: a onipresença dos azulejos, inclusive em calçadas.

Assinei o livro de registros, que então são apelidados de check-in e segui ao quarto. Abri a porta ligeiramente miserável para que me visse interrompendo, sem mais, a festa de duas baratas. Nuas. Desavergonhadas. Quase pude decifrar um grito de surpresa. Invariavelmente, sempre que retorno a esta imagem recebo de presente o pesadelo em que baratas passeiam pela boca do assombrado. Durante todos estes anos ouvi a descrição daquilo que só pode ser uma versão fraca de uma epidemia silenciosa. Não deixo, contudo de sugerir que uma profecia, ainda calada deve se confirmar logo mais na boca daqueles que se afligiram com a cena de coito interrompido. Na condução da fobia, sempre lhes voltam à boca as baratas promovendo toda sorte de distúrbios, coligindo com gravidade os cem mil focos de enfermidades.

Abri a porta do hostel em Belém imaginando algo semelhante. A própria divisão dos interiores do lugar já permitiam antever aquilo que seria um novo pesadelo alheio – até porque, se há alguém nada sujeito a profecias e êxtases místicos ou patológicos, esta pessoa sou eu; as baratas que lá estavam se foram de vez. Dormi como um velho cansado em Boa Vista, assim como dormiria em Belém.

Ao perceber que as paredes do casarão da rua Ó de Almeida eram composta por ambos, alvenaria e tapume de compensado, entrei num regime de antecipação de imagens. As duas baratas nuas pegas no flagra repetiram-se na retina me deliciando com a forma de teatro de revista. Desci as escadas de compensado procurando o número 02 e vi uma porta, nenhuma janela que não fosse um retângulo de 40x60 cm serrado no tapume que fazia a divisão entre o quarto e o corredor. Ao abrir a porta, nada. Sem baratas, sem aranhas, sapos ou surpresas, salvo a inexistência de chuveiro. Todo e qualquer banho seria tomado direto na fonte, um cano de água fria.

A estante que me serviria de armário me fez tomar uma série de decisões a respeito da guarda sanitária de minhas roupas, que nunca saíram da mochila de backpacker com a qual viajo. Já não mais morador da capital fluminense, me vi aderindo a alguns dos vícios mais inadequados já produzidos pela vida paulistana. Nada poderia me satisfazer, e tudo que viesse parecer a improviso soaria como um assalto. É o que acontece quando se imerge na obsessão com a segurança em todos os níveis, é o que se passa quando nos consideramos como um grande pacote de investimentos em nós mesmos avaliados pela noção de risco. O desvio de rota figura-se devastador para a sensibilidade. No mais, cama firme em lençóis ásperos e limpos. Não me vi com outra opção senão a mesma das noites de estréia em qualquer cidade, mesmo sendo esta uma re-estréia. Dormi.

Acordei me lembrando da missão. De como estava, lentamente cruzando a linha traçada por Codorna e, no mesmo movimento me arranhei de leve na mola solta do colchão contra a qual nunca manifestei queixa. Estava aqui e Codorna não se encontrava, ainda aonde deveria estar para me receber, em Altamira. As notícias, sobre como chegar até a cidade eram tão desencontradas como se desencontram os informantes. Sugestivamente, pouquíssimos, dentre aqueles com quem conversei tinham feito esta viagem. No caso, no almoço deste dia, entabulei minha primeira conversa de verdade. Longa.

Domingo é um dia ruim para um primeiro dia de estadia em Belém, especialmente quando a cidade é, na melhor das hipóteses um entreposto e, na pior das hipóteses uma memória ruim de algo que não aconteceu. O vazio da Cidade Velha, aliado ao pedido insistente dos locais para que se evitasse a qualquer custo, e ponto, produziam uma redundância hipnótica difícil de romper. Minha melhor saída deste círculo viciado era, como reza a geometria euclidiana, tomar uma reta. Segui rumo ao Museu Paraense Emilio Goeldi pela avenida Nazaré, onde pude testemunhar em primeira mão o Círio, completamente vazio e fora de calendário. Dali, a visita ao Museu e, mais adiante, nada. Nada que eu soubesse existir ou precisasse procurar. A caminhada longa, que fez o percurso dentro do museu pela metade acabou no Pomme D´Or, restaurante do qual nunca ouvira falar e ao qual não retornei.

A esta altura começava a assumir o papel de viajante solitário, que interpreto disciplinadamente em cada passo que dou, quando acontece. Ríspido, duro e decidido a cada passo dado, um verdadeiro pastiche de todos os filmes herdeiros de John Wayne que já assisti na vida. Rigorosamente perdido num papel sem roteiro, precisava comer. Patético como sempre, pedi uma mesa para um e precisei esperar. Não fazia parte do jogo de mesas receber tão poucas pessoas. Acabei no canto vazio de um aglomerado familiar que cedeu, gentilmente a cabeceira. Comi um rizoto com frutos do mar apreciável, ainda que não o suficiente para condenar de vez minha irritação com serviço chamado self-service, mais adequado a churrascos e a aniversários.

A família se foi e, o pouco tempo de refeição solitária foi interrompido por Alípio. Gentilmente me pediu licença. Com o prato na mão, havia percebido que estava só. Também o tinha percebido sentado atrás do caixa, me lembrando os donos de bar lusitanos que substituíram o jogo de dama na praça por contas intermináveis digitadas em calculadoras com impressora portátil. Lembro de olhá-lo atentamente, ainda que por poucos segundos. Nada de parecer interessado em demasia, nada de grosserias. Melhor evitar, diz a etiqueta que é, também e em geral, um manual de defesa pessoal. Deixar falar, ouvir, responder afirmativamente na maior parte do tempo. Ser devorado pela conversa.

Lembro de olhá-lo atentamente por alguns segundos. Obviamente que este é um exercício imbecil. Como fiz com as peças do Museu Goeldi, não me lembro de como se trajava, e tampouco como era. Não creio que vá reconhecer Alípio em uma próxima vez. A imagem que carrego mescla alguma velhice nos passos dados, óculos de quem enxerga com esforço, excesso de peso, a cor laranja em algum arranjo na camiseta, uma bermuda cáqui e a persistente idéia de que ele calçava sandálias de couro. A conversa conduzida por ele era, no final das contas a de quem decide e não deixa decidir por si, como faz um comerciante. Economista, com formação em algum lugar do sudeste que, crieo ter sido a PUC do Rio de Janeiro, Alípio é o patriarca da família proprietária da rede Pomme D´Or. Desta revelação, que na verdade é uma história entre restaurantes, uma seqüência de informações se depreendeu da boca de quem rompeu meu cordão de isolamento. Teceu muitas considerações sobre a família Yamada, sobre quem nada tenho a escrever senão que são donos de todos os principais outdoors da cidade, pois dirige a maior rede de supermercados do Pará. Como se trata de um país em que sou estrangeiro, posso dizer aos dedicados paulistas e cariocas que é coisa grande. Firme. Por vezes, com pompa. Um dos restaurantes Pomme D´Or está dentro de um Yamada. Yamada é uma família japonesa de japoneses que não são os do sudeste. Os indícios de que saí do país em que vivia se engrandecem com a história de que os japoneses do Pará, numerosos e competentes vieram descendo o rio Amazonas desde o Peru. Pouco têm a comemorar com o entorno do centenário de imigração senão que o centenário de sua vinda está por vir. A versão que ele oferece sobre os japoneses da Amazônia chega à nada irrisória história de Tomé-Açu, cidade que se tornou a terceira maior colônia japonesa do país e que, vim a descobrir depois, tem uma história tão fabulosa quanto a que Alípio me contou.

Vindos descidos do Amazonas, os japoneses teriam se espalhado por partes, e por aí. A narrativa técnica de sites nada confiáveis diz que houve algum tipo de manipulação do governo japonês em busca de regiões para assentamentos agrícolas. De Belém, chegaram a  Tomé-Açu. A técnica de difusão, nem desconfio. Alípio menciona a descida do rio e eu nem mesmo estou seguro de que ele tenha mencionado Tomé-Açú. A bem da verdade, tudo o que me lembro da conversa é de Alípio (o nome), o restaurante e a cidade amazônica aonde ainda se fala japonês como primeira língua, abrigados os falantes por pagodes. Logo imaginei uma sucessão de gueixas e xoguns reunidos em uma paisagem improvável, reclamando daquilo que descobri serem piuns e carapanãs. Logo imaginei espadas, kimonos, ikebanas, e todas as coisas que chamamos pelo nome errado, ainda que com alguma intimidade, cercadas por uma floresta frondosa e impenetrável, aliando clichês com uma velocidade com a qual somente um fascista consegue articular. Isso só foi possível, me disse Alípio, porque os japoneses fazem as coisas direito. São inventivos e cuidadosos. Não são como os chineses que, antigos, já inventaram um mundo e agora se dedicam à triste arte da cópia. Os japoneses são os estrangeiros aliados de Alípio. Repeti meu drama de ser gaijin. E Alípio mal começara a me devorar.

Hiléia:Altamira; decesso


“O segredo? Ora, cortejei os opostos com delicadeza e suavidade porque queria aprender com ambos. Não estava seguro, não tinha lá muita certeza. Não conhecia a história grandiosa, e me perdia na vida doméstica com uma rapidez inconteste. No final das contas eu soava a algaravia toda vez que falava com alguém. Nunca estive seguro do que fiz, o que me obrigou a me contradizer em um sem número de vezes com a mesma veemência. Aliás, se há uma única coisa que me sustenta na vida, e que permitiu que eu chegasse em algum lugar é meu tom de voz, quando consigo atingir a simulação de segurança. Mas, ao cabo e ao rabo, não sei lá de muita coisa além de meu RG, CPF, número de telefone e aniversário de minha esposa, além do de mais alguns transeuntes que freqüentam minha vida por algum período. Mais adiante, estou certo de que os esquecerei novamente. Assim, o meu envolvimento com a militância sempre ocorreu com o horizonte de que poderia haver melhores razões para parar, para negar, para dizer que talvez fosse melhor que não. Com os mais conservadores e dedicados aos afazeres do espírito, ao contrário, porque demandava algum movimento e compromisso mais agudo com questões menores do ponto de vista ético-moral. No final das contas, queria me comprometer tanto com problemas de vida e morte quanto com algum rigor formal. A única coisa que consegui, no final das contas foi decepcioná-los a todos”.

 O que marca a biografia de alguém assim é a incapacidade de determinar uma cartografia precisa a respeito do que deve e do que não deve ser feito em todas as situações e, mesmo em uma situação em específico. E isto nasce, diria o citado, da desconfiança quanto a adequação das normas de etiqueta, muito importantes em lugares como o Palácio de Buckingham ou no jantar na casa de sua avó, mas absolutamente esquálidos e pouco interessados na possibilidade de se comer uma galinha à cabidela na BR 116, a 15 quilômetros de onde seu carro quebrou, ou mesmo num almoço regado a macarrão e rapadura enquanto se espera o resgate de helicóptero porque a cheia do rio lhe proíbe outro exercício que não o da paciência. Certo que estão listadas as variações de lugar, e não de épocas, pois, caso contrário seria possível ampliar tanto as variações quanto as inadequações da etiqueta – que quase ninguém jamais seguiu.

“Eu mesmo, equivocadamente, já fui considerado muitíssimo bem educado, e por isso já pude gozar, inclusive da fama de erudito. Nada mais equivocado para alguém cujas noções de método e atenção são somente nomes de conhecidos de um primo meu. O tom de voz, aliado à pausa entre frases e uma certa sofisticação no olhar indicando concentração no interlocutor definiram, quase todas as vezes em que tive algum sucesso como conviva. E mesmo aqui, certamente soarei a alguém mais sutil do que de fato sou, porque quero intervir em sua direção, contemplá-lo e por isso, falar por via das palavras que você me dirige”.

Há quem tenha defendido a tese de que Denis Diderot era um pensador de reação. Há quem conteste que ele sequer tenha sido um pensador. Mas o exemplo me bastará, porque terá pensado o suficiente para, na pior das hipóteses ter usurpado a categoria prestigiada da filosofia. Pode ter sido Yves Benot, em seu Diderot: de l´athéisme à l´anticolonnialismme quem busca abolir à qualquer juízo de unidade autoral e propositiva concernente à obra do enciclopedista. Diz Benot que a figura de philosophe e editor acabou exigindo de Diderot uma disciplina em fragmentos de possibilidade, fazendo com que escrevesse quase que exclusivamente por via da pressão das pessoas à sua volta, o que ofereceria ao que escreveu a visível carência de unidade autoral, temática e estilística; de coerência. Diderot parecia prefigurado nas questões que lhe eram impostas por todo uma classe de interlocutores que, por fim, fizeram com que viesse a falhar. Não decepciona à forma de Rousseau, que os traiu a todos, mas como alguém que poderia ter feito algo melhor, com sustentação e clareza, com sistema. No entanto, o envolvimento do editor com a quantidade de demandas que lhe pareciam nobres o suficiente fizeram com que se diluísse, diria. Independente do que possa ser revelado por via de seu trabalho, é pouco provável que nele se encontre algo como um conteúdo de verdade, e que de alguma forma venha a satisfazer tanto a um militante quanto a um pensador rigoroso.

“É exatamente sobre isso que eu estava falando. Apanhei dos dois. Nas duas vezes. Tem sempre um assaltante no caminho. Eu estava na cidade há mais de 24 horas, cercado de restrições. Não poderia me mover para quase lado algum porque, saindo do hostel em um centro urbano aparentemente sem pessoas ao redor, eu seria vítima preferencial. Eu consegui me transformar exatamente no mesmo tipo de turista com que me indispus durante cada um dos dias em que fui morador de Copacabana, o mesmo tipo de turista que sempre mereceu, no meu ponto de vista, ser assaltado. Ainda que tivesse insistido, e que tivesse circulado pelo centro histórico de Belém, que é pequeno e ajustado para ser feito em uma só caminhada, não pareceu bom o bastante. Afinal, caminhar por calçadas vazias ornadas pelo selo do Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional não é a melhor forma de se misturar. Poucas coisas dissimulam tão bem o que, de uma forma bastante relaxada, não deixa de ser confinamento. Voltei para o albergue decididamente derrotado. Indócil mesmo. Fiz o que não se faz em viagem alguma, salvo quando se está perdido, ou com tédio. Assisti televisão. O que foi útil, porque conversei um pouco mais. Comecei a medir minha covardia com maior exatidão e medida. Tomando um suco de caixinha e comendo um sanduíche decididamente suspeito, sentou-se ao meu lado no sofá um hóspede japonês. Yuto. Foi com ele que eu me neguei a entregar alguma coisa. Juntos, e posso falar sem exagero, Yuto e eu nos confrontamos com o diabo”.

Hiléia:Altamira II


Existe uma classe de pessoas que é, ela mesma o sinônimo de uma classe de relações. Digo assim, que existe sem que se esteja seguro de sua definição. Mas imagino que eu possa dizer desta forma, e que ter amigos não é margem suficiente para dizer algo com segurança. Inclusive há alguma filosofia que diz que ninguém chama outra pessoa de amigo de forma impune. Mais do que isso, chamar alguém de amigo é uma forma velada de evocar o pronome “eu”, de dizer algo e, nisto estar implicado em qualquer coisa que se tenha dito. De alguma forma, quando chamo alguém de amigo, faço a exigência de que eu mesmo seja chamado para depor. No final das contas, por ter começado esta narrativa por uma acusação, e chamar alguém de amigo significa acusá-lo, isto é, defini-lo à revelia de seu consentimento, acabaria por ter que me justificar. Precisaria dizer porque alguém é meu amigo. Afinal, o fazemos para seu diametral oposto, no caso de inimizade.

Numa breve coleção de casos que fazem de alguém, amigo de outrem, é possível sempre se prevenir com alguns dramas possíveis que justifiquem a acusação. Alguém é amigo desde que tomaram um porre numa noite em especial; porque salvou sua vida após ter engasgado com um caroço de azeitona, e mesmo encontrar um caroço no angu; porque recebeu alguém com carinho e consideração; porque emprestou uma caneta na prova final de trigonometria de alguém; porque se envolveram em uma briga de torcida e foram presos na mesma algema. Mas no caso, Codorna é meu amigo ainda que eu não me lembre por quê, como foi ou como teria sido diferente. Fosse uma história, não saberia contar. E, é bom que se entenda, ainda que eu não saiba dizer como foi possível e qual seqüência de eventos foi produzida para que tudo viesse à tona, me é possível acusá-lo como amigo sem prejuízos. Pelo visto, imaginei que deveria ser assim, me veio à mente a mesma idéia que se precipitou na ponta de meu indicador, e ponto. Ei-lo, meu amigo. Sem contestação. Disso, as conseqüências. São várias, e todas parecem estar enormemente atreladas a alguma forma de compromisso afetivo, uma variação característica da expressão obrigatória de sentimentos. A primeira, e a mais efetiva delas é a correspondência.

Durante anos, mesmo após o fim do curso em ciências sociais, mantivemos correspondência expressa. Um pouco desleixada, em especial se comparado com a que mantive com outros amigos do período, os mais atinados com alguma justificativa a respeito do começo da amizade. Afinal, não me lembro de quando Codorna apareceu como amigo. A questão é que a coisa desandou. A falta de correspondência já havia se transformado em aliança temporária na partilha de um mesmo abrigo, o que se deu pouco tempo antes de acusá-lo ser meu amigo. Codorna e eu viemos a dividir o mesmo teto, nos obrigando a muito mais coisas do que em geral a amizade exige. Acabamos que nos exigimos cada vez mais, até que chegamos a um limite. A história que não sei narrar termina em dispersão. Que não se entenda que o limite foi o dia em que rompemos a chutos e pontapé. Nem de perto isso é um desafio. Desafio foi quando Codorna chamou todos os moleques da rua no campinho de areia, traçou uma linha no chão e desafiou a cada um de nós a passar por ela. Cuspiu no chão, apontou pro pé, fez o ritual inteiro. Imagino que falo por todos os amigos de Codorna que nos sentimos, de uma forma geral, emasculados com a cena. Ele tinha ido longe demais.

Confesso que nunca entendi o salto que ele havia dado, e este talvez tenha me orientado a buscar lhe escrever com maior repetição. De um leitor de Milan Kundera e pesquisador da assistência de saúde mental universitária, Codorna se reapresentou no envolvimento do porte de uma contratação pela FUNAI para trabalhar no Rio Grande do Sul junto a populações guaranis. Mas, vale dizer, qual a razão de registrar que sua ida para o sul seja, de alguma forma um salto. Assim, preciso de estereótipos para me explicar. Se há algo que compete à atividade antropológica, em especial a que se dedica a produzir e comentar etnografias, é a apologia da distância. Tudo que é longe, difícil e arriscado soa a ofício real, a medalha de honra ao mérito. O delírio, especialmente se acompanhado por uma dose ou outra de ayahuasca, configura o paraíso reconquistado pela atividade do pesquisador, especialmente se com custo de uma ou duas infecções de malária ou febre tifóide, três cicatrizes, algumas pinturas tribais e um nome adquirido por adoção em campo por alguma família falante de tupi, caribe ou arwak. Pagando na forma da perda da saúde e da orientação espacial, a disciplina científica da antropologia compõe sua glória de ser e fazer antropologia no exercício de ir ao longe, o que faz com que a herança dos missionários católicos soe tão ultrajante na mesma medida em que parece justa. Missionários, naturalistas, antropólogos dividem, no âmago, a mesma missão teórica. Ir – por muito tempo -, voltar, contar.

Não suficiente esta marca, a de que a glória da antropologia está na jornada longa, há uma barreira interna, digo, de que aqueles que ficam por perto dificilmente fazem o caminho da roça e, muito menos, da floresta, tão fortemente desestimulada pela história da Chapeuzinho Vermelho. Existe a classe de antropólogos que estão para a observação do que está por perto. E se há algo a ser dito hoje, é que há antropólogos em todos os lugares. Todos os lugares. Shoppings, listas de e-mail, festas da uva, academias de ginástica, redes sociais e, até mesmo em lugares insuspeitos como universidades e unidades de atendimento de saúde mental. Codorna é mestre em antropologia social por ter produzido uma longa dissertação sobre o sofrimento da depressão em uma universidade do interior paulista. Fui em sua defesa, vi destilar seus argumentos, me deixei não convencer por alguns deles. Meses após assistir sua defesa,  tenho notícias do salto. Codorna estava no Rio Grande do Sul trabalhando como contratado da FUNAI. Seu trabalho travava relações com a população guarani no mesmo estado. Nunca entramos em detalhes sobre o que fazia, mas o que sabia fora suficiente para me satisfazer.

Tempos depois, vingado o trauma do falecimento de um amigo em comum, a distância que Codorna começara a percorrer veio a se tornar intransponível. Ou quase. Foi selecionado para trabalhar, também em regime de contratação em Altamira, cidade de base do consórcio Norte Energia na construção da Usina Elétrica de Belo Monte. E aqui, e espero ser perdoado pela utilização do mesmo recurso que utilizei para escrever sobre a FUNAI, pois deixarei que a auto-identificação faça as vezes da apresentação deste consórcio.

“Conheça a Norte Energia

A concessão para a construção da hidrelétrica, no município de Vitória do Xingu, foi objeto de leilão realizado no dia 20 de abril de 2010. A outorga coube à Norte Energia S.A por um prazo de 35 anos.
A Norte Energia S. A, composta por empresas estatais e privadas do setor elétrico, empreiteiras, fundos de pensão e de investimento e empresas autoprodutoras, firmará contratos de comercialização de energia elétrica no ambiente regulado, com as concessionárias de distribuição, no montante de R$ 62 bilhões, relativos ao fornecimento de 795 mil MWh.
Para explorar o potencial hidrelétrico, a concessionária recolherá à União, como pagamento pelo uso de bem público, o valor anual de R$ 16,6 milhões, além de cerca de R$ 200 milhões que serão pagos à União, ao estado do Pará e aos municípios impactados, referentes à compensação financeira pela utilização de recursos hídricos.
Com estimativa de iniciar as operações no dia 31 de dezembro de 2014 e a comercialização do serviço em fevereiro de 2015, Belo Monte será a maior usina hidrelétrica 100% brasileira e a terceira maior do mundo. Sua construção deve gerar cerca de 20 mil empregos no pico das obras.
A UHE de Belo Monte terá capacidade instalada de 11.233,1 MW de potência e geração anual prevista de 38.790.156 MWh ou 4.571 MW médios e reservatório com área de 516 km quadrados. A conclusão do empreendimento está prevista para 10 anos, com início de operação da última máquina em 31.01.2019.
Para compatibilizar os interesses energéticos com a sustentabilidade ambiental, a área alagada foi diminuída. A usina teve o reservatório reduzido em relação ao projeto inicial e a área de alagamento diminuiu 60%. Enquanto a média nacional de áreas alagadas pelas usinas hidrelétricas é de 0,49 km² por MW instalado, Belo Monte impactará apenas 0,04 km² por MW instalado.
O empreendimento integra o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que é uma prioridade do governo federal. Sua entrada em ação propiciará mais oferta de energia e mais segurança para o Sistema Interligado Nacional (SIN), com melhor aproveitamento das diferenças hidrológicas de cheia e seca entre as diversas regiões do País.
A Norte Energia S.A não conta com isenções de impostos diferentes daquelas concedidas às outras usinas ou a qualquer empreendimento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) ou daqueles localizados em área de atuação da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam).
A Licença Prévia de Belo Monte foi concedida pelo Ibama em 01/02/2010, tendo como um dos requisitos a realização de audiências públicas as quais foram realizadas e contaram com a participação de cerca de 5.000 pessoas. Conforme a própria denominação, esta Licença exige o cumprimento de um conjunto de condicionantes dentro de prazos estipulados. Adicionalmente, para efeito de obtenção da Licença de Instalação, os planos socioambientais devem ser detalhados e constar do Relatório do Projeto Básico Ambiental (PBA).
No caso de Belo Monte, as ações socioambientais propostas no EIA/RIMA foram consolidadas em Planos (19), Programas (53) e Projetos (58), abrangendo as áreas de gestão ambiental e institucional, meio físico, meio biótico e meio socioeconômico. Ressalta-se que grande parte das condicionantes reforçam ou complementam o conjunto de Planos, Programas e Projetos propostos no EIA/RIMA.
Os benefícios do projeto Belo Monte transcendem à implantação de uma fonte de geração renovável e econômica para suprir necessidades do Estado do Pará, da região Norte e do Brasil. A exemplo de outros aproveitamentos hidrelétricos, existem benefícios associados à preservação ambiental de áreas na bacia hidrográfica, além do aumento dos indicadores de desenvolvimento humano nos municípios abrangidos. A inserção regional do projeto UHE Belo Monte vai alavancar o desenvolvimento na região.
Somente a título de pagamento da Compensação Financeira pela Utilização de Recursos Hídricos (CFURH), mais conhecida como royalties, a Norte Energia S.A contribuirá anualmente com cerca de R$ 160 milhões, sendo R$ 70 milhões destinados ao estado do Pará e outros R$ 88 milhões aos municípios da área de influência da usina.
Adicionalmente, a UHE Belo Monte está inserida no Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável (PDRS) do Xingu, que faz parte da parceria entre o Governo Federal e o Governo do Estado do Pará, tendo como objetivo promover o desenvolvimento sustentável da região, com foco na melhoria da qualidade de vida dos diversos segmentos sociais, a partir de uma gestão democrática, participativa e territorializada.
A participação da UHE Belo Monte está associada ao Eixo Temático 2 – Infraestrutura para o Desenvolvimento/Energia, no qual aportará, segundo o Edital do Leilão, cerca de R$ 500 milhões.”

_____________________________________________________________________________

Não gosto de me enxergar como covarde. Na verdade, se há algo que me dói é reconhecer não somente meus momentos de recuo, mas também sua quantidade generosa. Já saí de uma cidade com o rabo entre as pernas e não gostaria de repetir a cena. No entanto, repeti. E por isso, nunca mais perdoei Belém. Obviamente que isto é, no mais somente um lamentável vício europeu de condenação de algo que, lamentavelmente não pode ser o responsável pelo que fez. Ainda assim, essa forma de condenação de toda uma cidade que não leva em conta nenhum de seus moradores foi a única forma que tive para reagir contra uma cidade na qual cheguei e da qual parti, na ida e na volta, na calada da madrugada. Como fazem os covardes, os ladrões e os sertanejos.
A dois quarteirões do congresso, me diziam, tome um ônibus. Ainda assim será perigoso, e deverá tomar um táxi para que esteja garantido. Cinco minutos de caminhada impedidos por um bairro que nunca soube qual era. Nunca pude dizer grande coisa sobre o Guamá. Na verdade, nem pequenas coisas senão aquilo que me ajudava a respirar a atmosfera repressora de sua fama, corroborada pelo cartaz que avisava sobre o problema do tráfico de órgãos. Dois ou três cidadãos com o branco dos olhos avermelhados serviriam de amostra para aquilo que se transformou na média – e isto seria a cidade. Sem mais. Poderia dizer a mesma coisa sobre Guamá quando fizer remissão ao rio. Por isso, deixarei de me repetir.
De volta a Belém, dois anos depois. Ainda covarde, chego num vôo que pousa à uma da madrugada. A mesma sensação eterna de chegar ao litoral, o mormaço úmido de quem sai do ar-condicionado de um avião, entrega às testemunhas a minha desorientação. Desta vez, sigo para a Cidade Velha, em muito afastada do bairro de outrora e, ainda assim algumas das precauções são exaustivamente repetidas. Cautela – e o alvo da cautela é sempre uma parte invisível da população, praticante de roubos, furtos e outra sorte de violência. Turista, estrangeiro, tanto faz. Com tanta gente invisível a única certeza que sempre tinha é de que eu, em minha figura jamais passaria desapercebido. E isto terá se mostrado real da forma mais banal. Estrangeiro, turista e visível.
Minha única missão em Belém, além de ser o portal de chegada aérea no Pará, seria a de esperar o sinal verde de Codorna. Enquanto voava para lá, ele mesmo estaria em viagem de campo, visitando alguma aldeia parakanã, araweté, ou sabe-se lá de quem mais, o que impossibilitaria minha estadia em Altamira. Deveria esperar. Belém seria meu porto de espera e, por causa disso meu ambiente especulativo sobre os rumos de minha viagem futura. Afinal, para Altamira por chão, ar ou água? Aos poucos percebi que Belém estaria, com o perdão da rima, além. Qualquer decisão seria contaminada pelo simples fato de estar lá. Um quarto sem janelas, banheiro sem chuveiros e a sensação de que tinha atravessado uma membrana qualquer, a sensação física de fronteira que faria da viagem algum tipo de filme ruim. Espero que não cheguemos tão longe com tudo isso. Ainda não tinha amanhecido na Cidade Velha, o que em nada impede já ser tarde demais.
O dia seguinte, reclamou Ana Paula, recepcionista do hostel, deveria ser regado com as mesmas cautelas de qualquer lugar. A palavra chave parecia ser evitar. Pleno domingo no centro da cidade implica significa, no final das contas, que se tenha muito cuidado. Afinal, as ruas estão vazias. Procure sempre movimento. Assim, no movimento, após um café da manhã na padaria que depois me serviria de rotina, segui rumo à Praça da República, onde se encontra o Theatro da Paz, vizinho do Teatro experimental. Dia de feira de artesanato. Fui além. Segui por toda a Avenida Nazaré até sua conversão em Magalhães Barata para visitar o museu do Museu Paraense Emilio Goeldi, o que me pareceu obrigatório, ainda que pudesse ser decepcionante. Evitei, contudo, todo tipo de encontro e deixei de lado aquilo que mais poderia ser prezado por um possível leitor, neste exato momento: uma máquina fotográfica.
Assim, toda a visita foi movida pelo percurso lento de um leitor. Cheguei ao museu, devidamente cercado por seus muros e mais as centenas de árvores que lhe fazem roda, filtrada na ciranda íntima das onças e pássaros guradados em seu desenho. O museu, como tal, se encontra ao centro e, para não frustrar meu pessimismo, se encontrava vazio pela metade. Passeei pelas amostras de material coletados por gente da estirpe de Curt Nimuendaju e de Eduardo Galvão, e tive melhor dimensão do projeto institucional do museu que, como todas as atividades científicas mais graves do país, se congelaram durante a Primeira República sem qualquer revogação.
Pela primeira vez desde que a antropologia se tornou minha profissão, mesmo sem conseguir tirar disso conseqüências mais práticas, assisti a uma exposição de coleções com algo mais do que mero interesse. Vi na coleção de tantos indigenistas e antropólogos algo mais grave, ainda que sem conseguir nomear, apontar ou mesmo intuir o quê. Identificar diferenças por via de peças, sem me reportar ao meu próprio milieu de formação, reconhecendo nas máscaras algo mais apurado do que sobrevivências ou representações de valores serviu de aconchego para o coração sempre egocêntrico de um estudioso. Que se entenda que, mesmo antropólogo, não faço parte dos viajantes que tanto trabalham na fixação das glórias da disciplina. Na verdade, sou daqueles que, à moda da física teórica busca rearticular diferenças no seio do mais visivelmente doméstico refazendo distâncias curtas em cadeias infinitesimais, ampliando a figura potencializando diferenças mais banais. Daí o tamanho do meu prazer, o de reconhecer o que não é de minha obrigação. Aí reside a alegria no florescimento da orientação em um universo estranho. Infelizmente a lembrança do que vi e reconheci, hoje reside nas peças que não fotografei porque era melhor evitar. Afinal, em Belém. A cidade poderia, como da outra vez ficar com tudo. Preferi ceder ao medo e entregar o que tivesse antes mesmo de consegui-lo.

 Desconfio que, a partir daqui perderei o pouco respeito que já tive. 

sábado, 3 de março de 2012

Hiléia:Altamira - Primeiro e Segundo Atos, juntos


Tudo o que vou contar deve ser derivado de uma só frase, que diz: “eu tenho um amigo”. Daí desdobra-se uma série de eventos que, aqui devem ser narrados na busca da antipatia do leitor. Não com relação somente à história, mas com relação ao seu narrador que é, também o principal suspeito de qualquer crime que venha a ser cometido no prosseguimento destas linhas.

“Eu tenho um amigo. Ele se chama Victor. Mas toda vez que o chamo por “Victor”, seu nome me soa falso. E não só para mim. Os convivas de ambos, Victor e eu nunca sabem sobre quem estou falando quando digo algo sobre Victor. Sai sem convicção. Seu nome, para todos os efeitos é Codorna”.

Em 2000, por alguns meses, e creio que não muito mais do que 3 ou 4, moramos juntos. A cidade era outra, tudo era, também muito outra coisa. Morávamos em um apartamento térreo que, marcado por 4 assaltos repetidos em um tempo muito curto, 3 delas nos tendo como moradores, acabou nos expulsando do convívio comum. Éramos Codorna, Japoneiz  e eu. Sempre chegávamos após o crime. Felizmente, não testemunhamos a quarta inventiva, a mais violenta e que se espraiou até outros apartamentos. Este mesmo amigo que tenho, Codorna, brigou comigo e nos abandonou ainda antes do terceiro ataque. Partiu em gritos e bater de portas. Ainda assim, não creio que nenhum de nós dois tenha se incomodado muito com o assunto, mesmo no calor da hora. Nem eu, que sadicamente ri da briga ainda na ocasião, e nem ele que nunca deixou de se portar como aquele sobre quem escrevo, aquele a quem chamarei de amigo. Quando redijo “eu tenho um amigo”, quero dizer “Codorna”, assim como seus pais provavelmente repetem “Victor”, a quem educaram para demandar uma tal organização doméstica com a qual eu, leniente e réprobo nunca vim a compactuar.

Este amigo que tenho foi se espalhar por aí, em mais de uma forma. Algumas lhe dão orgulho, outras preocupação. Acabou que se envolveu na tarefa indigenista, o que é uma das formas perfeitas de fazer conjugar ambos, orgulho e preocupação. Hoje é funcionário da FUNAI. Eu tenho um amigo que trabalha para a FUNAI. E então, esta história versa sobre um triângulo amoroso. Codorna e eu, como permaneceremos na trama, não merecemos nenhuma descrição imediata. Podemos adiar até o momento em que algo será feito – e eu mesmo já posso ser definido com facilidade pelo leitor paciente e atento. Mas a FUNAI, esta necessita de definição. Afinal, como identificar, como tecer juízos sobre a FUNAI? Para que não venhamos a criar inimizades antes do tempo, e para que nenhum desleixo fácil seja reprovado sob a reprovação de uma declaração preconceituosa qualquer, creio ser de bom tom recorrer à auto-definição, a mesma que produz uma série de permissões públicas para que alguém seja um monte de coisas, inclusive índio. Assim, FUNAI:

“A Fundação Nacional do Indio – FUNAI, criada pela Lei 5.731, de 05 de janeiro de 1967, vinculada ao Ministério da Justiça, entidade com patrimônio próprio e personalidade jurídica de direito privado, é o órgão federal responsável pelo estabelecimento e execução da política indigenista brasileira em cumprimento ao que determina a Constituição Federal Brasileira de 1988.
A FUNAI tem como objetivo principal promover políticas de desenvolvimento sustentável das populações indígenas, aliar a sustentabilidade econômica à sócio- ambiental, promover a conservação e a recuperação do meio ambiente, controlar e mitigar possíveis impactos ambientais decorrentes de interferências externas às terras indígenas, monitorar as terras indígenas regularizadas e aquelas ocupadas por populações indígenas, incluindo as isoladas e de recente contato, coordenar e implementar as políticas de proteção aos grupos isolados e recém-contatados e implementar medidas de vigilância, fiscalização e de prevenção de conflitos em terras indígenas.
Missão
Coordenar o processo de formulação e implementação da política indigenista do Estado brasileiro, instituindo mecanismos efetivos de controle social e de gestão participativa, visando à proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas.
De acordo com o Decreto nº. 7.056, de 28 de dezembro de 2009, que dispõe sobre a estrutura regimental da Funai, esta tem por finalidade:
     I - exercer, em nome da União, a proteção e a promoção  dos direitos dos povos indígenas;      II - formular, coordenar, articular, acompanhar e garantir o cumprimento da política indigenista do Estado brasileiro, baseada nos seguintes princípios:
     a) garantia do reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas; b) respeito ao cidadão indígena, suas comunidades e organizações ; c) garantia ao direito originário e à inalienabilidade e à indisponibilidade das terras que tradicionalmente ocupam e ao usufruto exclusivo das riquezas nelas existentes; d) garantia aos povos indígenas isolados do pleno exercício de sua liberdade e das suas atividades tradicionais sem a necessária obrigatoriedade de contatá-los; e) garantia da proteção e conservação do meio ambiente nas terras indígenas; f)garantia de promoção de direitos sociais, econômicos e culturais aos povos indígenas; g) garantia de participação dos povos indígenas e suas organizações em instâncias do Estado que definem políticas públicas que lhes digam respeito; e
     III - administrar os bens do patrimônio indígena, exceto aqueles bens cuja gestão tenha sido atribuída aos indígenas ou suas comunidades, consoante o disposto no art 29, do Decreto nº 7.056, de 28 de dezembro de 2009, podendo também administrá-los por expressa delegação dos interessados;     
IV - promover e apoiar levantamentos, censos, análises, estudos e pesquisas científicas sobre os povos indígenas, visando a valorização e divulgação das suas culturas;
     V - acompanhar as ações e serviços destinados à atenção à saúde dos povos indígenas;
     VI - acompanhar as ações e serviços destinados a educação diferenciada para os povos indígenas;
     VII - promover e apoiar o desenvolvimento sustentável nas terras indígenas, em consonância com a realidade de cada povo indígena;
     VIII - despertar, por meio de instrumentos de divulgação, o interesse coletivo para a causa indígena;
     IX - exercer o poder de polícia em defesa e proteção dos povos indígenas.”

É no encontro de Codorna com a FUNAI, não necessariamente a que descrevemos acima, que vim a fazer a viagem que fiz. Foi por sua convocação. Por seu momento em que se portou como um moleque abusado, quando fez um risco no chão e desafiou a qualquer um passar, correndo o risco de apanhar no caso de fazê-lo. Eu tenho um amigo que trabalha na FUNAI. Depois de um primeiro trabalho ao sul da margem do Rio Grande, acabou em Altamira, cidade que serviu de objeto para o desafio que ele mesmo lançou, divulgado pelos quatro ventos, e por mim mesmo colaborando com um ou dois sopros. Cuspi na palma de minha mão direita que lhe ofereci em cumprimento selando o pacto que rezava: eu iria para Altamira. Fui à Altamira.

Mas estou me adiantando. Há muito o que dizer sobre Victor e Altamira – e mais, acerca de ambos.

_________________________________________________________________________________

Parti para Belém no dia 11 de fevereiro. Entrei mais uma vez, contrariado em um avião que faria rota até Belo Horizonte para então seguir para Belém. Comprei a passagem ainda com o sabor da primeira e única estadia que tive na capital paraense. O gosto ruim, fruto de uma estadia desajustada no bairro do Guamá, ainda selava todo e qualquer juízo que tivesse a respeito da cidade. Que não se entenda disso qualquer manifestação de desprezo. Em absoluto. O sabor de Belém soava a uma versão pouco ajustada de derrota. Nunca entendi isso com clareza, mas quando fiz meu primeiro vôo de volta para Campinas a sensação era de surra muito bem tomada por um grupo mascarado que ataca sem ser visto. Não conseguiria identificar o agressor. Estava à noite, me atacaram pelas costas, bateram muito no meu rosto.

Foi numa das inúmeras viagens a congressos científicos que marcam toda a trajetória acadêmica de um pesquisador mediano que acabei pousando em Belém. De madrugada, a paisagem da cidade não era outra senão a sinfonia repetitiva dos pontos de luz mediados por manchas enegrecidas de cada quarteirão. De táxi, o trajeto contornava a quantidade enorme de muros extensos e casebres mal-acabados que figuram a beira de boa parte das avenidas pelas quais pude passar. O caminho até o bairro de Guamá, que repete o rio que banha as costas da cidade servia de prenúncio dos dias por vir. Valas abertas lotadas de esgoto e o aviso, repetido à exaustão para não caminharmos pelo bairro – nunca contradito por ninguém – manchavam a estadia. Eu ficaria preso num movimento pendular irritante, do hotel para o congresso. 

Não demorou muito para que, ainda que marcado pelo pêndulo triste da vida de congressista, eu avistasse o rio Guamá pela primeira vez. O restaurante do hotel dispunha de um cais que mostrava a imponência e o afastamento entre as margens que, confesso, inaugurou para mim toda uma nova fonte de dimensões. Muito mais água do que parecia razoável, certamente mais do que eu poderia conceber. E não venho aqui portador de mil formas simbólicas que fazem da água alguma fonte suprema de vitalidade e conexão ancestral com um evento qualquer. Sentei-me o mais próximo do rio que pude após ter me servido de um suco de laranja e tentei, em silêncio forjar uma frase que fosse sobre tudo aquilo. Como é possível perceber, ainda não consegui. Todo o resto desta viagem repete a incapacidade de dar o primeiro passo, seja por causa de um cerco qualquer de um bairro de péssima fama, seja porque algo mais poderoso simplesmente se prolonga, displicentemente à minha frente. 

Voltei desta vez à Belém em busca da revanche, ainda que tenha enganado alguns amigos com coisas idiotas do tipo “perder a nhaca da última estadia”. Não carregava comigo nenhum mau cheiro. Era o peso da derrota de ter ido, visto e partido como um infeliz débil mental que passava sem conseguir impor, em momento algum a arrogância de um discurso bem tramado a respeito do que vira. Tinha raiva de Belém como se fosse alguém que tivesse traçado uma linha no chão e, ao me desafiar atravessá-la, por tê-lo feito levou-me também a me acovardar. Belém foi a segunda cidade que fez um apelo convincente à minha covardia.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Hiléia:Altamira I - Introito

Odiar todas viagens, todos os viajantes. Ressalva antiga que Claude Lévi-Strauss imprime em seu Tristes Trópicos e que contrabandeia uma precaução profilática. Odeio todos os viajantes e suas viagens. A mesma profilaxia que contrabandeada, que vem dentro de uma frase notadamente antipática, revela que todo remédio provém de um veneno; todo veneno provém de um remédio, o que justifica o eterno retorno à filologia grega, pharmákon. Lévi-Strauss, quando se permite ao exercício da manifestação de opiniões pessoais, em geral soa como um velho rabugento. O tipo acaba se tornando inviável para a sensibilidade sempre jovem que rumina na paisagem vigente, na maioria crentes na figura da Terceira Idade, Melhor Idade, e outra forma de plastificação do tempo na forma de cartões de crédito dos bebês chorões formados à base de talco e suco de pêra. É difícil, de uma forma geral ouvir o que uma ressalva mal-humorada tem para oferecer. No meu caso, reconhecidamente nascido com 72 anos de idade, com cavanhaque e rabo-de-cavalo, é nos momentos de rabugice que reconheço em Lévi-Strauss um companheiro de praça, um parceiro de jogos de gamão.

Como reconhecer um viajante? Esta pergunta se relaciona com o parágrafo anterior por via de uma máxima dos debates sobre preconceito racial. Imaginando um debate acalorado entre favoráveis e desfavoráveis às cotas para negros em universidades, o contrário declara não reconhecer raça e que toda política cotista é, por fundamento racista, no que é respondido pelo pró-cotas: “quer saber quem é negro, quem não é? Pergunte a um policial!”. Ignore, peço gentilmente, a questão das cotas em si. É o dispositivo de identificação, persecutório, se quiser, para o quê chamo a atenção. Basta odiar os viajantes e todas as viagens para reconhecê-los, ainda que não com justiça. E isto ocorre especialmente quando o reconhecimento se dá inter-pares. Viajantes, que se detestam, reconhecem-se no primeiro jogo de olhares. Não obstante serem estrangeiros, estranham-se entre si fazendo de todo primeiro contato um exercício necessário de constrangimento. Se é possível aplicar às sensações alguma forma matemática, digamos que é o momento esponencial do ser-estranho.

Ainda assim, e esta é a razão de retomar a frase de Lévi-Strauss, este sujeito que é estranho e que, no limite não tem outro futuro possível senão estranhar-se ainda mais, este mesmo sujeito volta da viagem tomado pela arrogância diagnóstica. Sabe sobre tudo o que viu, anota dois ou três caderninhos, se tanto e consegue dizer como é que vivem por ali, por onde foi, como é aquele lugar, produzindo uma forma de história natural de improviso que nada faz senão apagar os traços que levariam um segundo viajante aos mesmos lugares e pessoas. É desta forma que ao viajar, não se chega a lugar algum. Há quem chame isso de turismo. Mas não é por tecer mais uma frase idosa de tão mal-humorada que redijo esta abertura que, até então nada fala sobre a viagem até a Hiléia, já muito devastada pelo cenário que me levou para Altamira. Não é uma condenação do turismo, ainda que isto tenha lá algum merecimento para tal. O que chamo a atenção é para a arrogância de todos os viajantes que, ainda que de forma inocente, parecem dar conta do que viram, e fazem do relato irresponsável uma sucessão de anedotas que parecem ser algo melhor. Por mais solene e grandiloqüente que eu venha a parecer, é assim que escrevo. Viajei e, reitero, nada do que eu escrevo deve ser lido como algo diferente de uma sucessão arrogante de anedotas de viajantes. De Altamira, do Xingu, dos heróis e vilões com quem travei contato, eu nada sei. No limite, estas são linhas cujo conteúdo deve-se odiar – como fruto de uma viagem, como produção de um viajante – e ao entender que este relato é, antes de tudo, veneno, é que a sua forma terapêutica talvez se manifeste.