domingo, 30 de novembro de 2014

MÔNADA, díade, tríade, tétrade: números inteiros.

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Era somente um. Numeral. Ponto. Não que seja coisa simples, digo, algo próximo de um número inteiro. Próximo, porque nunca foi algo que eu pudesse olhar no espelho e garantir, mesmo que fosse no espelho que eu já considerei enorme, na porta do armário do quarto de mamãe. De qualquer forma, cresci com esta marca que, até onde sei, sempre foi mais ou menos comum. Minha primeira visita em um parque de diversões a interdição do prosseguimento do movimento da fila para entrar na montanha-russa sempre vinha com a instrução de que nem mais uma criança entraria e que teríamos que esperar pela próxima leva. Muitas vezes fui sozinho, outras fiquei para trás enquanto meus amigos se davam as mãos, dois a dois, gritando o que outra vezes gritei com eles – a mais longa e alta vogal que eu pudesse encontrar garganta adentro. Com gosto. Não somente eu mas

Cada
Um
De
Nós.

            Hoje eu concordo o número da frase com algum receio de estar errando. Poucas vezes tive a impressão de que de alguma forma vivi como mais de um, em algum mecanismo de acoplamento marginal que engata o enunciado num caldo só, devidamente temperado pela circunstância. Não que se deva confiar em coisas como “a memória” ou mesmo “a primeira vez em que percebi isso”. Nem um, nem outro farão nada por mim ou por esta prosa sobre números inteiros. Não tem nada a dize sobre este que é um assunto meramente geométrico e, desconfio que o papel que se pode atribuir, ou mesmo usufruir nestes dois termos em nada tem a ver com um garante narrativo ou qualquer outra coisa que possa ser dita. Enfim, dizemos para manter a banca da casa e fazer com que haja movimento, mas no limite não são importantes, nem a memória faz, nem a primeira vez em que percebi isso. O que importa é que nós só fez inteiramente sentido quando meu irmão e eu resolvemos roubar o pequeno supermercado que existiu no galpão ainda existente a pouco mais de meio quarteirão de onde ainda moro. Fugir e, principalmente, ser pego. Diria então, “eis o momento em que pude perceber que éramos nós”, mas não é nada disso. O que é efetivo é que hoje sinto que este é um “nós” plausível, especialmente na instância da fuga que até hoje persiste dado que não só mascamos todas as gomas de mascar como redundamos em manter o castigo que se abateria sobre nós à distância. Em qualquer combinatória, vale dizer, seríamos nós. Eu pego e ele não, a delação possível e, então, o medo da delação. Nós dois pegos.  4 alternativas e em todas elas, nós. Nós dois. Que digam algo sobre a paixão, o sexo, a amizade como produtor desta unidade dual. Que interfiram recusando o resto desta prosa, não me incomodaria em nada porque a paixão é o momento da fuga, eterna enquanto dura. Enquanto houver o furor da existência ardente da contraparte, e for paixão, o sentimento é aquele que atravessa o corpo de alguém que, em trânsito em provável fuga de seu país, chegando em um hotel no estrangeiro com os olhos arregalados e respiração ligeiramente ofegante o atendente pergunta, sorridente, se está fugindo e incapaz de compreender a mais sutil ironia, esvaziado do senso de humor. Foi pego mesmo que por um segundo; pegaram seu comparsa; desbarataram a operação – vi meu cúmplice (ah, a cumplicidade dos casais) sendo preso ao assistir a televisão e logo percebi que seria e minha vez, logo em seguida e estaríamos, nós dois, presos. Nós dois, não importam quantos. Nós é dois. Eles, três. Foi assim que me cercaram e agora, escrevo da prisão, à huis clos.

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.


CERTEAU, Michel. A escrita da história. Forense Universitária. Rio de Janeiro. 1982.
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Contraponto/Uerj. Rio de Janeiro. 1999.
ROSANVALLON, Pierre. Le moment Guizot. Gallimard. Paris. 1985.



3-Os desdobramentos dos acontecimentos revolucionários, os de 1793 em particular, provocaram uma interrogação fundamental a respeito do sentido da idéia de democracia vindo assim a deslocar o centro de gravidade da reflexão política. No começo do século XIX a questão crucial que toda uma parte dos autores “liberais” busca resolver é a das relações entre liberalismo e democracia. Seu objetivo é de compreender as condições nas quais o ideal democrático da participação na coisa pública se voltou, com ferocidade, contra as liberdades.  (Rosanvallon, 1985:14)

            O hiato revolucionário, eis o alvo de Pierre Rosanvallon na recuperação de uma determinada memória e imaginação política precipitada, não das barricadas mas dos esforços de seu desmonte – tarefa que somou esforços de todo um século dado que o hiato é mais sutil e trabalhoso do que uma espécie de lapso que se interpõe entre a Revolução e o futuro. A história política francesa que atende aos apelos do liberalismo político do século XVII se volta fundamentalmente para a resolução de problemas que a orientação dos escritos de pensadores como Rousseau e Montesquieu simplesmente não poderiam prever. Não me refiro, obviamente, a nenhum componente da escatologia secularizada e as tragédias narradas em suas entranhas. Estou apontando para o problema, nada banal, de que Rousseau e Montesquieu são, ao mesmo tempo pensadores e agentes políticos quando vivos; e nomes nos frontispícios de livros que circulam a despeito do que viessem a fazer, ou de onde estivessem e qual sua posição relativa aos eventos mobilizados em seu nome. Se ao lermos livros antigos temos um acesso facultado à comunicação com os mortos – doutrina da historiografia moderna em sua relação com toda sorte de documentos -, por outro lado escrever é entrar no mundo dos mortos sem, no entanto, morrer completamente. Se é que é possível morrer completamente, por escrito, rastro que antecipa a morte sem matar completamente e que, de uma forma ou de outra, parece deixar as coisas exatamente assim fazendo da vida uma espécie de rumor tão perpétuo quanto o registro:

            A poeira do tempo persiste. É bom respira-la, ir, voltar por via desses papéis, dossiês e registros. Eles não são mudos e tampouco tão mortos quanto parecem. Jamais toquei em nada sem que algo saísse, se revelasse... É a alma.”(Michelet, 1979:45)

            A poeira sobre os arquivos onde Michelet comungava com os Processos Verbais da Revolução e, com isso, seguia os traços e a alma daqueles que revelavam as faces e detalhes da erupção que recriava toda a história francesa produzindo uma clivagem definitiva – ou tanto quanto uma clivagem definitiva pudesse perdurar. O antigo e o moderno numa batalha em que nomes de frontispícios como Rousseau e Montesquieu passam a desempenhar um papel de focos de remissão, sempre ambivalente, próprias da orientação bibliográfica que parece ser, antes de mais nada, de caráter anímico. Joseph Jacotot é rousseauniano, por exemplo, mas em Émile não é possível encontrar nada que não seja a sugestão de premissas que legitimam o mestre ignorante por via de um espaço em aberto sem ter nele, todavia, nenhuma forma de figuração ou via institucional de implementação. Não é preciso dizer que o contrato social não produziu nenhum acordo conciliatório ou que o espírito das leis anima muito mais coisas do que simplesmente uma definição racional de ordem política sem no entanto apontar consigo as visas de fato institucional – dilema do pensamento utópico concernente à crise inaugurada pelo pensamento revolucionário que Rosanvallon mitiga ao chama-lo meramente de ceticismo iluminista.

            Pertence à natureza da crise que uma decisão esteja pendente mas ainda não tenha sido tomada. Também reside em sua natureza que a decisão a ser tomada permaneça em aberto. Portanto, a insegurança geral de uma situação crítica é atravessada pela certeza de que, sem que se saiba ao certo quando ou como, o fim do estado crítico se aproxima. A solução possível permanece incerta, mas o próprio fim, a transformação das circunstâncias vigentes – ameaçadora, temida ou desejada -, é certo. A crise invoca a pergunta ao futuro histórico.: (Koselleck, 1999:111)

            A história da modernização das instituições, e da própria instituição da noção de governo na Europa moderna produz um ambiente em que aquilo que se pode chamar de “religião” é diluído em no conteúdo moral, o que implica na aposta da religião natural e de uma certa equivalência entre as religiões – isto é, uma indiferença segura entre elas. Esta indiferença pode ser traçada em algumas alterações fundamentais que pautam o terreno em que se altera a percepção do que é religioso e sua conversão, mais uma vez relativa, à moral. Uma delas, devidamente destacada por Michel de Certeau (1982, 151:208) está naquilo e que ele chama de transformação da heresia em alteridade religiosa na qual as diferenças que culminam em proscrição territorial dos cultos públicos em igrejas territorializadas tem seu lugar de fato e de direito. Os elementos de perseguição com seu caráter propriamente inquisitorial, ainda que persistentes, não são codificados nos arcanos de Estado, o que significa dizer que as regras do jogo mudaram – assim como aquilo que de fato está em jogo. Isto porque a mudança de seu estatuto implica necessariamente na alteração do enquadramento das seitas heréticas segundo um ou outro princípio. Nisso, a determinação jesuíta de que sugere que alguma religiosidade é melhor do que nenhuma ecoa como uma dimensão utilitária fundamental na qual todas as religiões contém princípios úteis à sociedade, segundo Montesquieu na carta 86 das Lettres perses, que encontram eco na necessidade da religião, da parte de Voltaire na manutenção da melhor ordem política. O que parece ser o movimento relevante, aquele que converte a religião em moral e a moral é ela mesma transformada reside no valor utilitário-funcional da religião e em como ela poderia ser útil; e útil para quê.
            Este é um jogo de combinatória bastante complexa, algo interminável. A combinação imediatamente interessante é aquela que anota a extrapolação do foro íntimo como terreno do político, algo interditado de forma expressa pelo absolutismo em sua diversidade. O que Koselleck aponta ao recuperar este episódio em questão, privilegiando enormemente o comentário a Hobbes é a produção da dimensão em que é gestada a crise, não somente como ato revolucionário mas também como mecanismo crítico que faz com que a crítica se desdobre vindo a se dobrar sobre si mesma. Entendendo que o império da lei que o absolutismo elabora estabelece algumas das primeiras interdições definitivas ao poder eclesiástico[1] (o primeiro estado), o que se lê em Hobbes é uma distinção radical entre ordem política e convicção, esta vivendo sob o Império da liberdade. Desde que em segredo.

            Assim, o homem é partido em dois. Hobbes o divide em uma metade privada e outra pública: os atos e as ações são submetidas, sem exceção, à lei de Estado, mas a convicção é livre, “in secret free”. Daí em diante será possível ao indivíduo refugiar-se em sua convicção sem ser responsável. Na medida em que o indivíduo tomava parte no mundo da política, a consciência tornava-se apenas uma instância de controle do dever de obediência. A ordem soberana dispensava o indivíduo de qualquer responsabilidade. “A Lei é a Consciência pública; Consciências privadas... são apenas opiniões privadas”. Mas,  se o indivíduo se atribui competência em um domínio reservado ao Estado, ele deve mistificar-se para não ser obrigado a prestar contas. A divisão do homem em uma esfera privada e uma esfera pública é constitutiva da gênese do segredo. O Iluminismo irá sucessivamente ampliar o foro interior da convicção; qualquer pretensão que incorresse em um domínio do Estado permanecia forçosamente encoberta pelo véu do segredo. A dialética entre segredo e movimento iluminista, desmascaramento e mistificação, surge desde o início do Estado absolutista.” (Koselleck, 1999:37)

            O que é instaurado pela crise revolucionária é a abolição desta fronteira na medida em que os grupos secretos que se reuniam em volta de suas aspirações morais em associações as mais variadas atingiram à marca da conspiração generalizada na medida em que reunir-se para certos fins seria o equivalente a conspirar. E conspirar necessariamente implicaria numa forma de ameaça interna estabelecendo outros paradigmas do reconhecimento do inimigo que não fossem ex-fronteira numa lógica de englobamento de contrários, o que já foi, forçando numa relação de analogia, o exercício com relação aos cultos heréticos.  Neste sentido a Revolução não implica na extinção da instância conspiratória de foro íntimo, mas na generalização da conspiração para todas as regiões tributáveis e, com isso a produção de conhecimentos compatíveis com o exercício das formas de poder presentes.

            O saber histórico-filosófico e o programa político fazem parte do mesmo segredo. A iniciação ao arcanum da tomada indireta do poder [o objeto desta passagem é o Iluminismo alemão]  era, ao mesmo tempo, uma iniciação à filosofia da história. Os próprios iluminados são os “arquivos da natureza” em que o curso da história já está estabelecido. Como em Rousseau, reina o início da história um estado total de inocência; segue-se um período de dominação e opressão; finalmente, inicia-se a moral que Jesus já havia ensinado, retomado pelas sociedades secretas para superar a era do dualismo. Alto e baixo, inferior e exterior deixam de ser fenômenos históricos, pois com o desenvolvimento sucessivo da moral desaparece toda forma de autoridade e, assim, também o Estado. Para os iluminados, o curso da história é ao mesmo tempo – graças à sua iniciação – a realização do seu plano secreto, de acordo com o qual esperavam eliminar o Estado. O curso dirigido da ação secreta, que consistia em minar o Estado por dentro para eliminá-lo – isto é, a ação política – foi projetado em uma linha temporal do futuro, de modo que o cumprimento dos desígnios da história era, ao mesmo tempo, a garantia da vitória não violenta da moral, da liberdade e da igualdade, e, portanto, o cumprimento da missão política dos maçons.”(Koselleck, 1999:116)

            Como podemos ver, compreender o fenômeno revolucionário é um exercício muito mais complexo do que a promoção de leituras de tipo “herança maldita” à forma de Rosanvallon. Não porque não exista, mas por mobilizar muito mais do que alguma forma específica de ceticismo diante as formas simbólicas da tradição. O que está se inaugurando é um modo de relação e, com isso, um reposicionamento dos termos e uma conformação que dá uma certa unidade dos discursos oferecendo à Revolução o seu caráter propriamente mitológico no qual as convicções puderam, finalmente, sair do armário – especialmente na forma de poder indireto, como seria o caso de ferramentas como a filosofia da história (Koselleck, 1999:118). Entra em pauta a diferença entre Estado e sociedade, sociedade esta como equalizadora das demais diferenças como as de caráter religioso – prédicas da igualdade jurídica entre todos os cidadãos cujo fundamento é moral. Temos até agora, em mãos, dois dos principais termos da alegoria política revolucionária: liberté e égalité, nenhum deles exercido no seio do Estado que deve ser, na circunstância ótima de sua justificação, o seu garante ou tutor. Não mais soberano, portanto, o Estado é um meio de concretização de aspirações cuja relação com os cidadãos segue a lógica do mistério no qual não cabe nenhuma justificação plausível senão a tomada de decisões e a condução administrativa – eis o pós-revolucionário em sua versão prosaica.
            O que se faz então tendo em mente não somente a Revolução mas a partir da problematização dos excessos e crimes cometidos durante o Terror abrem guarda para o redimensionamento da vontade geral como futuro indiscernível da composição entre Estado e sociedade para a composição do preenchimento institucional por projetos que recusem a dissimulação que faz com que projetos políticos sejam tratados como filosofia da história. A herança crítica do Iluminismo – a crise – produziu um terreno no qual a política passa a operar com o horizonte da probabilidade matemática cuja generalização não se dá senão de forma tardia mas que tem seu ponto de partida nos projetos articulados na geração dos idéologues:

            O esforço dos ideólogos para fundar a política e a moral cientificamente desdobra-se em três direções. A primeira é a “matemática social”. A expressão é de Condorcet em seu Tableau general de la Science qui a pour objet l’application du calcul aux sciences Morales et politiques. Ao fundar a ciência do provável ou ciência da decisão tinha como objetivo instituir uma disciplina que englobaria por sua vez a análise social e a matemática. A inspiração é, naturalmente, parente daquela Arithmétique politique tradicional que fora retomada inegavelmente no começo da Revolução por via da publicação dos trabalhos de Lagrange e de Lavoisier.”(Rosanvallon, 1985:21-22)

            As outras duas dimensões as quais Rosanvallon menciona são a fisiologia social, cuja referencia fundamental é a figura de Cabanis e, obviamente, a economia política, disciplina vigente desde o exercício dos fisiocratas. A primeira criação tem como objetivo a constante de observações relativas à dimensão moral, sinal diacrítico de humanidade cuja ciência se ampara na fisiologia, na análise das idéias (daí ideologues) e na moral. Nestes termos, especialmente a partir de 1814 – fim do Império de Napoleão – este tipo de projeto político se amarra no que Rosanvallon chama de cultura de oposição liberal que clama, ao mesmo tempo por uma cultura de governo que desenvolva do ponto de vista técnico aquilo que seguira como um salto no vazio do futuro interpretado pelo arcano da vontade geral. Em determinado círculo, imediatamente relevante para o tema e questão, se faz “necessário terminar a Revolução, construir um governo representativo estável e estabelecer um governo garante das liberdades fundadas na e pela Razão.” (Rosanvallon, 1985:26). O alvo das investigações de Rosanvallon é uma espécie de liberalismo reformado pelos eventos revolucionários nos quais as ações deliberadas também recaíram sob suspeição e que, diante disso, faz com que a religião que já determinada a uma função moral de utilidade tenha seu denominador comum igualmente reformado. A moral como modo integra a imaginação de meio, no caso, de governo. Daí a pertinência dos projetos relativos à Instrução Pública; também a pertinência de figuras como a de François Guizot e o destino das religiões durante e após a Revolução. Porque ele mesmo, Guizot, condutor da reforma da instrução pública francesa nos anos 1830, é calvinista.


[1] Ao discutir as dimensões em que a religião é transformada em forma de politização e folclorização, Michel de Certeau (1985) recupera episódios em que a ética cristã é considerada já destruída ou metamorfoseada em controle político. A querela do jansenismo situa este problema ao contrapor a mediação estatal com a mediação religiosa procurando estabelecer a melhor clivagem entre uma e outra. Do agostinianismo radical jansenista – e aqui, convém notar, ”agostinianismo” denota tanto uma nota que é tanto teológica quanto política – a única mediação possível é a da coroa, uma vez que a mediação religiosa pertence a Jesus Cristo, e somente a ele, questionando fortemente a autoridade papal e seu papel no pastoreio das almas. Nisso, é a autonomia da vida pública que entra em questão privatizando eventos como os de ordem mística dissociando a vida cristã das práticas civis: “Este tipo de combinação já esboça uma organização que se generaliza no século XVIII. Pode-se dizer também que a reflexão das Luzes exuma os postulados dela extraindo as suas consequências teóricas. Certamente isto não mais acontece sob a forma belicosa que a politização da moral havia adquirido entre os apologetas da “razão de Estado” sob Richelieu. Seu lugar, entretanto, permanece o mesmo: uma “razão” política de práticas articuladas  entre elas. Mas ele não é mais feito apenas pelos juristas ou clientes do rei; é constituído durante os anos decisivos de 1660-1680. O Estado se torna o centro poderoso da administração nacional, a grande empresa de racionalização econômica, financeira e estatística. “Pertence quase todo ao domínio do voluntário, do deliberado”: é o arco da nova aliança entre a razão (o Logos) e o fazer (as práticas que fazem a história). O século XVIII é “por excelência o século da política, logo, o século do Estado.”(Certeau, 1985:173:174). Convém ressaltar que a deliberação não está atrelada à decidir por convicção moral, mas por adequação a uma estrutura de decisão própria ao Estado como instância deliberativa. Ainda que hajam agentes religiosos, age-se fora da religião inclusive, progressivamente, do ponto de vista litúrgico.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Em partes inteiras

Nem uma gota cai
só,
nenhuma,
pois divide-se em outras tantas
gotas,
por menor que seja é sempre
gota
a ser solta enquanto cai no mililitro que conta
gota
a
gota
nos menores traços,
nos menores gestos,
e mesmo ao chão, antes de deitar-se
nua
a gota se multiplica - quando se divide -
e então
imagine a multidão da chuva.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.



LAGRÉE, Michel . Religião e tecnologia: a bênção de Prometeu. EdUSC. Bauru. 2002.
TAUSSIG, Michael. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem: um ensaio sobre o terror e a cura. Paz e Terra. São Paulo. 1993.
TYLOR, Edward Burnett. Primitive Culture: researches into the development of mythology, philosophy, religion, language, art and custom. John Murray. Londres. 1873 [1871]



2- Numa outra ponta, já no final do século XIX, no outro lado do canal da Mancha, uma pesquisa que mais adiante virá a se oferecer para a antropologia social como um cânone de um passado trágico. “The enquiry as to the relation of savagery to barbarism and semi-civilization is almost entirely in pre-historic or extra-historic regions. This is of course an unfavourable condition, and must be frankly accepted.” (Tylor, 1873:35). Uma pesquisa em que conceitos fundamentais, cultura e civilização, são tomados como sinônimos relativos – isto é, sinônimos quando um e outro se relacionam somente entre si numa remissão selvagem. Não quero avançar ainda mais sem levar em conta, assim como o faz a historiografia de Michel Lagrée (2002), de que se trata de um pensamento conduzido pela imagem da industrialização, imagem esta que pergunta sobre a selvageria do e no industrialismo. Se falamos sobre o selvagem do industrialismo, nos remetemos à imanência selvagem, ao selvagem implícito nas ações de industriais e seus ideais de forma similar aos selvagens da colonização na dialética apontada por Michael Taussig (1993) – no universo em que a última fronteira são os selvagens, só a selvageria se impõe fazendo da violência, igualmente selvagem, uma relação de vínculo e, ao mesmo tempo, de indistinção. Assim, há algo de selvagem no seio do industrialismo em que a exploração do trabalho é, seguramente, uma das suas dimensões mais visíveis.
            Se falamos sobre a selvageria no industrialismo, então o tópico é o da identificação numa tábula classificatória em que o caráter da ação é propriamente simbólico e, portanto, transcendental dizendo respeito aos métodos de observação que fazem o selvagem figurar na codificação das teorias industriais, dentre as quais a antropologia social. Que se diga que nem toda antropologia moderna é industrial e que as trilhas abertas por Tylor não são necessariamente formas de uso comum de evolucionismo. Ainda assim, em Primitive Culture encontramos o vocabulário comum às teorias do desenvolvimento e do progresso onde reside de fato sua reflexão sobre a industrialização que é, vale lembrar, um modo da ação humana que tange discussões complexas sobre a organização social em suas mais diversas faces. Sua generalização, e a antropologia de Tylor não é outra coisa, tem efeitos tão interessantes quanto o teve a noção de verdade revelada – isto é, visto do ponto de vista industrialista.
            A evocação da verdade revelada, e com ela todo o universo religioso politicamente relevante em meio ao jogo da planificação da vida em comum da economia política, conduzem a leitura dos escritos de Tylor para a cena do desalojamento do religioso, de sua condição futura de locatário e de como a reflexão industrial o trata como um meio para um devir que deveio. O futuro se faz presente em cada gesto, não sendo o futuro da perfeição da Civitate Dei antecipada pela Igreja Romana mas o futuro da sociedade perféctil da Civitate Homini cuja força se encontra canalizada pelos dutos de energia à vapor. A história já sofre, aqui, as tentações da termodinâmica. Neste ambiente em especial convém perguntar se é possível tratar o industrialismo antropológico como mais uma das respostas ao absolutismo teológico e ao juízo sintético histórico que responde pelo conceito de “secularização”. Particularmente se colocarmos, como o faz Tylor, as lentes que enxergam a história por movimentos de difusão cultural e o drama das sobrevivências que, com relação à modernidade têm especial valor na discussão sobre formas jurídicas com relação às quais convém perguntar se são meio ou forma de vida; e se no contexto adaptativo mais radical que põe as formas de vida em risco de extinção, se convém narrarmos a seleção natural por via da mecânica clássica ou se há margem para algum dispositivo com a forma de uma evolução criadora que o neo-lammarckismo hoje chama de epigenética.
            Antes de mais nada convém avançar com certo comedimento, porque há muita velocidade na antropologia de Tylor. Os deslocamentos geográficos e históricos se dão a serviço de uma colagem sem preocupações relativas à etiqueta, diplomacia ou liturgia – de cargo ou de sacramento. O mesmo se dá com a sinonímia entre civilização e cultura, que é imediata e ligeira; o pré-histórico e o extra-histórico se apresentam como indiferentes entre si determinando terem o mesmo significado – no que faz surgir a primeira dificuldade. Isto porque os conceitos mobilizados por Tylor não têm significado preciso. Sua definição se dará por regiões, que é o que fará par com o conceito enquanto significante, dado que são remissíveis a formas de vida. Quando ainda no primeiro capítulo de Primitive Culture Tylor desabilita a antropologia racista ao buscar a refutação da fundamentação poligenista de seus pressupostos, o mesmo Tylor faz uma remissão secreta a Claude Bernard, em nome da classificação dos estágios culturais – que, de uma forma pervertida é a transformação, mesmo que não intencional (diria um leitor de Karl Löwith) da teologia de Joachim dei Fiori em uma teoria, não do futuro, mas do presente. A fisiologia corre nas veias do industrialismo na medida em que, para o melhor entendimento da distribuição global da humanidade , será preciso “dissecar detalhadamente e então classificar” (1973:07) em grupos que correspondam à espécie como são os utensílios, o artesanato, os mitos e tudo o mais que seja fruto da atividade humana, esta espécie industriosa.

            What this task is like, may be almost perfectly illustrated by comparing these details of culture with the species of plants and animals studied by the naturalist. To the ethnographer, the bow and arrow is a species, the habit of flattening children’s skull is a species, the practice of reckoning numbers by tens is a species. The geographical distribution of these things, and their transmission from region to region, have to be studied as the naturalist studies the geography of his botanical and zoological species.” (1873:07)

            Há aqui, antes de qualquer outra coisa, o eco da proliferação das teses sobre a especificação. Torna-se muito difícil, na verdade, saber o que é uma espécie e, todavia, os artefatos humanos devem ser convertidos neste utensílio classificatório e sua classificação responde à conformação geográfica produtiva na qual a cultura parece corresponder a uma certa infra-estrutura de produção e, ao mesmo tempo, no produto ele mesmo. O significado é fundamentalmente o indício de sua sobrevivência em meios mais ou menos hostis – o modo de compreensão da relação com as demais formas de vida com as quais compete, principalmente, por subsistência (uma variação do tema do connatus).
            No entanto, vemos que o etnógrafo deve reconhecer nos artefatos os traços de uma forma de vida, o que faz do reconhecimento de formas culturais um componente anímico do pensamento expresso em índices reconhecíveis. É o etnógrafo que vamos reconhecer, tramando na prosa de Tylor (e não pela prosa dele) o encontro entre o selvagem imanente e o transcendental, o que permite refletir melhor sobre o industrialismo como aceleração produzido por regiões de indiferença. Assim, para que uma teoria da cultura aos modos da antropologia do progresso da espécie humana seja posta em questão é preciso reconhecer que tanto faz o conceito ter tal ou qual significado. O que importa para o esquema  é a especificidade da forma de vida em seus traços constitutivos, a forma pela qual pode ser reconhecida e que a conduz à sua própria generalidade. Mas, e aqui arrisco dizer sem o devido exame, não é qualquer conceito cujo significado é indiferente, mas somente os conceitos fundamentais, como civilização e cultura mostrando, metodologicamente, um exercício contrateológico no qual o fundamento não está na palavra proferida, mas nas extensões que ela produz

domingo, 23 de novembro de 2014

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma da religião.


COHEN, Bernard Jerome. Revolution in Science. Belknap/Harvard. Londres/Cambridge. 1985.
COUSIN, Bernard; CUBELLS, Monique; MOULINAS, René. La pique et la croix: histoire religieuse de la Révolution Française. Centurion. Paris. 1989.
FRAZER, James George. The golden bough: the magic art (2/13 vol.). Macmillan. Londres.1990 [1913].
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro. Contraponto. 2006. 


1- 1879 segue sendo um marco inescapável. O processo revolucionário que parte de um esforço nacional para uma reforma fiscal e orçamentária (budgetaire) se transformou em signo de ruptura no tempo ao ponto que o conceito de revolução foi, ele mesmo, revolucionado. Aquilo que outrora enunciava a retomada do ciclo normal própria das órbitas celestes, por exemplo em De revolutionibus orbium coelestium de Copérnico, (Koselleck,2006; Cohen, 1985) em que a revolução se dá quando a trajetória percorrida pelos astros e a retomada em um espaço arbitrariamente definido como Delta Zero marca a presença de um mesmo astro em t=2, isto é, num segundo momento – com o perdão da notação newtoniana. Começar de novo a mesma trajetória no tempo, eis o que fora a revolução como processo e eis o mesmo processo então revolucionado por uma outra revolução.
            Esta revolução nova parece acrescentar uma outra nota ao processo no qual não é a regularidade indefectível da natureza quem conduz os esforços, mas a ação humana que assume uma outra dimensão, propriamente humanista e portanto protagonista de seu próprio meio, fazendo da retomada da ordem como a extinção de relações postas anteriormente. Não se trata somente de uma substituição de postos como na morte ritual – e real – do sacerdote do templo de Diana em Nemi (Frazer, 1990), mas uma alteração dos termos de relação que fundamentam a organização social instituindo, no caso da Revolução Francesa, a organização social ela mesma. O processo revolucionário que pretendera ser uma correção de rumos alterou a noção de rumo correto, o que por fim combina com a imagem de um motim em uma enorme galera que culmina na alteração do que é um rumo correto alterando a noção de destino – da perfeição à perfetctibilidade, por exemplo. Dito de outra forma, trata-se da filosofia da história entendida como ato governamental.
            O que faço nos dois parágrafos anteriores é um sumário bastante generalista. É desnecessário ressaltar os riscos de um exercício de pesquisa que tenha como ponto de partida algo desta natureza que, diante das requisições e cautelas de um discurso acadêmico-científico, é bastante grosseiro. Dizer que o processo Revolucionário francês começa como um ato governamental para, por fim mudar aquilo que significa governar, parece ser tudo, menos preciso. A imprecisão da idéia, ainda assim, parece tentadora. Obviamente que esta sugestão não pretende se indispor com uma outra, a que atenta para uma dimensão sociológica dos processos históricos que afirma que, por fim, um dado evento com as proporções da Revolução Francesa se encontrava gestado com enorme antecedência e que a depender da diretriz narrativa pretendida, a Revolução teria uma data de partida diferente. Suas origens culturais não seriam, portanto, suas origens sociológicas, alterando sua datação no caso da distinção de fato ter alguma relevância. E talvez tenha, mas como distinção, digamos, nativa. E isto faria de minha grosseria algo interessante porque boa parte das categorias nativas em movimento no período pós-revolucionário ressoarão no pensamento sociológico na forma de categorias analíticas e conceitos sociológicos. O que estou dizendo é que após a Revolução dificilmente o pensamento sociológico poderia ser discriminado das reformas que se inserem como postulado das políticas de Estado. Seguramente que a sociologia pode ser relacionada a diversas outras dimensões da história moderna, mas, repito que dificilmente poderia ser dissociada do esforço persistente de reforma do Estado que conduziu grande parte das políticas conduzidas pela França pós-revolucionária.
            Visto de um ponto de vista não-especializado o jogo de sucessivas reformas tem uma aparência de mover as coisas de lugar, quando não a de tirar para então substituir por outras cuja crônica se transforma na narrativa dos arcanos do Estado e seus demiurgos que logo se transformam em biografias coletivas que atendem por um nome só: Império de Napoleão, de Louis Philippe, o governo de Thiers. Não são somente nomes masculinos, mas períodos e unidades de espaço nos quais incidem os gestos de governo de cada uma destas personagens, nem sempre de corpo presente, mas por via da presença da chancela e, quando não, de sua forja. Assim, o que fazer com deposições como a da coroa que caiu guilhotina abaixo; ou mesmo da expulsão da religião pela porta dos fundos? Expulsão? É preciso ver mais de perto este sinal que pode ser, no mais das vezes, invertido ou pelo menos severamente atenuado exatamente porque este mesmo sinal é diversas vezes confundido com o sinal da cruz.
            No documento da Constituição civil do clericato de 12 de julho de 1790 a Igreja é varrida do solo francês. O processo já duramente questionado se torna uma fratura ainda mais agressiva e, convém lembrar, diversas vezes criminosa durante o ano II da Revolução (1793-1794) quando as raízes do culto sofrem golpes com vistas na sua total extirpação do seio da vida pública, período no qual se desenham substitutos na forma de festas cívicas. Daí por diante, depois da abolição do dízimo, da nacionalização dos bens da Igreja e da supressão das ordens religiosas a fronteira é posta: entre a religião e o Estado há uma fronteira na qual a França deixa de ter uma religião oficial. O culto religioso é uma atividade, quando não ilegal, dali por diante extra-oficial. Mas quais os demais efeitos da deposição para além da descrita? Porque é preciso destacar um ponto importante:

            Em 1789 a Igreja ocupa, na França, o primeiro plano ao mesmo tempo político, social, intelectual e moral. O clericato é a primeira ordem do reinado, sendo a única ordem organizada em escala nacional tendo suas assembleias com relação às quais voltaremos a falar (Cousin et. al, 1989, voltarão a falar - não eu). O catolicismo é religião de Estado de forma que nenhuma outra confissão é, em princípio, tolerada após a revogação do édito de Nantes pelo édito de Fontainebleau, de 1685.” (Cousin et al.: 13).

            Isto não quer dizer, obviamente, que o processo Revolucionário se transformou numa festa ecumênica em que todas as religiões puderam vir à luz, mas que se formou algo peculiar mediante uma proibição universal do culto público religioso. Por via desta proibição que atingia inclusive aquela que outrora fora a religião oficial – e uma das razões de ser da crise econômica, vale lembrar -, um ato governamental produzia um cenário em que todas as religiões indiferiam entre si dado que equivalentes. Este gesto, nesta escala, produzia uma certa indiferença com relação à fé, à crença e tudo aquilo o mais que os antropólogos modernos passaram a chamar de categorias nativas que, em não poucos casos caberiam na alcunha “teologia”. No caso, a católica.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Prolixo

Mover-me na direção de alguém;
mover-me sem
me mover
não é,
em condição alguma,
nem uma coisa
nem
outra. 

domingo, 9 de novembro de 2014

POUR L'AMOUR D'HENRI PIRENNE


Os bárbaros estão chegando,
ouvimos para além das ruas
uma forma zombeteira de
brisa, que ameaça dizendo
que virão tomar tudo,
revirar do avesso para
então deixar a vida,
toda ela,
como está;
da língua aos impostos,
do amor ao celibato,
tudo,
tudo,
deve permanecer romano
no lugar dos romanos,
e viver será de brisa
que zomba da gravidade de Tertuliano
e seu medo dos espetáculos.