quarta-feira, 27 de agosto de 2014

How ard you

Hi, how are you
é uma forma de perguntar sobre alguém
se está tudo bem
e este alguém é com quem
você conversa.
Mas se how for escrito com H maiúsculo
feito homens por aí
que circulam punhos e torcidas
como se fossem punhais e posições
que não as narradas pelo tópico do abuso
H maiúsculo pode ser uma forma
de chamar Howard de forma abreviada,
sem fazer uso de Howie,
o que será mais uma forma de gerar confusão
seguida pela conjugação verbal
que erra a pessoa
e repete o abuso
sem saber se pelo menos
você está ok com isso.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.

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WIENER, Norbert. Deus, Golem & Cia. Cultrix. São Paulo. 1971 

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Ora, se a conversão do funcionalismo em cibernética merecer maior atenção, o que se passa é que existe uma distinção importante entre figura e fundo que é, para todos os efeitos, fundamental. Porque é ela que destaca os momentos de relação em que a singularidade da imagem, quando afirmada, não implica na abdicação de sua possibilidade de permuta e circulação a depender do meio de transporte, isto é, o fundo que lhe serve de esteio, a convergência que culmina em ontogênese; a narrativa que coincide na filogênese. Quando percebemos que há uma possibilidade de permuta imagética que faz com que a narrativa da história das religiões mova entre as figuras de Artemísia, Diana e da Virgem Maria – esta é a hipótese de Frazer -, isto implica não somente em um sistema subjacente que conduz as transformações mas em uma variação da figura como variação da imagem como ela mesma e como padrão – que Norbert Wiener (1971:38-39) define como pictórica e operante, respectivamente. Os termos que ele utiliza não são tão importantes quanto o exemplo e as consequências do mesmo para fins da elaboração de um modelo.
Wiener discute no livro em questão a relação entre criação e criatividade, e de qual forma um objeto criado como máquina pode ele mesmo apresentar sinais de criatividade. É importante não esquecer que a discussão toda, produzida nas décadas compreendidas entre 1940-1970, está inundada de referencias à teoria da informação, aos investimentos da IBM em computadores capazes de jogar xadrez e aprender com os jogos passados produzindo pela primeira vez sistemas estocásticos artificiais – isto é, memória cujo registro de dados altera o sistema com relação à forma pela qual os dados futuros serão registrados; aprendizagem.
Qual imagem mítica mais poderosa para a discussão a respeito dos encantos da criação mecânica se não a de Pigmaleão e Galatéia? O artesão que concretiza a beleza ideal tem em suas mãos, após intervenção divina, a mesma imagem respondendo aos desígnios da vida. De figura à movimento, Galatéia é operante quando viva. A história de Pigmaleão é um dos pináculos poéticos do automatismo, e na versão de Wiener serve para encenar uma relação delicada entre criador e criatura que culmina em uma outra questão, o da relação entre o original e a cópia.

Uma forma reprodutora pode construir a imagem de um modelo de um cabo de arma e este é suscetível de ser utilizado uma arma. Mas isso se deve ao fato de que a finalidade de um cabo de arma é relativamente simples. De outra parte, um circuito elétrico pode desempenhar uma função relativamente complexa e sua imagem, obtida à custa de impressoras aplicadas a tintas metálicas, é capaz de agir como o próprio circuito que representa. Os circuitos impressos são muito comumente empregados na moderna engenharia elétrica.”(Wiener, 1971:38-39)

Uma imagem que, por via da devida mediação, se transforma em uma outra imagem e que, por isso, opera. A relação entre as imagens não é, todavia, figurativa mas de modulação segundo certos padrões que podem muito bem ser abstratos e que tem como componente central sua convertibilidade, isto é, uma imagem conduz a produção da imagem seguinte sem necessariamente comprimir a analogia em elementos visíveis ainda que seu propósito seja produzir visibilidade ou, em caso de outras dimensões estéticas, formas perceptíveis. Assim:

É possível, pois, obter imagens pictóricas e imagens operantes. Estas desempenham as funções do original e podem ou não assemelhar-se do ponto de vista pictórico, ao original. Semelhantes ou não aos originais, podem substitui-los em suas funções e isso é, de fato, uma similaridade de caráter mais acentuado. É segundo a perspectiva de semelhança operante que estudaremos a possível reprodução das máquinas.” (Wiener, op.cit.)

É assim que Diana vista do ponto de vista dela mesma, é uma estátua contrabandeada desde a Crimea até Nime mas que se converte num meio de relação entre Artemísia e Virgem Maria quando posta na escala da religião natural de forma que metaforicamente, tanto Artemísia quando a Virgem Maria sejam Diana sem que seja possível confundi-las quanto a sua figura.  

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.

Diana - janela do Musée du Louvre; fotografia de Refrator de Curvelo
9-


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FRAZER, James George. The golden bough: the magic art (2/13 vol.). Macmillan. 1990 [1913].
VIRGÍLIO.  Eneida. (trad/ Odorico Mendes). Ateliê/Unicamp. Campinas.2005.



Feliz ou infelizmente, Frazer não dispõe de nenhum cadáver a partir do qual ele possa conduzir qualquer elogio a Claude Bernard. No entanto, dispõe de documentos a partir dos quais recupera os poucos fatos que tramam uma cadeia de relações de espaço tempo com uma meia-dúzia de histórias que viraram escombros. Assim, a adoração à deusa Diana em Nemi fora instituída por Orestes quem, depois de matar Thoas, Rei da Queroneso Táurico (Crimea) traz consigo para a Itália sua irmã e a imagem da Diana Táurica escondida num feixe de gravetos. Uma vez morto seus ossos foram transportados de Aricia para Roma vindo a serem enterrados no templo de Saturno. A lenda táurica sugere que o estrangeiro que chegasse pelo mar seria sacrificado no altar da deusa, o que na Itália assumiu uma outra forma.

Crescia no santuário de Nemi uma determinada árvore cujo galho algum poderia ser quebrado. Apenas um escravo em fuga tinha a permissão de, caso tivesse forças, tomar um dos seus ramos. Se bem-sucedido o escravo adquiria o direito de lutar uma justa com o sacerdote do lugar e, vindo a mata-lo, reinaria em seu lugar portando então o título de Rei do Bosque (Rex Nemorensis). De acordo com a opinião dos antigos o galho fatídico era o Ramo de Ouro o qual, reza a profecia da Sibila[1], Enéas arrancara antes de seguir em sua jornada rumo ao mundo dos mortos. A fuga do escravo representava, assim é dito, a fuga de Orestes, sendo o combate com os sacerdotes a reminiscência dos sacrifícios humanos outrora oferecidos para Diana Táurica. Observa-se tal regra, a de sucessão pela espada, nos tempos imperiais; dentre outras de suas atrocidades Calígula manda um rufião vigoroso assassinar o sacerdote por considerar que estivesse no ofício por tempo demais; e um viajante grego que visitava a Itália na era Antonina observa que naquela época o preço pela vitória em uma justa seguia sendo o sacerdócio.”(Frazer, 1990:11 – tradução minha)

Antes de mais nada, o segredo está na figura de Diana Táurica cuja imagem fora contrabandeada até Nime. Ela, protetora de homens e mulheres em gestação, garante de partos com boa chegada. As estátuas de bronze que passaram a adornar seu santuário carregam uma tocha na mão direita cujo fogo se encontra presente igualmente em uma lâmpada de fogo perpétuo no mesmo santuário com vistas na proteção do Imperador Claudius, fogo mantido e guardado pelas vestais. Os detalhes a respeito da matéria que mantinha o fogo estão arroladas em registro arqueológico que passam a ter maior relevância quando a discussão se encarrega de apresentar uma coincidência histórica quanto ao calendário das festividades em homenagem à Diana. Ainda que não conheça os detalhes sobre a conversão dos calendários, em especial do Justiniano ao gregoriano e como é que transitam as datas neste deslizamento, a festa em homenagem à Diana se dava no dia 13 de agosto. É em 15 de agosto que a Assunção da Virgem Maria é comemorada – a diferença de dois dias se repete em outro caso, em 23 de abril na festa de São Jorge que outrora fora o festival romano da Parília, no dia 21. Frazer deixa claro que celebrar a Assunção da Virgem visa proteger vinhedos e outras frutas (maçãs) que ele não especifica – fora de contexto. Este é o período em que muitas frutas estão amadurecendo, sendo portanto um período de colheita, domínio igualmente protegido por Artemísia. Entendendo que Artemísia é a antecedente grega da Diana italiana, é possível estender as relações que perpassam as duas figuras nas extremidades da cronologia. Se Artemísia é um similar de Maria no que diz respeito ao culto de proteção aos vinhedos e sua colheita, nada impede que a cadeia de analogias inclua Diana. A analogia é, obviamente, do culto, dos ritos e da relação com os ritmos cósmicos registrados em calendário. Não chegamos perto do limiar da interpretação dos símbolos em que a imagem é sinal de algo. Tudo o que temos é o local e a data do crime marcados pela ruína cerimonial em que a similaridade cumpre o papel de crime serial.

A história a ser contada envolve mais duas deidades menores sendo uma delas, Egéria, ninfa das águas claras, outrora amante ou esposa do rei Numa. Em Roma é possível encontrar, em Porta Capena, uma outra caverna igualmente sob domínio de Egéria, igualmente disposta aos ofícios das vestais. A outra deidade, igualmente retratada nos versos de Ovídio, é Virbius, que igualmente igualmente e nos mesmos versos, ao nome de Hipólito, o casto e justo tendo aprendido com o centauro Quirão as artes venéreas. Foi também parceiro de caça de Artemísia e levado à morte por deus do mar que apavorou seus cavalos quando viajava pelo golfo Sarônico. Diana, aqui, é quem traz seu amado de volta à vida enfurecendo Júpiter que convoca Hades para levar o mortal para o seu lugar de direito. Disfarçado, é levado a Nemi e fica sob os cuidados de Egéria. Assim, trata-se de uma associação ao redor de Diana cuja natureza é o caminho que a investigação deve seguir[1] e que Frazer não demora nada em afirmar qual seria, qual seu caráter a-histórico. Há uma classe de mitos que explica a origem dos rituais religiosos que não tem outra fundação que não seja a semelhança real ou imaginária que possa ser traçada entre a presente instituição e algum ritual que lhe seja estrangeiro (Frazer, 1990:21)? Diana de Nime é um padrão a partir do qual se impõe uma comparação que é antes de mais nada, artificial dado que o original de fato é da ordem da razão funcional. Não é Diana a origem, mas a partir dela é possível abstrair o fator original a partir do qual a história é repetição; a cópia cuja mimesis a faz se confundir com o original. Aliás, sem a noção de função é difícil imaginar esta concepção de mimesis em que o original não é uma forma, mas sim sua pulsão de informar, o que a cibernética vem a sugerir como sendo a dinâmica da informação [http://docurvelano.blogspot.com.br/search?q=Simondon].


[1] A natureza desta associação permite que retomamos passagens como as abordadas por Brent Nongbri (2013), como a beatificação de São Josafá cujos apontamentos filológicos sugerem ser, na verdade, ou também, Sidarta. Sobre Hipólito lemos em The Golden bough: “”But the truth is” says Servius, “that  he is a deity associated with Diana, as Attis is associated with the Mother of the Gods, and Erichthonius with Minerva, and Adonis with Venus”. What the nature of that association was we shall enquire presently. Here it is worth observing that his long and chequered career this mythical personage has displayed a remarkable tenacity of life. For we can hardly doubt that the Saint Hyppolytus of the Roman calendar, who was dragged by horses nto death on the thirteenth of August, Diana’s own day, is no other than the Greek hero of the same name, who after dying over as e heathen sinner has been happily resuscitated as a Christian saint.” (1990:21).


[1]Anquísea e diva estirpe,/Descer a Dite é fácil; dia e noite/Seus cancelos o Tártaro franqueia: / Tonar atrás e à luz, eis todo o ponto,/ Eis todo o afã. Do reto Jove amados,/ Ou por virtude ardente ao céu subidos,/ Poucos, filhos dos deuses, o alcançaram:/ Medeia um bosque, e sinuoso em torno/Enfuscado o Cocito a espreguiçar-se./ Mas vezes duas se tranar a Estige/E a lôgrega morada ver cobiças/ Se tanto folgas do ímprobo trabalho,/ Ouve e à risca o executa. Árvore opaca, / Dicada à inferna Juno, oculta um ramo/ N’haste e nas folhas áureo: em vale umbroso/O encobre e fecha a denegrida selva. Sem que destronque o aurícomo rebento, / No Orco ninguém se interna: é dom que exige/E insistiu Prosérpina formosa./ Uma fora, brota o novo, e do luzente/ Metal frondesce a vara. Em alto a mira,/ Indaga, e achando-o respeitoso o apanhes; /Que, a te ser destinado, ele espontâneo/Logo te cederá; senão com força/ Nem duro ferro poderás sacá-lo. Porém, desta consulta enquanto pendes,/ Ai!, mal sabes que as naus te incesta agora/De amigo exânime o feral cadáver:/ No sepulcro o aposenta; em negras reses/ Enceta a expiação. É como aos vivos/ O ínvio reino sombrio e Estígias brenhas/ Hás de avistar.”  Calou-se, e os lábios cerra/ De olhos fixos, tristonho, eventos cegos/ A cogitar, a gruta Enéias larga: trilhando a pegada, o fido Acates/Volve iguais pensamentos. Sobre o sócio/Que, ao dizer da Sibila, enterrar devem(...”.)(trad. Odorico Mendes). Resta notar que Eneias é um escravo fugitivo em potencial que se tornou soberano de seu povo e que a sua entrada no reino dos mortos demanda o depósito de um morto igualmente. Há aqui um tipo de espelhamento entre ritual e narrativa que não se pode ignorar, especificamente porque é a matriz do texto de Frazer como acontecimento ele mesmo.

O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.



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É inútil, contudo, reagir a Frazer repetindo a milonga da ignorância, dizer que ele não sabe do que é que está falando quando reduz à mera superstição a quase totalidade daquilo que ele chama de teoria da magia – isso Wittgenstein o fez com rendimento superior ao que eu poderia fazer. E no meu caso, fazê-lo implicaria em repetir Frazer naquilo que ele tem de menos admirável e redutor, o que é seguramente a forma mais fácil de transformá-lo na figura ilegível para a qual Marilyn Strathern chama a atenção, quando os modernos se convertem nos selvagens de todos aqueles que finalmente os teriam superado. O que me parece mais exato é recuperar uma dimensão específica que não redime a antropologia vitoriana de nenhum de seus pecados, mas que talvez possa sugerir um percurso que os façam um tanto quanto menos selvagens, menos ainda que os selvagens dotados do barbarismo da superstição. Se me for permitido reduzir O ramo de ouro a uma só intenção eu gostaria de dizer que se trata de um enorme esforço, quase que desproporcional, em contar uma história. Só uma. E que, para tal, será preciso confundi-la com a história da humanidade, sua história original. Eis um motivo adequado para fazer viver o ato da magia que faz indistintos o original e a cópia senão por uma investigação severa de evidências circunstanciais. O ramo de ouro, o mais longo tratado pericial de ciência criminal da antropologia moderna. E como todo exercício do gênero, é necessário desconfiar daquilo que diz seu informante, mesmo que ele seja Ovídio, Virgílio ou Pausânias. É nesta hora que percebemos que o informante, ainda que não necessariamente para o caso presente, é sempre um suspeito. Um suspeito em potencial. E aqui encontramos uma entrada forte para o problema do ato ritual com relação aos mitos narrados; sobre o valor do ato mágico contraposto à teoria da magia; e, no meu caso, porque a metodologia se mistura, na confusão entre figura e fundo, com a história que se conta.  O que se diz deve ser lido à luz daquilo que se faz – forma peculiar da longa tradição que distingue dizer do fazer.
Aqui, contudo, parece que cometo um equívoco dos mais graves. Porque o objeto em questão são histórias de origem de costumes e ritos, o que está muito bem distribuído por quase toda a extensão da história das religiões comparada, seja fundada no teísmo, na fé ou mesmo na filogênese formal das instituições. Comparar estas historias de origem com um procedimento criminal parece abusivo, ainda que feito a partir dos escritos de Hocart, quem flerta com esta analogia sem pudor algum. Parece dizer que as histórias de origem são por fim, histórias de assassinato. Não sei se poderia chegar neste ponto, ainda que o ato historiográfico moderno por excelência, o mesmo ressaltado por Jules Michelet nas primeiras páginas de sua Histoire de la Révolution Française e reiterado à primeira oportunidade, seja a conversação com mortos mediante os meios disponíveis. A mera morte de outrem não permite deduzir seu assassinato da mesma forma que não é possível simplesmente confundir assassinato com origem, não porque o assassinato não seja um excelente ponto de partida para uma história mas porque a origem não precisa advir do fratricídio. Há histórias que começam com o mais surdo golpe de um fiat, um mero acontecimento. A morte é um deles.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.

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FRAZER, James George. The golden bough: the magic art (2/13 vol.). Macmillan. 1990 [1913].
HOCART, Anthony Maurice. Kings and councillors: an essay in the comparative anatomy of human society. University of Chicago Press. Chicago.1970.
HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano. Unesp. São Paulo. (1999[1748]).



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O que vemos em Frazer é que a arte da magia repousa em dois ramos. Um a respeito da prática da magia e outro, sua teoria. Um e outro são pseudo-formas; pseudo-arte e pseudo-ciência, respectivamente. Afinal, por se tratar de uma investigação evolucionista, o selvagem é pseudo-civilizado isto é, contém o civilizado em germe da mesma forma que o civilizado contém o selvagem como ameaça cuja fronteira está no limite da epiderme. Esta configuração toma forma, como bem se sabe, nas variações modernas do ceticismo em grande parte incarnada por David Hume, quem podemos sugerir ser em grande parte um ancestral direto de James Frazer, inclusive na arte de reconhecer que certas coisas acontecem. Trata-se da décima sessão de An Enquiry concerning Human Undesrtanding, que versa sobre os milagres que, antes de mais nada, são coisas que acontecem. Pas d’événement, pas de miracle parce que d’abord, le miracle est une chose à voir.
Hume põe em questão o argumento da presença real do corpo de Cristo no sacramento Cristão, o mesmo corpo que outrora serviu de analogia para a justificação do Estado na cristandade. O problema inicial, o mesmo que traça uma espécie de fundação do empirismo moderno, diz respeito aos relatos fidedignos relativos aos eventos relatados e a instituição da confiança nos testemunhos. Porque nem sempre se trata de má-fé do religioso ou do homem do povo, mas de uma profunda desarticulação com relação aos critérios de descrição e da constância dedicada à observação metódica que discrimina não somente a longa permanência no sítio que localiza a percepção como destaca os termos que guiam a observação in loco. Afinal, os apóstolos não são, sob nenhum ponto de vista, naturalistas.

Assim, a evidência que temos para a veracidade da religião cristã é menor que a evidência para a veracidade de nossos sentidos, porque já não era maior que esta nem mesmo nos primeiros autores de nossa religião, devendo certamente diminuir ao passar deles para seus discípulos, e ninguém pode depositar nos relatos destes tanta confiança no objeto imediato de seus sentidos. Ora, uma evidência mais frágil jamais pode desfazer uma mais forte, e assim, por mais que a doutrina da presença real estivesse claramente revelada na escritura, dar a ela nosso assentimento seria diretamente contrário às regras do raciocínio correto. Ela contradiz os sentidos, apesar de que nem a escritura, nem a tradição nas quais se supõe que esteja sustentada trazem consigo tanta evidência quanto os sentidos, quando consideradas meramente como evidências exteriores, sem que nossos corações dela tomem conhecimento pela operação imediata do Espírito Santo.” (Hume, 1999:143-144)

Temos então um exemplo do combate à superstição a partir de um ponto de partida muito particular, que é o que toma a religião segundo questões postas pela teoria do conhecimento. Ao contrário do que propõe a história do direito e, em parte, o tema da secularização como história política da religião, aqui a religião não aparece como forma forte que degenera nas formas modernas, mas ao contrário a forma em potencia se atualizando em planos perfécteis – a perfectibilidade é, aqui, imanente. A proliferação de milagres em meio à história profana é um problema a ser resolvido. Cabe a ressalva de que, como todo cético, Hume não considera a experiência um meio infalível para promover a orientação no mundo. Isto não impede, contudo, que ele possa elencar uma hierarquia de formas de acesso ao conhecimento do mundo que é, para todos os efeitos, experimental antes de tudo que é, antes de mais nada, potencialmente falha. Contudo, ele toma partido antes da observação do que da observância das leis, o que altera profundamente o que se pode compreender como estrutura da mediação e, com isso, a forma de se relacionar com um acontecimento.

Nem todos os efeitos seguem-se com igual certeza de suas supostas causas. Verifica-se que alguns acontecimentos estiveram constantemente conjugados em todas as épocas e lugares; outros, porém, mostram-se mais variáveis e frustram algumas vezes nossas expectativas, de tal modo que, em nossos raciocínios relativos a questões de fato, coexistem todos os graus imagináveis de confiança, desde a máxima certeza à mais diminuta evidência moral.” (Hume, 1999:145)

Com evidência moral entenda-se, obviamente, àquilo que a vida religiosa foi reduzida. Com grau de evidência, por sua vez, compreende-se o regime de probabilidade em que se exercita o conflito das evidências de forma a estabelecer proporções da repetição da incidência que relaciona causa e efeito produzindo assim camadas estatísticas que pesam em favor de uma ou outra versão. Estatística é, convém lembrar, uma ciência de Estado assim como uma percepção do estado de relações que permite que o investigador não seja refém da autoridade de um testemunho somente e que possa se aplicar na coletânea de relatos. E é o regime de probabilidades que orienta, assim, a investigação daquilo que acontece vindo estabelecer no regime das causalidades, a forma posta em evidência como a de maior regularidade guardando assim a dimensão preciosa das regularidades ocultadas da experiência, seja por pertencerem a ordens infinitesimalmente grandes, infinitesimalmente pequenas ou radicalmente distintas da experiência adquirida, como no caso do príncipe indiano que submetido ao calor dos trópicos não acredita na possibilidade da água congelada, o que é fundamentalmente racional.
Nisso, o milagre. O acontecimento não somente como exceção da regularidade, o que é meramente o inesperado, mas também como a suspensão das leis da natureza. Afinal, quais são as chances de um milagre acontecer de novo? Quais são as probabilidades? A absoluta exceção do milagre é de tal ordem que se torna impossível instituir a partir dele qualquer autoridade com vistas no relato porque como acontecimento ele não faz nada mais do que irradiar como novidade e obrigar ao relato que destaque que, por fim, ele aconteceu e nada além disso. O efeito fundamental sobre aquele que o testemunha é o efeito das maravilhas, das mirabilia, seja porque aconteceram, o que é uma dimensão sempre suspeita dado que depende do relato, seja porque alguém relata vindo a sofrer suficientes distorções a ponto de fazer com que todos os testemunhos sejam por fim dignos de descrédito mostrando que o fantástico e o maravilhoso é antes de mais nada, um erro de escalonamento quando não o mero exercício de tornar a narrativa algo mais interessante e se promover com isso. Assim, o relato que poderia pretender transmitir algo de verdadeiro cede em graus diversos àquilo que é meramente verossímil, ainda que seja muito pouco provável. Preferindo contar uma boa história no lugar de algo que se mostre regular, normal e repetitivo, a narrativa sobre os milagres oferecem uma sorte de ficção que exagera contornos, excessivamente afetiva e nada preocupada no exame do caso. Todos os olhos na qualidade do testemunho, naquilo que efetivamente há para ver. É muito difícil distinguir, assim, a antiguidade fabulosa de James Frazer dos povos bárbaros particularmente suscetíveis em compartilhar histórias milagrosas. E talvez não seja necessário.
Que os dois primeiros volumes de O ramo de ouro sejam uma teoria da magia e que a mesma responde melhor a certas questões de caráter prático do que teórico, isto é claro. No entanto, o papel que a magia desempenha como um regime de semelhanças associadas merece tanta atenção porque é um complexo de associações entre termos assemelhados que parece nos levar a algum lugar em especial: o sacerdócio de Nemi. Entendendo que se trata da sucessão pelo assassinato cujas regras de sucessão Frazer se propõe a reconstituir, nada melhor que estabelecer o paralelo, para todos os efeitos adequado, da história da religião com o exercício pericial da cena de um crime e chamar o exercício de “método comparativo”.
O caso que, com poder consideravelmente menor, as regras de sucessão do sacerdócio Nemi não encontram paralelo na antiguidade clássica e conseguir explica-las efetivamente demanda uma ginástica fenomenal não somente porque não se correspondem com qualquer outro costume antigo como pertencem ao campo de investigação própria da antropologia social moderna. Trata-se de um costume bárbaro cuja racionalidade está obviamente em questão. É preciso confiar, contudo, na continuidade da mente humana que serve como fiador do mecanismo evolutivo que preserva as hipóteses de Frazer cuja história natural permite que de alguma forma seja possível percorrer a história ao contrário, voltando ao ponto senão de origem, àquele que permite borrar a distinção entre selvageria e antiguidade, ambos fonte, imanência e, de alguma forma, sobrevivência.

Accordingly, if we can show that a barbarous custom, like that of the priesthood of Nemi, has existed elsewhere, we can detect the motives which led to its institution; if we can prove that these motives have operated widely, perhaps universally, in human society, producing in varied circumstances a variety of institutions specifically different but generically alike; if we can show, lastly, that these very motives, with some of their derivative institutions, were actually at work in classical antiquity; then we may fairly infer that at a remoter age the same motives gave birth to the priesthood of Nemi. Such an inference, in default of direct evidence as to how the priesthood did actually arise, can never amount demonstration. But will be more or less probable according to the degree of completeness with which it fulfils the conditions I have indicated. The object of this book is, by meeting these conditions, to offer a fairly probable explanation of the priesthood of Nemi.” (Frazer, 1990:10)

O que Frazer sugere fazer é exatamente trabalhar com o que Anthony Maurice Hocart sugeriu ser o domínio das provas circunstanciais em seu Kings and Councillors. É na leitura de Hocart, inclusive, que duas coisas saltam aos olhos. A primeira, sobre o grau de penetração do paradigma indiciário nesta forma de administração da prova de forma que a investigação arqueológica que nos conduz à antiguidade e à selvageria, ao mesmo tempo, se utiliza do aparato próprio da antropologia forense em que são os rastros de alguém que interessam, e que nos conduz ao agente e suas intenções – como o será na figuração ao redor do assassinato do sacerdote de Nime. A segunda diz respeito à necessidade e, ao mesmo tempo, a precariedade do uso artificial de analogias para o exercício comparativo em antropologia que se conduz pela variety of institutions specifically diferente but generically alike.
Hocart abre seu livro dissertando sobre as regras do jogo de seu programa de pesquisa pautado por uma analogia explícita com a investigação pericial criminal. E é exatamente a cena de um crime que lhe serve de figura em que se dispõe do corpo, mas não de testemunhas. O que ele sugere é que as evidências diretas são superestimadas caso não sejam testemunhas do ato e, ainda assim, lembremos, réu confesso não elimina a necessidade de investigação pericial. Não é outra a vitória da biologia ao recusaras evidências diretas e recorrer ao enorme expediente da evidências circunstanciais que faz da evolução das espécies a forma de coletar e acolher a enorme diversidade de fatos sem recorrer à premissa da empiria.

There is one branch of human history which has no direct evidence to build on, and no hope of any. That is comparative philology. No one expects that we shall ever recover documents containing specimens of that lost speech from which Latin, Greek, Sanskrit, English, and such languages, are descended. Writing was not adopted by its users till long after it had split up into languages very distinct from one another. Our earliest Greek inscriptions hardly go back to 1000 B.C., at the very least a millennium after this splitting up. This absence of all direct evidence has proved a blessing in disguise. It has forced linguists to drop the wasteful an ineffective frontal attack, to which archaeologists are addicted, for a more decisive and economical flanking movement. They have been driven to the comparative method.” (Hocart, 1970:15)

O método comparativo persegue divergências constitutivas da história de seu objeto exatamente porque os rastros que o mesmo deixa fazem com que ele divirja da primeira impressão coletada. O caminho que leva até o original – e o tema se torna profundamente atrelado à questão da mímesis – visa eliminar as diferenças com vistas naquilo que em um primeiro momento é a regularidade das semelhanças que permitem deduzir, a partir disso, a forma original que desencadeou todas as variações morfológicas. É a comparação entre formas que oferecem uma semiótica particular, aguda e, mais uma vez, à revelia do contexto. É a intensidade da analogia que faz com que o grau de reincidência de uma forma na outra é que indica haver algo para além da superfície, como no caso-teste em que Agni é comparado com Hermes (Hocart, 1970:17-19) no qual são tantas as similaridades entre os mitos narrados que deve haver algo para além da mera aparência – e é aí que se trata de um exercício de anatomia comparada, e que as narrativas pertencem a um mesmo gênero porque sua fábula cumpre quase a mesma narrativa. Mais uma vez, generically alike que tem, por fim, uma dimensão estrutural. O acontecimento é investigado com vistas em sua estrutura entendida como suas condições de possibilidade, não naquilo ou quem ele representa. Todos os abusos da história conjectural partem daí. Seus méritos, idem. Um deles é de não ter aberto mão dos acontecimentos em favor de seus representantes.

domingo, 17 de agosto de 2014

O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.

 AGAMBEN, Giorgio. O sacramento da linguagem: arqueologia do juramento. UFMG. Belo Horizonte. 2011. 

DURKHEIM, Émile. Lições de sociologia. Martins Fontes. São Paulo. 2002.
FRAZER, James George. The golden bough: the magic art (2/13 vol.). Macmillan. 1990 [1913].
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Cosac & Naify. São Paulo. 2003 [1950].


6-  Esta não é uma discussão muito presente no debate antropológico, sobre o acontecimento. O que acontece é algo que, por razões muito importantes e precisas, se retirou imediatamente do horizonte teórico para que cedesse espeço para as variações temáticas das representações coletivas que tem como fundamento básico o projeto de sociologia política de Durkheim. Afinal, o que é uma representação coletiva senão a semiótica das corporações que ele tão bem defendeu em A divisão do trabalho social e nos cursos que oferecia na Sorbonne a partir de 1890? E o que são as corporações senão mediadores da mediação entre a população civil e o Estado? E o que é isto senão um léxico jurídico que se interpõe ao acontecimento da vida diária? O reflexo disto, e do elogio da laicidade francesa,  se encontra no exercício da sociologia que se concentra no esforço radical e proclamado de isolar a mística do Estado, fazendo da República o reino deste mundo. É assim que a sua defesa do individualismo como forma indiscutivelmente melhor de organização da sociedade de massas culmina numa elaboração particular em que é difícil discernir sua sociologia de um projeto de Estado e de planificação da vida coletiva:

A verdade é que o Estado não é por si mesmo um antagonista do indivíduo. O individualismo só é possível por meio dele, embora ele só possa servir à sua realização em condições determinadas. Pode-se dizer que é ele que constitui a função essencial. Foi ele que subtraiu a criança à dependência patriarcal, à tirania doméstica, foi ele que livrou o cidadão dos grupos feudais, mais tarde comunais, foi  ele que livrou o operário e o patrão da tirania corporativa, e, se ele exerce sua atividade com muita violência, ela só é viciada, em suma, porque se limita a ser puramente destrutiva. Eis o que justifica a extensão cada vez maior de suas atribuições. Essa concepção do Estado é, portanto, individualista, sem todavia confinar o Estado à administração de uma justiça totalmente negativa; reconhece-lhe o direito e o dever de desempenhar um papel dos mais extensos em todas as esferas da vida coletiva, sem ser místico.” (Durkheim, 2002:89)

Existe na sociologia francesa, esta que se dedica à estrutura social como forma planificada da vida coletiva dedicada fundamentalmente à reprodução das condições de vida – connatus sociológico- , a dificuldade bastante conhecida de se reportar ao acontecimento. Por muito tempo, creio que de forma profundamente equivocada, a tensão se projetava na polaridade entre indivíduo e sociedade, como se a questão fosse fundamentalmente interna à ordem jurídica dos povos, em especial os povos modernos. No entanto, toda a sociologia francesa em questão não é outra coisa senão um elogio ao indivíduo e ao individualismo, ainda que seja um elogio feito de forma blasé articulado na expressão c’est pas mal. Um elogio contudo que se articula no plano das representações do indivíduo, e não na individuação como acontecimento. Eis aí a enorme diferença da seleção de trechos escolhidos por Frazer com relação aos selecionados por Hubert & Mauss e a forma pela qual editam a vida primitiva.
A teoria geral da magia que encontramos no ensaio de Hubert & Mauss é uma teoria dos contextos da magia em que mesmo sendo ela um desafio, é um desafio à organização social e portanto, também sujeita ao tipo de acordo coletivo de tipo contrato, o mesmo que o direito negativo tem com o ato criminoso e aquele que o perpetra. Assim, o tipo criminoso acompanha o ato; mágico é tanto uma pessoa quanto um ato. É uma teoria dos papéis sociais no exercício de suas funções, um enorme investimento no universo do officium (Mauss, 2003). No caos do universo primitivo de onde são sacadas as mais diversas formas da origem dos costumes que são conectadas como fontes filogenéticas do comportamento humano, não é de se surpreender que mesmo aqueles empenhados com todas as suas força em investigar o universo antropológico desde as zonas de indistinção aguda entre tipos de fenômenos – discriminados com a força da laicização revolucionária francesa em que a religião é, antes de tudo, o selvagem da organização social humana -; mesmo estes entendem que direito e religião margeiam um ao outro sendo, igualmente, um o caso limite do outro. É aqui então que o recurso plácido das “distinções analíticas” entre, por exemplo, “direito” e “religião”, “religião” e “sociedade” e “magia” e “religião” correspondem uma edição do primitivo, ainda que não de qualquer primitivo. Do primitivo ao lado. É assim que Louis Gernet disserta sobre pre-droit como fase originária do direito pagão e Paolo Prodi fala sobre um instinto primordial que leva à separação futura da religião com relação à política (Agamben, 2011:24).

O caso de Mauss constitui um bom exemplo para mostrar como a pressuposição do conjunto sacral age decididamente, embora venha a ser, pelo menos  em parte, neutralizada pela atenção especial dada aos fenômenos que define seu método. A Esquisse de uma teoria geral da magia, de 1902, começa com uma tentativa de distinguir fenômenos mágicos frente à religião, ao direito e à técnica, com os quais muitas vezes tinham sido confundidos. No entanto, a análise de Mauss se depara todas as vezes com fenômenos (por exemplo, os ritos juríico-religiosos que contêm uma imprecação, como a devotio) que não é possível atribuir a uma única esfera. Assim, Mauss é levado a transformar a oposição dicotômica religião-magia numa oposição polar, traçando dessa maneira um campo, definido pelos dois extremos do sacrifício e do malefício, e que apresenta, necessariamente, umbrais de indecidibilidade. É sobre estes umbrais que ele concentra o seu trabalho. O resultado, conforme observou Dumézil, é que já não haverá para ele fatos mágicos, por um lado, e fatos religiosos, por outro; aliás, “o seu objetivo principal consistiu em ressaltar a complexidade de todos os fenômenos e a tendência da maior parte dos mesmos de irem além de qualquer definição, por se situarem simultaneamente em níveis diversos” (Dumézil, Idées romaines).” (Agamben, 2011:25-26)

O que Agamben não nota é que este além da definição positiva é, antes de mais nada, a esfera da infração e da violação de interditos que clivam a diferença entre sacrifício e malefício. E então a relação genealógica que se utiliza do tempo profundo não é tão relevante quanto é a relação pragmática com aquilo que Hubert & Mauss compreendem como a relação entre tradição, classificação e organização social. Na definição da magia, na segunda parte do Esquisse vemos como este movimento se dá em que a magia é classificada como tal segundo determinações específicas. Assim, mágico é o indivíduo que efetua mágicas; representações mágicas são ideias e crenças que correspondem à magia; os ritos são, por fim, os atos. Sendo magia algo da esfera da tradição – o que nos joga imediatamente para eventos que do ponto de vista filogenético e evolutivo, se deram pelo menos antes do Antigo Regime -, são operações passivas de repetição, então as representações mágicas nutrem da seguinte relação com as técnicas de magia:

Nas técnicas, o efeito é concebido como produzido mecanicamente. Sabe-se que ele resulta diretamente da coordenação dos gestos, dos instrumentos e dos agentes físicos. Vemo-lo seguir imediatamente a causa; os produtos são homogêneos aos meios; o disparo faz partir o dardo e o cozimento se faz com fogo. A existência mesma das artes depende da percepção contínua dessa mesma homogeneidade das causas e dos efeitos. Quando uma técnica é ao mesmo tempo mágica e técnica, a parte mágica é que escapa a essa definição. Assim, numa prática médica, os encantamentos, as observâncias rituais ou astrológicas são mágicas; é aí que jazem as forças ocultas, os espíritos, e que reina todo um mundo de ideias que faz que os movimentos, os espíritos, e que reina todo um mundo de ideias que faz os movimentos, os gestos rituais, sejam reputados detentores de uma eficácia muito especial, diferente de sua eficácia mecânica.”(Mauss, 2003:57)

Percebe-se que, em primeiro lugar, há a distinção entre o técnico e o mágico, se é para seguirmos o exemplo. Mas aqui, bem ao modo calvinista de definir administração da eucaristia, o mágico corresponde ao plano do simbólico e que, como tal, acontece como se fosse uma outra coisa. É a classificação dos atos na correspondência com o universo simbólico que lhe dá significado. E aqui, quase escrevi sentido. Preferi guardar o termo para que seja usado em momento propício em que esta passagem citada de Hubert & Mauss seja confrontada. Mas não no que diz respeito ao simbólico cujo calvinismo tanto influenciam as mais diversas de pesquisas modernas sobre religião – sugestivamente, talvez não a Frazer. O que está em questão é o mecaniscismo subjacente em que as relações entre causas e efeitos determinam a anterioridade e a posterioridade, assim como o princípio que legisla a respeito do que acontece fazendo da lei um antecedente tanto lógico quanto cronológico de qualquer coisa que aconteça. Física social.

O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.


FRAZER, James George. The golden bough: the magic art (2/13 vol.). Macmillan. 1990 [1913].
STRATHERN, Marilyn. O efeito etnográfico. Cosac & Naify. São Paulo. 2014.

5- O selvagem como filósofo é uma das fórmulas mais recorrentes e presentes na longa discussão a respeito do estatuto da mitologia, e da positividade dos mitos, para não dizermos sobre a proliferação de mundos e pontos e vista que se enunciam como disciplinas de caráter etno, este prefixo que segue exercendo o fascínio dos mundos derivados – música étnica. Para além de discussões metodológicas que pedem para que se siga o nativo (follow the native)  de forma a levar a sério o que o nativo diz – coisa que, creio, merece a cautela metodológica sugerida por Edmund Leach, a de que há muito de meramente justificatório no ato de comunicação da alteridade-, a dimensão excelente para a discussão do tópico philosophy of life parece ser melhor condensada no embaraço metodológico da discussão proposta por Marshall Sahlins a respeito de como pensam os nativos. Contudo, ainda que O ramo de ouro participe do esforço moderno de contar a história da razão – que também desemboca mais adiante na história do Ser -, ele adentra no universo das formas que mimetizam formas com um volume e envolvimento particulares. A semelhança, antes de tudo, acontece como tal e, num primeiro momento, é isso que importa. Talvez por isso, ainda que tenha me utilizado do jargão de Marilyn Strathern – out of context – eu tenha me afastado tanto daquilo que é matéria de discussão de seu ensaio sobre Frazer, para todos os efeitos muito interessante mas, ao mesmo tempo, mais datado do que O ramo de outro parece ser – mais dedicado em especular do que em acontecer.
A despeito disto, o ensaio de Marilyn Strathern consegue produzir um efeito que é o mais interessante, que é quando a imagem acontece – este um dos temas de tantos outros trabalhos dela, presentes em coletâneas como Property, substance and effects e O efeito etnográfico. Em seu Out of context (Strathern, 2014) vemos como Frazer aos poucos se transforma em uma personagem estranha e em como, paulatinamente, O ramo de ouro devem um livro ilegível. Como um intelectual moderno à toda prova, ele foi reduzido a um estilo e a uma forma de exercício de autoridade que, para além de etnográfica, é propriamente colonial que, como bem sabemos, é onde a selvageria realmente acontece. E Frazer, ilegível, se transformou em um selvagem. Não do mesmo tipo que os botocudos desnudos ou as formas elementares warramunga, mas daquele passado sombrio em que andávamos em hordas invadindo a vida e o território alheio promovendo destruição em caos em nome das mais nobres aspirações como o progresso da inteligência e moral humanas. Barbarismo. Frentes de expansão do capital.
Convém perguntar se a negação de Frazer, não como um passado distante mas como um presente que deve ser confrontado como presença; e O ramo de ouro como um livro de coisas que acontecem, com a licença de Daniel Pelizzari, não repete o mesmo tipo de recalque que os intelectuais modernos conseguiram, com algum sucesso, se desembaraçar. Como a parte hedionda que por fim coube à crítica moralizar ao ponto de se transformar em algo insuportável, esta outra face do ininteligível. Convém perguntar how Frazer thinks. Por nenhuma razão de dignidade especial que não ele ser responsável por um  livro de coisas que acontecem:

Before Cherokee braves went forth to war the medicine-man used to give each man a small charmed root which made him absolutely invulnerable. On the eve of battle the warrior bathed in a running stream, chewed a portion of the root and spat the juice on his body in order that the bullets might slide from his skin like drops of water. Some of my readers perhaps doubt whether this really made the men bomb-proof. There is a barren and paralyzing spirit of skepticism abroad at the present day which is most deplorable. However, the efficacy of this particular charm was proved in the Civil War, for three hundred Cherokees served in the army of the South; and they were never, of hardly ever, wounded in action.” (Frazer, 1990:146-147).

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.


FRAZER, James George. The golden bough: the magic art (2/13 vol.). Macmillan. 1990 [1913].
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Cosac & Naify. 2003 [1950].
TAUSSIG, Michael. Mimesis and alterity: a particular history of the senses. Routledge. Nova York. 1993.

4-

Michael Taussig é explícito ao enfatizar que Hubert & Mauss redigiram notas críticas a respeito da teoria da magia de Frazer como se fosse algo muito importante de se ressaltar. E é. Por uma ou outra razão, seu esboço de uma teoria geral da magia, de Taussig, não pôde ficar impávido diante da cena das páginas se desdobrando em páginas, notas e a diferença enorme entre as relações fora de contexto de Frazer e aquelas de Hubert & Mauss. Estar fora de contexto pode significar muitas coisas e, obviamente, ler Frazer no contexto de sua citação é, ainda assim, a forma de ler Frazer segundo Frazer, ele mesmo. Como imitação sem que com isso haja qualquer nota mais substantiva que assuma ares de filologia, uma das especialidades de Marcel Mauss. E que isto não seja lido como qualquer intenção de imitar da parte dos pesquisadores franceses, como se a modalidade de imitação à qual me refira dependesse disso. Talvez esta seja uma forma impessoal pela qual seja possível ser contemporâneo; e que isto seja uma das aproximações possíveis para o que pode ser dito a partir do conceito de cultura – e a nacionalidade se transforma em nada mais, e nada menos, do que uma rima em comum, segundo a máxima de Joseph Jacotot, ou simplesmente normas de etiqueta que propiciem relações de troca.
Há, obviamente, vida antes de Frazer para que ele seja considerado o presidente honorário, membro fundador de uma linhagem. Mas, tal como vemos na abertura do ensaio de Hubert & Mauss, Frazer especifica o problema da magia de forma a se transformar no original a partir do qual os termos associados sejam elencados - eis um dos fundamentos da atividade crítica filológica - numa linhagem de sucessão. Assim, Edward Burnett Tylor é reconhecido como quem, em Primitive Culture, estabeleceu a primeira teoria da magia a partir dos prolegômenos da magia simpática. O detalhe é que sua teoria da magia não atingiu de forma alguma a dimensão de uma teoria geral, isto é, que pudesse ser generalizada em uma diversidade de campos e acontecimentos. Tylor se atém demasiadamente àquilo que corresponde ao animismo, o que é verdadeiramente um outro tema de discussão. O terceiro excluído está excluído, mesmo quando existente.

Com Frazer e Lehman, chegamos a verdadeiras teorias. A teoria de Frazer, tal como exposta na segunda edição de seu O ramo de outro, é, para nós, a expressão mais clara de toda uma tradição para a qual contribuíram, além de Tylor, sir Alfred Lyall, Jevons, Lang e também Oldenberg. Mas como todos esses autores concordam, sob a divergência das opiniões particulares, em fazer da magia uma espécie de ciência antes da ciência, e como é esse o fundo da teoria de Frazer, é desta forma que nos contentaremos em falar primeiramente. Para Frazer, são mágicas as práticas destinadas a produzir efeitos pela aplicação das duas leis ditas de simpatia, lei de similaridade e lei de contiguidade, que ele formula do seguinte modo: “O semelhante produz o semelhante; as coisas que estiveram em contato, mas que já não estão mais, continuam a agir umas sobre as outras como se o contato persistisse”. Pode-se acrescentar como corolário: “A parte está para o todo assim como a imagem para a coisa representada”. Desse modo, a definição elaborada pela escola antropológica tende a absorver a magia na magia simpática. As fórmulas de Frazer são muito categóricas a esse respeito; elas não permitem nem hesitações, nem exceções: a simpatia é a característica necessária e suficiente da magia; todos os ritos mágicos são simpáticos e todos os ritos simpáticos são mágicos. (Mauss, 2002:50)

Que se entenda muito bem que não é com relação à magia que Hubert & Mauss devem tecer comentários críticos a respeito de Frazer. Tendo a dizer que teriam muito pouco, ou quase nada a acrescentar ao que oferece, efetivamente, O ramo de ouro. É com relação à religião que a tensão cresce, com relação à qual a magia se transforma num conceito negativo, isto é, o ato que faz cessar a conciliação religiosa o que faz de Frazer alguém que lhes atravessa o caminho. Visto por este ângulo, a teoria da magia de Hubert & Mauss é derivação de uma teoria da sociedade, o que não é nenhum escândalo lógico haja vista a relação com outro ancestral, outro original que é Émile Durkheim, talvez o verdadeiro original para a qualquer imitação impregnada nas formas do ensaio sobre a magia. Isto porque, ao contrário do que encontramos em Frazer, o que lemos na teoria geral da magia é o enquadramento homogêneo das fórmulas em relações de causa e efeito que se impõe, antes de mais nada, na teoria de sociedade que lhe é afim. Afinal, estamos no terreno do fato social das Regras do método sociológico no qual todo fato social só pode ser antecedido por um outro fatos sociais; e que sendo a magia um ato de tradição, e portanto social, só pode ser precedido por um outro fato social, não necessariamente um ato mágico. Há aqui uma fortíssima jurisdição em que a magia acontece somente sob licença, não podendo jamais ser entregue ao plano do mero acontecimento.
Obviamente que o fiel da balança é o conceito de religião. Ou de sociedade. Ou qualquer conceito que se pretenda ser uma generalização e que, mesmo que no encontro marcado com selvagens ou outra forma de sofismo – todos os selvagens são, ou bárbaros, ou sofistas ou selvagens; nesta analogia há muitas conexões de tipo a parte está para o todo assim como a imagem está para a coisa representada. E que não se entenda que por generalização o problema está meramente em propriedades formais que trafegam como conceitos na história das idéias. Isto porque a história das idéias não se move só, e tampouco somente no tempo. Caminha no espaço, adentra em territórios inóspitos que atacam com a força de enxames de mosquitos na pele branca, fundamentalmente como parte da tripulação ou passageiro de barcos como os que avistados pelos três chocó perto da ilha Encantamento. Metáforas são meios de transporte.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.

DAGOGNET, François. Philosophie de l’image. J. Vrin. Paris. 1986.
FRAZER, James George. The golden bough: the magic art (2/13 vol.). Macmillan.1990 [1913].
KAFKA, Franz. Um médico rural. Brasiliense. São Paulo. 1993.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Cosac & Naify. 2003 [1950].
TAUSSIG, Michael. Mimesis and alterity: a particular history of the senses. Routledge. Nova York. 1993.

3-
As histórias que Taussig narra; e no final das contas trata-se de uma colagem algo dadá de narrativas em que o tema da semelhança toma forma replicando de alguma forma o método de retirar do contexto e fazer valer a relação por algum meio em que seja possível fazer viger a semelhança. É uma arte da magia que, contudo, trata Frazer como remanescente de outra coisa cujas ruínas, na verdade traços no papel, permitem outra forma de aceder ao selvagem, tão ambíguo quanto o sacerdócio praticado em Nemi. Selvageria delicada de uma história particular que não cessa de produzir transportes entre o selvagem e o civilizado que, numa variação da história natural humana faz da animalidade uma forma de narrá-la. Afinal, selvagem mesmo que vitoriano, humano. O chimpanzé de Um relatório à academia, de Franz Kafka é talvez o símbolo perfeito para este outro passo rumo a uma teoria da magia que não abre mão da história natural, ainda que seja de um tipo particular – em primeira pessoa, o chimpanzé já não é mais macaco mas ainda se lembra que, de alguma forma, o foi. O macaco se foi para que pudesse, todavia, ser lembrado nessa variação individuada da seleção natural em que o que resta como memória é, sugestivamente, o tendão de Aquiles.

Falando francamente – por mais que eu goste de escolher imagens para estas coisas – falando francamente, sua origem de macaco, meus senhores, até onde tenham atrás de si algo dessa natureza, não pode estar tão distante dos senhores como a minha está diante de mim. Mas ela faz cócegas no calcanhar de qualquer um que caminhe sobre a terra – do pequeno chimpanzé ao grande Aquiles.” (Kafka, 1991:58)

Esta não é uma história natural avant la lettre. E como epígrafe que é para Mimesis and alterity, não é exatamente o bucolismo de Virgílio. Contudo, parece nos transportar para o mesmo lugar, caso consideremos que lugar aqui não é meramente paisagem. É um meio.
O macaco apelidado de Pedro Vermelho por causa do primeiro tiro que levou ao ser capturado, que lhe deixou uma cicatriz vermelha numa das maçãs do rosto. Gostaria de dizer que a fotografia captura a imagem de forma similar, mas ainda estamos num reduto particular de uma certa história natural, a dos sentidos. Ainda que trágica em diversos de seus contornos, e a captura do chimpanzé em vias de deixar de ser macaco é um destes desdobramentos, a unidade antropológica não deixa de assumir um caráter ridículo a partir do qual desenha-se o motivo de que toda antropologia é redigida com mãos de comediógrafo, ou cede a tentação teológica. Pedro Vermelho, que detesta ser chamado assim -  o tiro marcara sua pele de vermelho para sempre – é muito claro ao dizer que a viagem feita no cargueiro da companhia Hagembeck, que muito bem poderia ter no convés uma personagem de Joseph Conrad aguardando a aparição de um cúmplice secreto; mais especificamente, que a viagem feita no caixote é, tal como ele se lembra, o momento decisivo em que deixara de ser macaco.

Sobrevivi a esses tempos. Surdos soluços, dolorosa caça às pulgas, fatigado lamber de um coco, batida no crânio na parede do caixote e mostrar a língua quando alguém se aproximava – foram essas a primeiras ocupações da minha nova vida. Em tudo porém apenas um sentimento: nenhuma saída. Naturalmente só posso retraçar com palavras humanas o que então era sentido à maneira de macaco e em consequência disso cometo distorções; mas embora não possa mais alcançar a verdade de símio, pelo menos no sentido da minha descrição ela existe – quanto a isso não há dúvida.” (Kafka, 1993:60)

A busca pela saída do caixote não significava, contudo, busca da liberdade. Esta confusão não pode ser feita pois deixaríamos de prestar atenção naquilo que distingue o chimpanzé dos humanos que logo mais ele veria, especialmente no ambiente circense – a forma particular de nos exibirmos juntos a outros tantos animais encaixotados que, parece, acedem a um nível de relação humano que faz arrastar uma sorte de calcanhar de Aquiles da semelhança. Não se imagine contudo, mais uma vez, que o tema da saída é o mesmo da liberdade. Este erro nos faria cair no ridículo.

Tenho medo de que não compreendam direito o que entendo por saída. Emprego a palavra no seu sentido mais comum e pleno. É intencionalmente que não digo liberdade. Não me refiro a esse grande sentimento de liberdade por todos os lados. Como macaco talvez eu o conhecesse e travei conhecimento com pessoas que têm essa aspiração. Mas no que me diz respeito, eu não exigia liberdade nem naquela época, nem hoje. Dito de passagem: é muito frequente que os homens se ludibriem entre si com a liberdade. E assim como a liberdade figura entre os sentimentos mais sublimes, também o ludíbrio correspondente figura entre os mais elevados. Muitas vezes vi nos teatros de variedades, antes da minha entrada em cena, um ou outro par de artistas às volts com os trapézios lá do alto junto ao teto. Eles se arrojavam, balançavam, saltavam, voavam um para os braços do outro, um carregava o outro pelos cabelos presos nos dentes. “Isso também é liberdade humana”, eu pensava, “movimento soberano”. Ó derrisão da sagrada natureza! Nenhuma construção ficaria de pé diante da gargalhada dos macacos à vista disso.” (Kafka, 1993:61)

Não nenhuma saída moral, metafísica, saída que buscava era de ordem psicomotora. Não se entenda, todavia, tratar-se de fuga. A saída fora imitar os homens do barco produzindo uma sorte de solução em que a relação com o original se perde. Um macaco imitando um homem é, mais uma vez, uma forma de borrar a indistinção confundindo formas de anterioridade; o macaco que imita o homem é, por sua vez, seu ancestral e, de alguma forma, provavelmente filogenética, é sua imitação. Nesta que é uma história particular dos sentidos, a mimesis é um problema que se enquadra nas digressões da história natural. Não em geral, mas uma particular – aquela em que o macaco que toma aulas de humanidade com humanos, e os imita com vistas na saída do caixote, infecta os humanos com sua imitação tentando-os a voltarem a ser macacos. Tudo muito confuso, muito arriscado. Não é por acaso que o platonismo, identificado grosso modo por François Dagognet (1986), suspeita tão abertamente dos artifícios da semelhança que, por via das dúvidas se aplica na censura aos poetas e, mais adiante, aos selvagens e seus ares pagãos cheios de sensualidade. Melhor não. Muita tentação.
A idolatria da imersão na mímesis tem em Michael Taussig um outro capítulo em que a magia simpática, com relação à qual proliferam remissões ao passado arruinado da antropologia de James George Frazer, converte o humano em macaco. Não qualquer macaco, mas aquele que vê as coisas mais engraçadas sendo feitas em nome da liberdade. É o homem branco quem é convertido em formas artesanato Cuna[1], história esta que se desdobra em inúmeras outras histórias cujo contexto é a mera convertibilidade de uma história em outra pela analogia que o contato entre elas produz. Obviamente que não é qualquer contato que entra em questão, mas os dotados de poder suficiente para estabelecer o tipo de semelhança que reitera a diferença entre os termos com poder ainda maior. O poder da evocação da semelhança, e da provocação de semelhança, dada a censura platônica perene e seu poder teológico, não poderia ser de outra ordem que não da magia, o que de outra forma não senão uma concepção mais apurada e detalhista de difusão. E dentre outras coisas é O ramo de ouro, de Frazer, que Taussig difunde:

I am well aware that mimesis, or at least the way I am using it, is starting to spin faster and faster between opposed yet interconnected meanings, and yet I want to push this instability a little farther by asking you to observe the frequent interruptions and asides, changes of voice and reference, by which this text on the Emberá, so manifestly a text about us too, breaks up intimations of seamless flow that would immunize mimetic representation against critique and invention. Didn’t Valentin say – indeed make quite a point of it, when you consider his short and concise description – that the captain of the modelboat had neither had neither head or neck, and that one of the crewmen had no feet? With this replica of the boat and its gringo spirit crew we have mimesis based on quite imperfect but nevertheless (so we must presume) very effective copying that acquires the power of the original – a copy that is not a copy, but a “poorly executed ideogram”, as Hneri Hubert and Marcel Mauss, in the early twentieth century, put it in their often critical discussion of Frazer’s theory of imitation.” (Taussig, 1993:17).

Os barcos em questão dizem respeito ao ensaio de Stephanie Kane sobre o “efeito MacArthur” entre os Chocó em dissertação defendida em 1986, em Austin, Texas (USA); pesquisada na península Daríen, no Panama durante os anos 1980. Valentin é um índio chocó quem conta uma história de sua infância em que seu avô, seu tio Bernabé e ele, quando próximos da ilha Encantamento rumo ao rio Congo, avistaram um barco cheio de homens brancos o qual tentaram alcançar à canoa, no que não conseguiram. Em meio ao rastro do odor de gasolina, o avô, que era um xamã, decide voltar porque o barco não era outra coisa senão coisa do diabo. Então, eu estou contando a edição de Taussig, que conta a história da história contada por Kane. Difundimos na esperança de que o ato narrativo carregue consigo semelhança, a mesma que, em um momento fortuito, seja possível reconhecer a mesma história quando em contato com uma outra fonte que não faça parte desta cadeia – como seria a versão vista desde fora do barco que carregava o macaco Pedro Vermelho; e o rio Congo ficasse do outro lado do Atlântico. No Congo.

A história de Valentin segue no curso em que o adoecimento dos três chocós a partir do que o avô, xamã, captura a imagem do barco cheio de gringos em uma miniatura em que o capitão não tem cabeça ou pescoço e sua tripulação, não tem pés. Muito fácil transportar esta história para o português e ter um acesso materialista dos mais agressivos que afirma que histórias de magia, de fantasma, etc., são por fim, sem pé nem cabeça. Que sejam, este não é o ponto. Muitas histórias não tem cabeça, como a da Revolução Francesa, e fazem muito sentido. As que não tem pés são mais raras. E todavia, este é o tipo de história que preenche dois volumes inteiros de um livro que se impôs como um clássico da antropologia social moderna. Na verdade, dois. Hubert & Mauss são difusores de Frazer e igualmente praticantes da arte de contar histórias fora de contexto.


[1] The problem that I want to take up concerns the wooden figurines used in curing. Cuna call them nuchukana (pl.; nuchu, sing.), and in Nordenskiold and Pérez text I find the arresting claim that “all these wooden figures represent European types, and to judge by the kind of clothes, are from the eighteenth and possibly from the seventeenth century, or at least have been copied from old pictures from that time”.” (Taussig, 1993:03).