terça-feira, 14 de julho de 2015

De oito

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“Sinceramente, eu não sei o que dizer. Não sei por onde começar.” 

Deveríamos estar caminhando. Não conseguimos ainda dar o primeiro passo. A verdade é que quase começamos a chorar assim que colocamos os pés na rua. De minha parte, confesso, que me senti pressionado a fazer de seu choro o meu e então, chorar em coro. Da parte dele, não sei dizer. Não sei por onde começar.

domingo, 12 de julho de 2015

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre as ruínas e o fantasma do religioso.


3 – França -Os desdobramentos dos acontecimentos revolucionários, os de 1793 em particular, provocaram uma interrogação fundamental a respeito do sentido da idéia de democracia vindo assim a deslocar o centro de gravidade da reflexão política. No começo do século XIX a questão crucial que toda uma parte dos autores “liberais” busca resolver é a das relações entre liberalismo e democracia. Seu objetivo é de compreender as condições nas quais o ideal democrático da participação na coisa pública se voltou, com ferocidade, contra as liberdades.  (Rosanvallon, 1985:14)

            O hiato revolucionário, eis o alvo de Rosanvallon na recuperação de uma determinada memória e imaginação políticsa então precipitada, não das barricadas, mas dos esforços de seu desmonte. Esta tarefa, saliento, somou esforços de todo um século dado que o hiato é mais sutil e trabalhoso do que uma espécie de lapso que se interpõe entre a Revolução e o futuro. A história política francesa que atende aos apelos do liberalismo político do século XVII se volta fundamentalmente para a resolução de problemas que a orientação dos escritos de pensadores como Rousseau e Montesquieu simplesmente não poderiam prever. Não me refiro, obviamente, a nenhum componente da escatologia secularizada e as tragédias narradas em suas entranhas. Estou apontando para o problema, nada banal, de que Rousseau e Montesquieu são, ao mesmo tempo, pensadores e agentes políticos quando vivos; são nomes nos frontispícios de livros que circulam a despeito do que viessem a fazer, ou de onde estivessem e qual sua posição relativa aos eventos mobilizados em seu nome. Se ao lermos livros antigos temos um acesso facultado à comunicação com os mortos – doutrina da historiografia moderna em sua relação com toda sorte de documentos -, por outro lado escrever é entrar no mundo dos mortos sem, no entanto, morrer completamente. Se é que é possível morrer completamente, por escrito, rastro que antecipa a morte sem matar e que, de uma forma ou de outra, parece deixar as coisas exatamente como estão fazendo da vida uma espécie de rumor tão perpétuo quanto será o seu registro:

            A poeira do tempo persiste. É bom respira-la, ir, voltar por via desses papéis, dossiês e registros. Eles não são mudos e tampouco tão mortos quanto parecem. Jamais toquei em nada sem que algo saísse, se revelasse... É a alma.”(Michelet, 1979:45)

            A poeira sobre os arquivos era onde Michelet comungava com os Processos Verbais da Revolução e, com isso, seguia os traços e a alma daqueles que revelavam as faces e detalhes da erupção que recriava toda a história francesa produzindo uma clivagem definitiva – ou tanto quanto uma clivagem definitiva pudesse perdurar. O antigo e o moderno numa batalha em que nomes de frontispícios como Rousseau e Montesquieu passam a desempenhar um papel de focos de remissão, sempre ambivalente, próprias da orientação bibliográfica que parece ser, antes de mais nada, de caráter anímico de sua própria difusão. Joseph Jacotot é rousseauniano. Mas em Émile não é possível encontrar nada que não seja a sugestão de premissas que legitimam o mestre ignorante por via de um espaço em aberto sem ter nele nenhuma forma de figuração ou via institucional, e muito menos a técnica de implementação da educação natural. Não é preciso dizer que o contrato social, em si, não produziu nenhum acordo conciliatório ou que o espírito das leis anima muito mais coisas do que simplesmente uma definição racional dos sistemas políticos sem no entanto servir de constituição para país algum. Este componente próprio do dilema do pensamento utópico é concernente à crise inaugurada pelo pensamento revolucionário que Rosanvallon, em remissão constante à obra de Reinhart Koselleck, mitiga ao chama-lo meramente de ceticismo iluminista.

            Pertence à natureza da crise que uma decisão esteja pendente mas ainda não tenha sido tomada. Também reside em sua natureza que a decisão a ser tomada permaneça em aberto. Portanto, a insegurança geral de uma situação crítica é atravessada pela certeza de que, sem que se saiba ao certo quando ou como, o fim do estado crítico se aproxima. A solução possível permanece incerta, mas o próprio fim, a transformação das circunstâncias vigentes – ameaçadora, temida ou desejada -, é certo. A crise invoca a pergunta ao futuro histórico. (Koselleck, 1999:111)

            A história da modernização das instituições, e da própria instituição da noção de governo na Europa moderna, produz um ambiente em que aquilo que se pode chamar de “religião” é diluído [1]no conteúdo moral, na esfera dos costumes e da convicção ética, o que implica na aposta da religião natural e de uma certa equivalência entre as religiões – isto é, uma indiferença segura entre elas. Os elementos de perseguição com seu caráter propriamente inquisitorial, ainda que persistentes, não estão mais codificados nos arcanos de Estado, o que significa dizer que as regras do jogo mudaram – assim como aquilo que de fato está em jogo. Isto por que a mudança de seu estatuto implica necessariamente na alteração do enquadramento das seitas heréticas segundo um ou outro princípio. Nisso, a determinação jesuíta que sugere que alguma religiosidade é melhor do que nenhuma ecoa como uma dimensão utilitária fundamental na qual todas as religiões contém princípios úteis à sociedade, segundo Montesquieu na carta 86 das Lettres perses, que encontram eco na necessidade da religião, da parte de Voltaire, o cimento da melhor ordem política – qualquer religião. [2]O que parece ser o movimento relevante, aquele que converte a religião em moral sendo a moral ela mesma transformada, reside no valor utilitário-funcional da religião e em como ela poderia ser útil; e útil para quê.
            Este é um jogo de combinatória bastante complexa, algo interminável. A combinação imediatamente interessante é aquela que anota a extrapolação do foro íntimo como terreno do político, algo interditado de forma expressa pelo regime absolutista que produzira o primeiro divórcio litigioso entre religião e política da França católica. O que Koselleck aponta ao recuperar este episódio em questão, privilegiando enormemente o comentário a Hobbes, é a produção da dimensão em que é gestada a crise, não somente como ato revolucionário mas, também, como mecanismo crítico que faz com que a crítica se desdobre vindo também a dobrar-se sobre si mesma. Entendendo que o império da lei que o absolutismo elabora estabelece algumas das primeiras interdições definitivas ao poder eclesiástico[3] (o primeiro Estado), o que se lê em Hobbes é uma distinção radical entre ordem política e o domínio da convicção, este vivendo sob o Império da liberdade, desde que em segredo.

            Assim, o homem é partido em dois. Hobbes o divide em uma metade privada e outra pública: os atos e as ações são submetidas, sem exceção, à lei de Estado, mas a convicção é livre, “in secret free”. Daí em diante será possível ao indivíduo refugiar-se em sua convicção sem ser responsável. Na medida em que o indivíduo tomava parte no mundo da política, a consciência tornava-se apenas uma instância de controle do dever de obediência. A ordem soberana dispensava o indivíduo de qualquer responsabilidade. “A Lei é a Consciência pública; Consciências privadas... são apenas opiniões privadas”. Mas,  se o indivíduo se atribui competência em um domínio reservado ao Estado, ele deve mistificar-se para não ser obrigado a prestar contas. A divisão do homem em uma esfera privada e uma esfera pública é constitutiva da gênese do segredo. O Iluminismo irá sucessivamente ampliar o foro interior da convicção; qualquer pretensão que incorresse em um domínio do Estado permanecia forçosamente encoberta pelo véu do segredo. A dialética entre segredo e movimento iluminista, desmascaramento e mistificação, surge desde o início do Estado absolutista.” (Koselleck, 1999:37)

            O que é instaurado pela crise revolucionária é a abolição desta fronteira na medida em que os grupos secretos que se reuniam em volta de suas aspirações morais em associações as mais variadas atingiram à marca da conspiração generalizada na medida em que reunir-se para certos fins seria o equivalente a conspirar. E conspirar necessariamente implicaria numa forma de ameaça interna estabelecendo outros paradigmas do reconhecimento do inimigo que não fossem ex-fronteira numa lógica de englobamento de contrários, este que já fora exatamente o exercício com relação aos cultos heréticos.  Neste sentido a Revolução não implica na extinção da instância conspiratória de foro íntimo, mas na generalização da conspiração para todas as regiões tributáveis e, com isso a produção de conhecimentos compatíveis com o exercício das formas de poder presentes.

            O saber histórico-filosófico e o programa político fazem parte do mesmo segredo. A iniciação ao arcanum da tomada indireta do poder [o objeto desta frase é o Iluminismo alemão]  era, ao mesmo tempo, uma iniciação à filosofia da história. Os próprios iluminados são os “arquivos da natureza” em que o curso da história já está estabelecido. Como em Rousseau, reina o início da história um estado total de inocência; segue-se um período de dominação e opressão; finalmente, inicia-se a moral que Jesus já havia ensinado, retomado pelas sociedades secretas para superar a era do dualismo. Alto e baixo, inferior e exterior deixam de ser fenômenos históricos, pois com o desenvolvimento sucessivo da moral desaparece toda forma de autoridade e, assim, também o Estado. Para os iluminados, o curso da história é ao mesmo tempo – graças à sua iniciação – a realização do seu plano secreto, de acordo com o qual esperavam eliminar o Estado. O curso dirigido da ação secreta, que consistia em minar o Estado por dentro para eliminá-lo – isto é, a ação política – foi projetado em uma linha temporal do futuro, de modo que o cumprimento dos desígnios da história era, ao mesmo tempo, a garantia da vitória não violenta da moral, da liberdade e da igualdade, e, portanto, o cumprimento da missão política dos maçons.”(Koselleck, 1999:116)

            Como podemos ver, compreender o fenômeno revolucionário é um exercício muito mais complexo do que a promoção de leituras de tipo “herança maldita” à forma de Rosanvallon. Não porque tal herança, a longa produção de uma Reforma do Estado, não exista, mas por mobilizar muito mais do que alguma forma específica de ceticismo diante das formas simbólicas tradicionais. O que está se inaugurando é um modo, uma escala de relação e, com isso, um reposicionamento dos termos e uma conformação que dá uma certa unidade dos discursos que oferecem à Revolução o seu caráter propriamente mitológico onde as convicções puderam, finalmente, sair do armário – especialmente na forma de poder indireto, como seria o caso de ferramentas como a filosofia da história (Koselleck, 1999:118). Entra em pauta a diferença entre Estado e sociedade, sociedade esta como equalizadora das demais diferenças como as de caráter religioso predicado nos termos da igualdade jurídica entre todos os cidadãos, cujo fundamento é moral. Temos até agora, em mãos, dois dos principais termos da alegoria política revolucionária: liberté e égalité, nenhum deles exercido no seio do Estado que deve ser, na circunstância ótima de sua justificação, o seu garante ou tutor. Não mais soberano, portanto, o Estado é um meio de concretização de aspirações cuja relação com os cidadãos segue a lógica do mistério no qual não cabe nenhuma justificação plausível senão a tomada de decisões e a condução administrativa – eis o pós-revolucionário em sua versão prosaica.
            O que se faz então tendo em mente é não somente a Revolução mas, a partir da problematização dos excessos e crimes cometidos durante o Terror, o redimensionamento da vontade geral como futuro indiscernível da composição entre Estado e sociedade por via de seu preenchimento institucional que recusasse a dissimulação desta nova aliança, enquadrando tais projetos políticos na gramática da filosofia da história. A herança crítica do Iluminismo – a crise – produziu um terreno no qual a política passa a operar como horizonte da probabilidade matemática cuja generalização não se dá senão de forma tardia, mas que tem seu ponto de partida nos projetos articulados na geração dos idéologues:

            O esforço dos ideólogos para fundar a política e a moral cientificamente desdobra-se em três direções. A primeira é a “matemática social”. A expressão é de Condorcet em seu Tableau général de la Science qui a pour objet l’application du calcul aux sciences Morales et politiques. Ao fundar a ciência do provável ou ciência da decisão, tinha como objetivo instituir uma disciplina que englobaria, por sua vez, a análise social e a matemática. A inspiração é, naturalmente, parente daquela Arithmétique politique tradicional que fora retomada inegavelmente no começo da Revolução por via da publicação dos trabalhos de Lagrange e de Lavoisier.”(Rosanvallon, 1985:21-22)

            As outras duas dimensões que Rosanvallon menciona são a fisiologia social, cuja referência fundamental é a figura de Cabanis e, obviamente, a economia política, disciplina vigente desde o exercício dos fisiocratas do Antigo Regime. A primeira criação tem como objetivo a constante de observações relativas à dimensão moral, sinal diacrítico de humanidade cuja ciência se ampara na fisiologia, na análise das idéias (daí ideologues) e na moral. Nestes termos, especialmente a partir de 1814 – fim do Império de Napoleão – este tipo de projeto político se amarra no que Rosanvallon chama de cultura de oposição liberal que clama por uma cultura de governo que desenvolva, do ponto de vista técnico, aquilo que seguira como um salto no vazio do futuro interpretado pelo arcano da vontade geral rousseauniana. Em determinado círculo, imediatamente relevante para o tema e questão, se faz “necessário terminar a Revolução, construir um governo representativo estável e estabelecer um governo garante das liberdades fundadas na e pela Razão.” (Rosanvallon, 1985:26). O alvo das investigações de Rosanvallon é uma espécie de liberalismo reformado pelos eventos revolucionários nos quais as ações deliberadas também recaíram sob suspeição. Diante disso, fazem com que a religião que, já designada para exercer uma função moral, tenha seu denominador comum igualmente reformado e como tal, sob o signo da suspeição. A moral como modo de relação de escalas variáveis integra a imaginação de meio de condução de um governo. Daí a pertinência dos projetos relativos à Instrução Pública; também a pertinência de figuras como a de François Guizot e o destino das religiões durante e após a Revolução. Porque ele mesmo, Guizot, condutor da reforma da instrução pública francesa nos anos 1830, é calvinista[4].


[1] Como já vimos, esta indiferença pode ser traçada em algumas alterações fundamentais que pautam o terreno da mudança de percepção do que é religioso e sua conversão, mais uma vez, à moral. Uma delas, devidamente destacada por Michel de Certeau (1982, 151:208) está naquilo e que ele chama de transformação da heresia em alteridade religiosa na qual as diferenças que outrora culminavam em proscrição territorial dos cultos públicos em igrejas territorializadas passa a ter seu lugar de fato e de direito.
[2] Este tipo de afirmação equivale dizer que uma religião é, por fim, uma religião qualquer, o que é uma forma de inversão da teologia política em busca da negação de sua possibilidade exatamente ao dispor a equivalência entre todas as matrizes teológicas. Resta saber se esta negação, liberal e iluminista, equivale a uma teologia política negativa. Nos casos de Montesquieu e Voltaire, arrisco dizer que sim, no sentido e que religião é aquilo que se manifesta em todas as religiões sem ser nenhuma delas. No entanto, sugerir este tipo de solução não permite compreender como determinadas clivagens são vividas. A dimensão negativa dos objetos modernos, os mesmos que preside a alvorada da modernidade religiosa, recebe a atençãoo de Johannes Fabian, que aqui, merece atenção: “Em geral, os philophes, a quem reconhecemos em muitos aspectos como os nossos antepassados imediatos, alcançaram somente um tipo de modernidade negativa. Nas palavras de Carl Becker: “Suas negações, e não suas afirmações, nos permitem tratá-los como almas gêmeas” – The heavenly city of the Eithteenth-Century Philosophers (1963:30). Ou, como exprime Gusdorf, esses pensadores substituíram o mito cristão de Bossuet pelo “mito-história da razão” que, em grande parte, continuou a utilizar mecanismos de períodos anteriores. Se alguém deseja mostrar como o Tempo se tornou secularizado do século XVIII em diante, deve se concentrar na transformaçãoo da mensagem da “história universal, em vez de nos elementos de seus códigos. Este último exibe uma notável continuidade em relação a períodos anteriores, até os cânones greco-romanos das artes da memória e retórica. A transformação da mensagem tinha que ser operada sobre aquilo que identificamos como a especificidade da “universalidade” cristã. A mudança também tinha que ocorrer no nível da intenção ou “julgamento” político. Foi nesse nível que os philosophes precisaram sobrepujar Bossuet, que “nunca se mostrou relutante em julgar todo o passado à luz do evento mais importante de todos os tempos: a breve passagem do homem-deus Jesus por uma vida terrena”- Introdução de Discourse on Universal History, (1976:xxvi)” (Fabian, 2013:43).
[3] Ao discutir as dimensões em que a religião é transformada em forma de politização e folclorização, Michel de Certeau (1985) recupera episódios em que a ética cristã é considerada já destruída ou metamorfoseada em controle político. A querela do jansenismo situa este problema ao contrapor a mediação estatal com a mediação religiosa procurando estabelecer a melhor clivagem entre uma e outra. Do agostinianismo radical jansenista – e aqui, convém notar, ”agostinianismo” é tanto teológico quanto político – a única mediação possível é a da coroa, uma vez que a mediação religiosa pertence a Jesus Cristo, e somente a ele, questionando a autoridade papal e seu papel no pastoreio das almas. Nisso, é a autonomia da vida pública que entra em questão privatizando eventos como os de ordem mística e dissociando a vida cristã das práticas civis: “Este tipo de combinação já esboça uma organização que se generaliza no século XVIII. Pode-se dizer também que a reflexão das Luzes exuma os postulados dela extraindo as suas consequências teóricas. Certamente isto não mais acontece sob a forma belicosa que a politização da moral havia adquirido entre os apologetas da “razão de Estado” sob Richelieu. Seu lugar, entretanto, permanece o mesmo: uma “razão” política de práticas articuladas  entre elas. Mas ele não é mais feito apenas pelos juristas ou clientes do rei; é constituído durante os anos decisivos de 1660-1680. O Estado se torna o centro poderoso da administração nacional, a grande empresa de racionalização econômica, financeira e estatística. “Pertence quase todo ao domínio do voluntário, do deliberado”: é o arco da nova aliança entre a razão (o Logos) e o fazer (as práticas que fazem a história). O século XVIII é “por excelência o século da política, logo, o século do Estado.”(Certeau, 1985:173:174). Convém ressaltar que a deliberação não está atrelada ao ato de decidir por convicção moral, mas por adequação a uma estrutura de decisão própria ao Estado como instância deliberativa. Ainda que hajam agentes religiosos, age-se fora da religião inclusive, progressivamente, do ponto de vista litúrgico.
[4]Les protestants (on entendra désormais par ce terme les calvinistes) n’ont pas d’existence légale en France depuis l’édit de Fointainebleau de 1685, qui révoquait l’édit de Nantes. Encore, l’édit de 1685 reconnaissait-il, à defaut de la liberté de culte, la liberté de croyence personelle aux réformés, mais leurs enfants devaient être élevés dans le catholicisme, et la déclaration du 8 mars 1715 considère que le « long séjour en France » des anciens réformés « était une preuve suffisante qu’ils avaient embrassé la religion catholique ». On ne connaît donc plus de protestants, mais seulement des « nouveaux convertis » » (Cousin et al., 1989 :47).  Guizot não é, contudo, o pioneiro como um protestante figurando na política ministerial na França. Este papel cabe a Jacques Necker que, de 1776 a 1781 e, então, 1788 foi diretor geral de finanças. Mas, a nota é importante, não foi jamais ministro de Estado uma vez que estes cargos estavam vetados para a ocupação de quadros protestantes.

sábado, 11 de julho de 2015

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre as ruínas e o fantasma do religioso.

(retirado da tese de doutorado, recém-defendida. as remissões bibliográficas estão no vazio. lamento.)

(...) o crime contra a autoridade soberana não se limita mais ao núcleo detentor do poder, ao novo príncipe, mas é pouco a pouco ampliado para abranger todas aquelas ações que ameaçam a segurança e a prosperidade da sociedade e atacam suas ideologias fundamentais, como a propriedade.
Paolo Prodi, Uma história da justiça



            1 - França- 1789 segue sendo um marco inescapável ao imaginar a França moderna, especialmente quando o objeto do qual se trata não é a Revolução Francesa, o que faz da data um espectro permanente na imaginação a respeito do tempo francês. O processo revolucionário, que parte de um esforço nacional para uma reforma fiscal e orçamentária do ano em questão, se transformou em signo de ruptura no tempo ao ponto em que o conceito de revolução foi, ele mesmo, revolucionado. Aquilo que outrora enunciava a retomada do ciclo normal próprio das órbitas celestes como em De revolutionibus orbium coelestium de Copérnico, (Koselleck,2006:63; Cohen, 1985), onde a revolução descreve um movimento cíclico, passa a significar a ruptura no tempo na forma de sua aceleração. Começar de novo a mesma trajetória no tempo, eis o que fora a revolução como processo e eis o mesmo processo então revolucionado por uma outra revolução[1].
            Esta revolução nova conduzida pela evidente necessidade de uma reforma de Estado em fins dos século XVIII, necessidade reconhecida amplamente por grande parte dos diretamente envolvidos[2], tendo como primeiro ato revolucionário uma procissão que parte da Catedral de Nossa Senhora de Paris até a igreja de São Luís em Versailles. A ação revolucionária primeira cmo ato governamental acrescenta uma outra nota ao processo no qual não é a regularidade indefectível da natureza quem conduz os esforços. É a ação humana que ganha uma outra dimensão, se tornando portanto protagonista de seu próprio meio, fazendo da retomada da ordem como a extinção de relações postas anteriormente. Não se trata somente de uma substituição de postos como na morte ritual – e real – do sacerdote do templo de Diana em Nemi (Frazer, 1990), mas uma alteração dos termos de relação que fundamentam a organização social instituindo, no caso da Revolução Francesa, a organização social ela mesma como objeto e meio da ação. O processo revolucionário que pretendera ser uma correção de rumos chegou ao ponto de alterar a noção de rumo correto, o que por fim combina com a imagem de um motim em uma enorme galera que culmina na alteração do que é um rumo correto alterando a noção de destino. Dito de outra forma, trata-se da filosofia da história entendida como ato governamental.
            O que faço nos dois parágrafos anteriores é um sumário bastante generalista. É desnecessário ressaltar os riscos de um exercício de pesquisa que faça expediente de algo desta natureza que, diante das requisições e cautelas de um discurso acadêmico-científico, é bastante grosseiro. Dizer que o processo Revolucionário francês começa como um ato governamental para por fim mudar aquilo que significa governar pode ser tudo, menos preciso. A imprecisão da idéia ainda assim é tentadora e, mais proveitosa. Obviamente que esta sugestão não pretende se indispor com uma outra, a que atenta para uma dimensão sociológica dos processos históricos que afirma que um dado evento com as proporções da Revolução Francesa se encontrava gestado com enorme antecedência, e que, a depender da diretriz narrativa pretendida, a Revolução teria uma data de partida diferente. Suas origens culturais não coincidiriam, portanto, com suas origens sociológicas, tampouco intelectuais e muito menos, historiográfias, alterando sua datação no caso da distinção de fato ter alguma relevância. E talvez tenha, mas como distinção, digamos, nativa. E isto faria de minha grosseria algo salutar porque boa parte das categorias e conceitos em movimento no período pós-revolucionário ressoarão mais adiante, cronologicamente, na forma de categorias analíticas e conceitos sociológicos que parecem, por fim, generalizações de tomadas de decisão ou de projetos sustentados no seio do debate revolucionário. É o caso da sociologia, por exemplo (Wagner, 2000). O que estou dizendo é que, após a Revolução, a emergência do pensamento sociológico dificilmente poderia ser discriminado das reformas que se inserem como postulado para as políticas de Estado e governo, assim como a mudança nos fundamentos do que significa Estado e governar. É dessas reformas que grande parte de conceitos fundamentais se transformam em moeda corrente. Seguramente que a sociologia pode ser relacionada a diversas outras dimensões da história moderna mas, repito, dificilmente poderia ser dissociada do esforço persistente de reforma do Estado que conduziu grande parte das políticas conduzidas pela França pós-revolucionária.
            Visto de um ponto de vista não-especializado, o jogo de sucessivas reformas tem a aparência de mover as coisas de lugar, quando não a de tirar um obeto para então substituir por outras cuja crônica se transforma na narrativa dos arcanos do Estado e seus demiurgos que, logo, transformam-se em biografias coletivas que atendem por um nome só: Império de Napoleão, de Louis Philippe, o governo de Thiers. Não são somente nomes masculinos, mas períodos e unidades de espaço nos quais incidem os gestos de governo de cada uma destas personagens, nem sempre de corpo presente, mas por via da presença da chancela e, quando não, de sua forja. Assim, o que dizer de posições como a da Coroa que caiu guilhotina abaixo; ou mesmo da expulsão da religião pela porta dos fundos? Expulsão seria mesmo um termo adequado? É preciso ver mais de perto este sinal que pode ser, no mais das vezes, invertido ou, pelo menos, severamente atenuado exatamente porque este mesmo sinal é diversas vezes confundido com o sinal da cruz.
            No documento da Constituição civil do clericato de 12 de julho de 1790, a Igreja é varrida do solo francês. O processo já duramente questionado se torna uma fratura ainda maior e, convém lembrar, conduzida diversas vezes com grande violência durante o ano II da Revolução (1793-1794) quando a prática do culto público, esta obsessão de Émile Durkheim (2000), sofrem golpes severo com vistas na sua total extirpação do seio da vida pública, período no qual se desenham substitutos na forma de festas cívicas. Daí por diante, depois da abolição do dízimo, da nacionalização dos bens da Igreja e da supressão das ordens religiosas a fronteira é posta: entre a religião e o Estado há uma linha a partir da qual a França deixa de ter uma religião oficial. O culto religioso é uma atividade, quando não ilegal, é, dali por diante, extra-oficial, apenas reconhecida por lei. Mas quais os demais efeitos da deposição para além da descrita?

            Em 1789 a Igreja ocupa, na França, o primeiro plano ao mesmo tempo político, social, intelectual e moral. O clericato é a primeira ordem do reinado, sendo a única ordem organizada em escala nacional tendo suas assembléias com relação às quais voltaremos a falar (Cousin et. al, 1989, voltarão a falar - não eu). O catolicismo é religião de Estado de forma que nenhuma outra confissão é, em princípio, tolerada após a revogação do édito de Nantes pelo édito de Fontainebleau, de 1685.” (Cousin et al.: 13).

            Isto não quer dizer, obviamente, que o processo Revolucionário se transformou numa festa ecumênica em que todas as religiões puderam vir à luz. No entanto algo peculiar tomou forma mediante uma proibição universal do culto público religioso. Por via desta proibição que atingia inclusive aquela que outrora fora a religião oficial, um ato governamental produzia um cenário em que todas as religiões indiferiam entre si dado que a partir do ato se tornaram equivalentes. Este gesto, repercutindo nesta escala, ainda que jurídico-teórico, produz uma certa indiferença com relação à fé, à crença e tudo aquilo o mais que os antropólogos modernos passaram a chamar de categorias nativas que, em não poucos casos, caberiam na alcunha “teologia”. No caso, a católica.


[1]Em 1842, um erudito francês fez uma observação histórica de caráter bastante produtivo. Haréau chamou a atenção para o fato, então esquecido, de que “revolução” se referia a um retorno, uma mudança de trajetória, que correspondia ao uso latino da palavra e que conduzia de volta ao ponto de partida. Uma revolução significava então, primordialmente, de acordo com a etimologia da palavra, um movimento cíclico. Haréau acrescentou ainda que, no âmbito político, esse movimento circular fora entendido como círculo das constituições, segundo a doutrina de Aristóteles ou de Políbio e seus seguidores, mas que desde 1789, pela influência de Condorcet, não se podia mais compreendê-lo desse modo. Segundo a doutrina antiga, havia um número limitado de formas constitucionais, que substituíam alternadamente umas às outras, mas que, de acordo com sua natureza, jamais poderiam ser ultrapassadas por outras formas. Trata-se dos tipos constitucionais ainda correntes entre nós e de suas formas decadentes, que se seguem umas às outras de maneira quase obrigatória. Haréau cita Louis LeRoy como testemunha esquecida desse mundo passado. Para LeRoy, a primeira dentre todas as formas de governo era a monarquia, a qual, uma vez transmutada em tirania, era dissolvida pela aristocracia. Seque-se o conhecido esquema, segundo o qual a aristocracia transforma-se em oligarquia, deposta a seguir por uma democracia, a qual, por fim, degenera na forma decadente de uma olocracia, dominação pelas massas. Nesse ponto ninguém mais governa de fato, e o caminho para a dominação por um único indivíduo encontra-se novamente livre. Inicia-se o velho círculo. Trata-se aqui de um modelo de revolução que, em grego foi compreendido como metábole tôn politeiôn ou como nakyklosis tôn politeiôn  e que se nutria da experiência de que toda forma de convivência política é, por fim, limitada. Cada mudança conduz a uma forma de governo já conhecida, sob a qual os homens são obrigados a viver. Seria impossível romper com esse círculo natural.”(Koselleck, 2006:63-64)
[2] Nunca é demais lembrar que a Coroa e a Igreja são instituições diretamente envolvidas no processo revolucionário em seu primeiro momento.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

A ESQUERDA NOS TERMOS DA DIREITA

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DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rocco. Rio de Janeiro. 2000.
FABIAN, Johannes. O tempo e o outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Vozes. Petrópolis. 2013.

1- Louis Dumont escreve que, no que diz respeito às relações de oposição, complementares porque submetidas a uma hierarquia, demanda que os mesmos pares de oposição sejam postos segundo sua dada organização. Os opostos diferem em natureza, antes de mais nada, fazendo com que um dos termos seja determinado pelo outro par, superior. Nisso, à luz de seu Homo Hierarquicus, "uma vez atribuídas certas funções à mão esquerda, a mão direita, embora mantendo-se superior no conjunto, será secundária quanto ao exercício dessas funções". A proposição é, a seu modo, tomista. Ele mesmo deixa anotado em uma nota de rodapé, a de número 33 do ensaio sobre o valor nos modernos e nos outros. Disto segue a passagem que afirma, seguindo o diagnóstico do desencantamento, ou desvalorização do mundo, perpetrada pelos modernos que:

"A questão dá-nos também uma indicação quanto ao modo como nós, modernos, conseguimos esvaziar a ordem em que as coisas são dadas. Com efeito, não deixamos de ter uma de ter uma mão direita e uma esquerda, e de estar relacionados com o nosso corpo, assim como com outros todos. Mas nos tornamos tolerantes em relação aos canhotos, de acordo com o nosso individualismo e desvalorização das mãos." (Dumont, 2000:256)

            Que me seja perdoado omitir quaisquer considerações da coincidência brutal - e talvez concreta - do que Dumont chama de moderno com o que é reconhecível como liberal, posto em termos muito próximos de François Guizot, por exemplo. E também me omito a respeito de como a caracterização dos modernos, em uma série de afirmações desdobradas de estudos de caracterologia, mesmo que oriundos da matriz ortodoxa de Clyde Kluckhohn, se fia naquilo que os modernos dizem fazer e, em nada naquilo que os modernos (liberais, sejamos claros) fazem fazer. O que é, para mim, digno de nota, é como a tábua de salvação deste argumento no que diz respeito ao seu componente ético - e que encontra eco exatamente no desespero de Leszek Kolakowski - reside na especificidade moderna da tolerância com a mão esquerda que, compreendamos, viria por terra se a mão esquerda viesse a transformar as regras da oposição. Nada garante, na verdade, bem ao contrário, que a mão direita seja alvo do exercício de uma tolerância qualquer.
            O problema é que a tolerância, tal como expressa, é em si a própria negação de coetaneidade (Fabian, 2013). E talvez esta seja uma forma de rediscutirmos o ensaio denso e cheio de implicações de Louis Dumont que é, antes de mais nada, um elogio do liberalismo como ponto arquimediano do procedimento comparativo posto como o miolo da exceção moderna que, dentre as diversas características, exerce tolerância na aplicação dos valores. 

ESPIRITISMO COMO HISTÓRIA DA ANTROPOLOGIA



E aí eu estudo um negócio cuja relevância parecia desacreditada porque não se tratava senão da pequena burguesia parisiense inventando moda. Espiritismo, psicografia, fotografias de fantasmas.

Então, segura essa:

"Embora vá falar acerca do que escrevi - os meus livros, os meus artigos e outros trabalhos -, acontece que, infelizmente, esqueço o que escrevo quase imediatamente depois de acabar. Provavelmente, isso trará alguns problemas. Creio, no entanto, que há alguma coisa de significativo no facto de eu nem sequer ter a sensação de haver escrito os meus livros. Tenho, ao contrário, a sensação de que os livros são escritos através de mim, e, logo que acabam de me atravessar, sinto-me vazio e em mim nada fica."

Primeiro parágrafo das conferências de Mito e Significado. Claude Lévi-Strauss​ sonambule, vagabonde, medium. Poderia acrescentar: dissociado, amnésico, degenerado.


Que fosse um aspecto menor, este acesso místico que Lévi-Strauss parece ter com relação às doutrinas do significado. Mas os leitores de La Pensée Sauvage sabem muito bem. Em especial Maurice Godelier, que deixa bem claro que recusa a versão de seu mentor para quem o sentido vem de uma só vez, num arrebatamento de toda sua possibilidade, e não em etapas lógicas como o positivismo em geral, e a epistemologia genética em particular, defendiam na mesma França que teve no judeu belga seu maior antropólogo. Esta mesma experiência, este mesmo arrebatamento, é o mote justificador das mitológicas - e mesmo, da lógica mítica na qual os mitos se pensam através dos homens ou, de outra forma, os atravessa pensando-se em seu lugar. Os homens são, por fim, o meio de transmissão do mito, eles mesmos o fato mítico a ser comprovado. Não por outra razão, minto, as mitológicas só poderiam ser, por fim, mais um mito que, uma vez escrito tem como destino ser, uma vez mais, esquecido.


(para Suely)