domingo, 4 de novembro de 2018

Promener pour la méthode: mimesis interspecífica, hermenêutica de ouvido, e o perfectível Conde de Buffon, parte II

O fragmento foi redigido em 1950. Discute o conceito de política no mesmo momento em que redigia seu livro maior, Origens do totalitarismo, prefaciado no mesmo ano. Assumindo a tarefa de introduzir o público leigo ao conceito aos temas fundamentais da política, Hannah Arendt escreve uma espécie de manifesto do tempo presente em um planeta que via parte das principais instituições ocidentais ruir sob o peso do totalitarismo. Começar a discussão a respeito do fragmento em questão, aquele que disserta sobre o que é política, tem como principal horizonte tomar como ponto de partida o conceito, e o problema do conceito do comum como fundamento da vida política. A expectativa primeira é que poucas coisas são tão difíceis de compreender quanto o que podemos chamar de comum.

Ainda que seja nosso ponto de partida, o problema do comum, convém estabelecermos que é somente enquanto orientador para uma reflexão sobre a política que o comum vai nos orientar. E, se seguirmos o primeiro fragmento, de agosto de 1950, vemos que a política se baseia em 7 elementos. E não, Hannah Arendt não nos oferece uma definição. E se Jacques Rancière estiver certo (2018) como acredito que esteja, é porque a política é antes um acontecimento que danifica as relações, que coloca algo a perder, que não tem nenhuma definição propriamente positiva - assim como o comum. De um comum como algo indeterminado, como um conceito que faz precipitar a atividade política, o comum é fonte de uma certa indeterminação na exata medida em que é possível dizer que o conceito sofre do mesmo mal da política propriamente dita: não consegue irromper que não seja por interrupção do ordenamento posto, por um desacordo quanto ao fato de que o comum não se concretiza nas relações postas. Esta dificuldade maior nos coloca então no horizonte de que a reflexão sobre a política em suas diversas manifestações é uma reflexão que, na medida em que é exclusivamente teórica, ou mesmo meta-teórica, propicia um momento de concórdia ou, lembrando uma reflexão maussiana, de conciliação que não compactua com a radicalidade do desentendimento para o qual a política se presta. 

Digo tudo isso porque Hannah Arendt introduz sua reflexão na fórmula a política se baseia na pluralidade dos homens (1999:21). Nisso, a política tem como base, sustenta-se a partir da constatação fática, do fato de que há diversidade humana que é, para todos os fins, irredutível. Esta irredutibilidade é o horizonte de sua pesquisa sobre o totalitarismo e sobre o fim da política na propaganda totalitária. E ainda assim, é daqui que partimos. Em primeiro lugar, a política parte da constatação de que há algo de irredutível na humanidade, e ela é exatamente a diversidade existencial humana. Esta diversidade existencial constrange o pensamento na forma pela qual a política não é, e não pode ser um exercício de taxinomia: 

A política baseia-se na pluralidade dos homens. Deus crio o homem, os homens são um produto humano mundano, e produto da natureza humana. A filosofia e a teologia sempre se ocupam do homem, e todas as suas afirmações seriam corretas mesmo se houvesse apenas uym homem, ou apenas dois homens, ou apenas homens idênticos. Por isso, não encontraram nenhuma resposta filosoficamente válida para a pergunta: o que é política? Mas, ainda: para todo o pensamento científico existe apenas o homem - na biologia ou na psicologia, na filosofia e na teologia, da mesma forma como para a zoologia só exite o leão. Os leões seriam, no caso, uma questão que só interessaria aos leões. (ARENDT, 1999:21) 
 
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Quatre petits fils proprement comparés
 A figura zoológica do homem no singular tem uma trajetória importante na medida em que, ao mesmo tempo em que produz uma alternativa às formas de racismo poligenista, que consistiam em mais de uma variação sobre a modernidade escravocrata e o regime de apartheid, ela faz da variação monogenista uma versão alocrônica de formas distintas de racismo. Por exemplo, na figura dos três estágios evolutivos presentes na filosofia da história do positivismo de Comte. Neste caso estaríamos, contudo, na seara de arranjos mais ou menos metafóricos, em que a zoologia humana seria mais uma apreciação sobre a conformação as ciências da vida - as ciências que instituem enunciados que orbitam ao redor da vida como um conceito, ou seja, como uma classe de fenômenos estabelecida -, seria importante encontrar um exemplo literal do que estamos falando, que servisse como fonte de um arquivo que, contra teológico, reafirmasse a unidade humana nas bases da anatomia comparada. Felizmente, estas fontes remontam exatamente à Enciclopédie, editada por Denis Diderot e Jean le Rond D’Alembert e encontram seu momento pinacular na obra De l’homme, de Buffon. Uma remissão para a tradição francesa de pensamento não é meramente um exercício de erudição. É, no limite, a reconstituição do arquivo político onde se expressa o sujeito constituído que terá na lei o seu reconhecimento. Na lei humana e, obviamente, nas leis da natureza. Fazer coincidir um com o outro é, bem sabemos, uma obsessão moderna sem precedentes e é com ela que nos havemos, ainda que de forma bastante incipiente. 
 
 O verbete da Encilopédie que versa sobre a antropologia de um ponto de vista propriamente moderno é o de anatomia. Escrito por Diderot, acompanha o interesse do mesmo pelas ciências da vida e pela proliferação de metáforas políticas na descrição do funcionamento do corpo. Diderot, entusiasta das luzes em seu formato enciclopédico, endossa a atividade da anatomia - a dissecação - pela atividade imediata, isto é, conhecer a figura, a posição e as conexões dos ossos, das cartilagens, das membranas, dos nervos, dos ligamentos, dos tendões, os vasos arteriais, venosos, linfáticos, etc (DIDEROT, 2015:253). Tendo como horizonte compreender a correlação entre fluidos e sólidos no corpo, faz da correlação entre diferentes estados da matéria como dinâmica da conservação e restabelecimento da máquina (DIDEROT, op.cit.), reiterando parte da enteléquia cartesiana e La Méttrie e antevendo uma das noções caras dos máquinas movidas a combustão. 
 
 O caminho do Iluminismo, convém notar, tem notas ardilosas em que é possível antever o futuro nada animador para a vida em comum. Ao considerar as opiniões sobre a prática da dissecação dos chamados médicos dogmáticos, eis como Diderot dá prosseguimento ao verbete: 
 
 ’É preciso’, diziam eles, ‘abrir cadáveres, examinar as vísceras, esfoliar as entranhas, estudar as partes diminutas do animal', e nunca é demais elogiar a coragem de Herófilo e Erasístrato, a quem eram entregues malfeitores que eles dissecavam ainda vivos, bem como a sabedoria dos príncipes que sacrificaram um pequeno número de malfeitores em benefício de uma multidão de inocentes, de todas as condições, e todas as idades e de todos os séculos que estão por vir. (DIDEROT, 2015:254)
 
 Eis a passagem que nos obriga a recuperar a urgência de uma nova ética, tal como proposta por Hans Jonas, para quem uma ética prática envolta nos modos gregos, que resolve questões eivadas de imediaticidade - a esfera da política de Hannah Arendt - vê na responsabilidade uma forma de antecipar a atividade técnica com seu resultado, assumindo um compromisso com a possibilidade da consumação do futuro. A utopia do pleno conhecimento enciclopédico, ainda que tenha produzido uma esfera moral produtiva decisiva para a produção do conhecimento positivo e fundamental para a corrosão das relações de trabalho, parece ver no balanço entre mortos e vivos resultantes de uma operação técnica a razão suficiente para uma tomada de decisão. É impossível não perceber aqui o tipo de prenúncio que conforma a administração total das práticas institucionais nas quais absolutamente tudo está em jogo. Não estamos falando, obviamente, somente de conhecimento. Mas desconfio que aquilo que toma a forma de uma matriz ideológica é muito mais o desdobramento da administração de uma cultura material que, a esta altura, ou funciona nesta correlação de escalas ou tende a travar. Com o imperativo do crescimento como índice de desenvolvimento - o que nos coloca diante de questões de economia política -, a desconfiança carrega consigo uma maré de corpos que recebe o nome de humanidade. Afinal, com vistas em um conhecimento anatomicamente preciso, o objeto passado é o cadáver e sua predisposição para a manipulação. Quando encarnada, a humanidade transforma-se em uma outra coisa. É a disposição habitual do coração para empregar nossas faculdades em benefício do gênero humano. E aqui, a ética reclama seu lugar de direito uma vez que o anatomista, é ele desumano? E aqui o iluminismo mostra-se praticante de uma forma aguda de poder e de ajuizamento na qual permite-se pensar no lugar de outrem: 
 
 De minha parte, não gostaria de ser nem cirurgião nem anatomista, pois tenho algo de pusilânime; mas nem por isso me parece menos desejável que fosse instituída entre nós a prática de entregar a profissionais que tivessem a coragem de realizar a operação a serem vivisseccionados. Não importa como se considera a morte de um malfeitor, seria muito mais útil à sociedade que ela ocorresse num auditório do que no cadafalso, e esse suplício seria tão medonho quanto qualquer outro. Haveria um meio de administrar a conduta do espectador, do anatomista e do paciente; o espectador e o anatomista não realizariam no paciente operações que não fossem úteis ou cujas consequências não fossem claramente funestas; e o paciente, confiando somente nos homens mais esclarecidos, receberia a vida como prêmio, caso sobrevivesse à operação nele realizada. A Anatomia, a Medicina e a cirurgia, não teriam a ganhar com isso? Quantas vezes não nos instruiriam mais as consequências da operação do que a operação mesma? Quanto aos criminosos; quem não preferiria uma operação dolorosa à morte certa? Ou quem não preferiria, em vez de ser executado, se submeter à injeção de líquidos no sangue, à transfusão deste, à amputação de uma perna, à extirpação do baço, à extração de um tecido o cérebro, à ligação das artérias mamárias às epigástricas, ao corte de uma seção do intestino, à abertura do esôfago, à ligação entre os vasos espermáticos, com extirpação do nervo, ou à intervenção noutra víscera qualquer?” (DIDEROT, 2015:256)
 
 Diderot faz a escolha. O risco à morte de uma minoria, não em nome de uma maioria, mas em nome de um futuro que pode nunca vir a acontecer. A questão ética, e a abertura para a política que recusa o homem como uma forma unitária indistinta visa prevenir, ou ao menos recusar tomar decisões como a que Diderot toma, ainda que mediante a redação de um verbete de um empreendimento editorial. Afinal, a desumanidade de um malfeitor o qualifica para morrer porque sua morte possível, à luz do futuro, é um mal menor. No sentido dado por Hannah Arendt, se há algo que o prisioneiro não é, se há um lugar em que ele não está, é entre homens - e  a anatomia é útil, mas aos magistrados. Os homens estão fora, movendo a burocracia da morte. E, no entanto, o regime de corpos sob tutela não é a forma de produção das instituições médicas? Por fim, há alguma diferença entre uma doutrina como esta e qualquer uma outra, que vê na vida alheia rifada por uma solução prognóstica a noção acabada de aprimoramento? 
 
 No final das contas, o que importa é o progresso. O aprimoramento das descobertas sempre conjugadas com o que poderia ter consequências surpreendentes (DIDEROT, 2015:263). O que é francamente decepcionante para avaliarmos o humor e a capacidade diagnóstica de Diderot, que não percebe o papel ambíguo daquilo que ele mesmo promove. Aparentemente, este é o nosso papel. 

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. Companhia das Letras. São Paulo. 1990
ARENDT, Hannah. O que é Política? - fragmentos das obras póstumas. Bertrand Brasil. Rio de Janeiro. 1999
BUFFON. De l’homme. François Maspero. Paris. 1971
DIDEROT, Denis & D’ALEMBERT, Jean Le Rond (dir.). Enciclopédia - ciências da natureza (vol. 3). Unesp. São Paulo. 2015
RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. Editora 34. São Paulo. 2018

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

A presença da resolução

O MEDO
trama as suas vestes
sobre a nossa pele
em dias de calor imenso.
Do leste não virá somente
mais um novo dia,
calor,
o dia,
a manhã.
É o luminoso do movimento
das sombras que repetem
que é a guerra,
é a guerra,
e somente a guerra que
sulca no papel
os limites do país,
o apetrecho visual dando mostras
de que algo na paisagem imóvel das fronteiras
sempre,
sempre,
sempre
se move. É a guerra que se move.
Que nos amortece pelo costume de
sempre se mover lenta, constante,
e aparecer quando imóvel. Imóvel porque inferior na equação que permite que distingamos a dor do movimento.
Não há memória e é a guerra.
É a guerra.
É a guerra.
A outra coisa,
qualquer outra coisa,
a mais linda, apaziguadora, sorridente,
coisa,
repete o adágio sanguinolento
o princípio da morte suficiente -
o soberano, por fim.
Aceleram os dias, aumenta o calor, 
o gesto torna-se visível
- bailado das sombras. 
E o medo.
É o medo de que com a chuva
o frescor e a água cesse o calor e
com ela, finalmente, o movimento.


sábado, 7 de janeiro de 2017

A FALÊNCIA DO PULMÃO DE AÇO



PIGLIA gostava dos jogos que Paul Auster tentou, certa vez, participar. Quando o escritor da Trilogia de Nova York arriscou das suas, conseguiu a sorte grande quando criou um jogo de baseball em uma carta de baralho, mas falhou flagrantemente quando abriu a porta para si mesmo - respondendo a personagem que, na mesma porta, batia: "Paul Auster" para Paul Auster abrir. Piglia não. Em Nome Falso ele mostra como funciona o jogo. Em busca do manuscrito inédito de Roberto Arlt, tão importante em sua respiração artificial - romance ao qual ainda dedico minha vida -, ele acaba por reconstituir a relação do autor de Os sete loucos e O lança-chamas com a figura fabulosa de Saúl Kostia - descrito com não poucos traços do Rigoletto, o corcundinha.



"Kostia era um sujeito gordo, asmático,que respirava ofegando. Estava sentado junto a uma mesa do fundo, no Ramos, rodeado de copos de cerveja, ao lado de uma mulher muito decotada e vestido de azul-claro e de um sujeito magro, de ar consumido e febril. Kostia falava como se estivesse pregando e a todo momento secava o rosto com um lenço amassado e sujo."


Este, o amigo de Arlt, carregava consigo a peça derradeira, aquela que permitiria um não sei o quê indiciário que permitiria a Piglia reapresentar o escritor Alrt à literatura argentina a partir do malefício do manuscrito inédito. Esta mesma literatura, reafirmava sempre que possível o mesmo Arlt, precisava urgentemente de escritores ruins para se salvar de si mesma - coisa que Macedónio Fernandez levou aos píncaros em Museo de la novela de la Eterna na criação do gênero da novela ruim. O fato é que Kostia era amigo de Arlt. E Arlt, por sua vez, apontava em Kostia aquele que seria o maior poeta argentino vivo. 


"Ele é um poeta", dizia Arlt. "Nós somos simples operários da literatura. Com a morte de Lugones, você, Kostia, é o único poeta que nos resta." Kostia morria de rir. "Digamos que eu seja Balzac", dizia-lhe Arlt. "Mas você é Mallarmé."


Na mesma página, a de número 39 da edição da Iluminuras traduzida por Heloisa Jahn, temos uma nota onde um poema de Kostia está transcrito na íntegra. Fruto de uma publicação da revista Claridad de 24 de agosto de 1941, o poema:


Ciegamente atado
a la tristeza y al vino
leoloslibros escritos por mi, recuerdos
deslucidos, tambaleantes poemas
y rancias fotografias
rastros puestos en la noche cerrada.
Miro la ziguezagueante línea errónea
todo yo ceñido a la tristeza
y a la luz, la luz
que serenamente ya no se puede contemplar
lainflamada luz de mi cabeza
y esos fulgores de lentitud
sobre el mismo cimineto de todas mis palabras
a la tristeza ligadas, y al vino,
y a los golpes de viento negro
que enpujan mi poesía al desencuentro.
Todo yo me veo comoun morir
más muriente a los treinta años de amaneceres
y de noches, sobre todo, sabiendo
que hay un automóvil estacionado a la puerta
de mi expuesta casa
y hay un paciente, un indiferente,
un estulto chófer,
que me conduzirá a la muerte.
Así, entre inpublicados libros
y libros nacientes,
entre fotografías y botellas
y amigos desaparecidos bajo la tierra,
oyendo el fragor del mundo en llamas espero
el acabamiento de los plazos. 



Seu prazo, inferno, se deu no dia do meu aniversário. 

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

PARE EM NOME DA LEI!



           Paramos, então. Não por um minuto de silêncio em respeito à memória de ninguém. Não porque estamos correndo de uma viatura policial que apareceu enquanto fazíamos uma zoada pelo bairro. Não porque ouvimos alguém gritar conosco enquanto, vestido de uniforme, apontava uma pistola em nossa direção. Estamos de costas, não sabemos do que se trata, ainda não nos viramos e a cena, para que tenha poder, está carregada de suspense. Ainda não sabemos do que se trata. Ao não sabermos do que se trata, no entanto, temos desenvolvido o ato de reflexo de parar. E paramos. Em nome da lei. A paralisia movida pela autoridade de uma voz que se levanta na paisagem informa uma série de coisas que nos orienta. Nossa orientação básica, a de pararmos em nome da lei, sugere num sussurro verdadeiramente inaudível que estamos sujeitos àquilo em nome de quê age a voz que emite o comando de pararmos. Esta voz que grita é, por sua vez, um representante da lei que não vimos ainda, mas que se proclama como tal. Afinal, se a voz grita em nome da lei, é como seu representante que age. Não sabemos se ela, a voz, é uma representante legítimo, se a reconheceremos, uma vez identificada, como representante da lei. Afinal, é só uma voz - tudo aquilo que a lei não é, mas sem a qual a lei não pode ser. A única coisa que sabemos é que neste momento, em que uma voz emite o comando para que paremos de fazer o que estamos fazendo em nome da lei, corremos um risco. No caso, de desobedecermos a lei que, todavia, não sabemos qual é. O comando não diz qual lei representa, então induzimos que é A Lei, toda a lei, que está sendo representada por aquele que nos fala. Não sabemos quem é e tampouco refletimos sobre como isso seria possível, como é que alguém poderia representar todas as leis como se fosse somente uma, A Lei. E no entanto, numa relação que transformou o risco em ato reflexo, paramos. Não queremos correr o risco de que seja, mesmo, A Lei. Porque se for, entraremos em confronto com uma autoridade, isto é, alguém que age como representante da lei, alguém que age em nome da lei. E assim, paramos. Ao pararmos nem nos damos conta de que tomamos uma decisão, de que interrompemos um movimento, que cortamos uma frase que dizíamos, que paramos coma  zoada; simplesmente paramos. E ao pararmos, agimos. Em nome da lei. E isso nos faz, imediatamente, também representantes da mesma lei em nome da qual alguém vociferava um segundo antes. E, no entanto, agir em nome da lei não diminui o risco da desobediência.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

11 de setembro

Antes do meio-dia; fotografia de Curvelano
Sei que já disse isso, mas hoje o dia acordou cedo. Já é seu hábito mais visível levantar-se com as galinhas sem sequer se perder quando Valdécio faz a cabidela. Acorda do mesmo jeito, o dia, o sol.Quando afoito mancha todas as reses, o chão, com sombras escuríssimas que fazem gemer o telefone, cortando o sinal de emissão das microondas domesticadas a ponto de mal sabermos outra coisa que não quanto tempo se passou desde que o tempo deu um tempo, desde quando acabou janeiro.

Bem sei que prenderam gente, que foi o povo de cinza, coturno e borracha. E mesmo que é um dia 11, mais uma vez, em setembro - setembristas. Mas o calendário mesmo é

Janeiro sim
Janeiro não.


Hoje é
janeiro não.

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Considerações sobre o Estado teatro: lições de Clifford Geertz


Existem muitas coisas que me incomodam ao recorrer ao expediente da história da antropologia como se bastasse que ela se convertesse em crítica cultural para que pudesse se desfazer das dificuldades que lhe dão forma. Isto porque, por se tratar de uma atividade científica, e mesmo que não seja necessariamente ciência, a antropologia como fruto de pesquisas de campo é, como o são as etologias, uma disciplina cujo objeto privilegiado é o da comunicação. Obviamente que a atividade comunicativa é determinante para a configuração da República das Letras e suas línguas francas, seu sistema de correspondências e publicações e a atividade, em franco declínio, da verificação de procedimentos laboratoriais. No entanto, para além da comunicação pública que é característica da publicação de resultados, as pesquisas em humanidades têm como ponto de partida a atividade comunicativa fazendo com que uma infindável cadeia pragmática e uma sucessão de círculos hermenêuticos (sujeitos determinando objetos determinando sujeitos determinando objetos...) faça parte de seus percalços epistemológicos. Dito de outra forma, não é sem enormes dificuldades que uma pesquisa em que é a própria vida vivida lhe serve de tema. Sua introdução no seio da pesquisa científica lhe oferece uma profundidade permanente garantida por um ponto de fuga afiançado pela presença, dimensão esta que sequer a introdução dos instrumentos de medição antropométrico e as pesquisas em genética conseguiram dirimir. Assim, antes de adentrarmos em alguns outros exemplos em que o poder se apresenta como enunciado nas tramas da descrição objetiva e da observação etnográfica - plano em que a chamada crítica pós-moderna se estabelece - convém explorar, ainda que brevemente, alguns dos itinerários possíveis pelos quais esta questão se estabelece. Para tal convém percorrer algumas questões postas por Clifford Geertz a respeito do problema da autoria em antropologia e alguns de seus desdobramentos.
                        A epígrafe de Local knowldge, livro de 1983 (1999) traz uma passagem do Sur le fils naturel de Denis Diderot em que o mesmo discute a emergência do gênero sério como instituição do drama burguês[1]. Este gênero teatral combinaria elementos da tragédia, se necessário, fazendo com que o herói entre em conflito com as virtudes e a estrutura do cosmos e a ordem das paixões sem no entanto excita-las; ao mesmo tempo, em uma mesma peça, o ridículo e o elenco da falhas humanas também dão as caras sem com isso ter como propósito fazer rir. Esta imersão do drama na vida comum é o gênero sério. Não seria surpresa dizer que, no final das contas, Clifford Geertz está dizendo que devemos encarar a bibliografia produzida pela antropologia, em grande parte sendo produção etnográfica,  como um gênero sério. Nem tragédia, nem comédia. Nem reflexão só-teórica, o que seria uma tragédia, nem a ingenuidade de que a empiria, que a pesquisa de campo, resolveria todos os problemas do pesquisador, o que é cômico ainda que raramente seja algo engraçado. No limite, é na elaboração da cena entre o estar lá da pesquisa de campo e do estar aqui da elaboração daquilo que um antropólogo efetivamente faz - he writes down[2] como etnógrafo e write up como membro de sua comunidade científica (Geertz, 1973:19-20). A afirmação de que antes de mais nada o antropólogo escreve - e só - teve um efeito similar ao de um outro elemento teatral, no caso, da aparente surpresa de M. Jourdain, o burguês fidalgo de Molière, de que Há mais de quarenta anos que faço prosa sem o saber! Fico-lhe muitíssimo agradecido por me haver ensinado isso, diz o mesmo Jourdain ao Mestre de Filosofia para logo em seguida ditar suas intenções para uma carta de amor para a Bela Marquesa, para quem quer dizer que seus olhos me fazem morrer de amor, mas escrito de outro jeito, de modo galante, com elegância. O diálogo com o Mestre da Filosofia é cheio de ensinamentos, especialmente com relação àqueles que Jourdain já sabia sem tê-los estudado.
                        No entanto, esta comédia de costumes não acontece por mero capricho ou por simples despreparo. A etnografia como gênero sério reflete uma mudança nas relações de força e poder que fazem com que a tranquilidade com que pesquisadores como Malinowski, Evans-Pritchard, Lévi-Strauss e Ruth Benedict escreveram não seja mais possível. Isto se dá porque a relação entre quem escreve e quem lê, a função autor e a recepção mudou drasticamente, oferecendo ao pesquisador embaraços que seus antecessores jamais sonharam que teriam. Especialmente porque não foram poucos os que apostaram as fichas na extinção das populações que por ventura tivessem estudado. O contexto moral do ato etnográfico não é mais o mesmo assim como não são os mesmos os compromissos assumidos pela pesquisa de campo. O pressuposto da alteridade como afastamento geográfico-linguístico-tecnológico se desfez fazendo com que então viessem a se manifestar das mais diversas formas.
               Nada do esfacelamento da distância logística e infra-estrutural acaba necessariamente com o conteúdo de determinadas afirmações, métodos e descrições produzidas nas monografias consideradas clássicas - lembrando que salvo raras exceções, a lista é bastante polêmica[3]. Ao mesmo tempo este novo contexto moral não faz com que monografias antigas tornem-se obsoletas ou simplesmente rejeitáveis por se utilizar de expedientes que a média dos pesquisadores não consideraria adequada - inadequação que perpassa os métodos de pesquisa de campo, o vocabulário utilizado e mesmo a anuência daqueles que figuram como personagens da prosa etnográfica e seus diversos modelos; implícitos e explícitos.

                        "Essa confusão entre objeto e público, como se Gibbson de repente se descobrisse com um público leitor romano, ou se M.Homais publicasse ensaios sobre "A descrição da vida provinciana em Madame Bovary" em La Revue des Deux Mondes, deixa os antropólogos contemporâneos numa certa insegurança quanto ao objetivo da retórica. Quem deve ser convencido hoje em dia: os africanistas ou os africanos? Os americanistas ou os índios norte-americanos? Os nipologistas ou os japoneses? E convencidos de quê: da exatidão dos fatos? Do alcance teórico? Da apreensão imaginativa? Da profundeza moral? É bem fácil responder "Todas as alternativas acima", porém não é fácil produzir um texto que assim o faça."(Geertz, 2002:174).

                        Sem dúvida que a reunião desses fatores põe em relevo algo muito importante que é a alteração do público das monografias escritas por antropólogos e, assim, da mudança das estratégias, recursos e limites de afirmação de suas pesquisas. É nesse sentido que o gênero sério é lido como blurred genres, ou gêneros literários borrados. Porque a banca de avaliação não é mais somente, e por vezes não é necessariamente, a leitora daquilo que se escreve assim como os pares não são necessariamente os principais receptores de um artigo. Uma vez que públicos que outrora estavam afastados se aproximam com força e velocidade, é razoável intuir que o mesmo se dê com os métodos de registro e os meios de reflexão pelos quais a pesquisa produz seus artefatos. No final das contas a produção etnográfica, especialmente no que tange a relação entre o antropólogo e seu público, é compreendida como um processo descritível como interacionismo simbólico em que ágora e theatron parecem ser fundamentalmente indistintos - o que é tão sugestivo quanto suspeito vindo da parte de alguém que escreveu sobre o Estado-teatro balinês (1991)[4].
                        Convém compreender no entanto que esta sugestão, a de que ágora e teatro margeiam a indistinção, é uma proposição irônica, ao invés de cínica. Afinal, os riscos de estar entre lá e cá, afirma Geertz (2002), valem a pena. Ainda que seja possível questionar severamente se voltar para cá é o melhor desdobramento para a prosa etnográfica, como o faz Eduardo Viveiros de Castro, por exemplo; ou mesmo convém voltar a passagem supracitada e perguntar, sem vacilar, quem são os antropólogos contemporâneos da afirmação de Geertz, coisa que o fazem Johannes Fabian e Roy Wagner; ainda que tudo isto esteja em questão, a problematização da figura ou da função autoral não é simplesmente irrelevante. Mas para isso, estamos desde já avisados, a segurança da etnografia como gênero literário/editorial/científico não está garantida porque nosso público nos espreita logo ali, na sala de aula, batendo na nossa porta na permanente margem incômoda da presença que até não muito tempo era a arma exclusiva do pesquisador.


Balinese Cockfight, Alred Palmer (1949)



[1] "Pergunto-me sobre qual gênero é esta peça. É do gênero cômico? ainda que não diga nada de engraçado. É do gênero trágico? o terror, a comiseração e as outras grandes paixões não são absolutamente excitadas. No entanto, há o interesse que persistirá sem o ridículo que faça rir, sem o frêmito causado pelo perigo, em cada composição dramática onde o assunto seja importante, onde o poeta tomará o tom apropriado para as questões mais sérias, e onde a ação se desenrola pela perplexidade e pela trama. Ora, parece-me que tais ações, sendo as mais comuns à vida, o gênero que lhes terá por objeto deve ser o mais útil e extenso, que chamarei de gênero sério."
[2] Um dos exemplos mais formidáveis que conheço de write it down, isto é, de registrar no papel se encontra no anexos mitológico da etnografia de Pedro Agostinho sobre o ritual alto-xinguano do kwarìp (1974). Trata-se do mito que narra a rixa dos irmãos Kanaratì e Kanarawarì. Kanarawarì, que cagava perto do rio, ouviu Kanaratì arrancar uma flor de moitse'e(n) e a comparou com a 'aquela coisa' da esposa de seu irmão. Kanarawarì ouviu a comparação indecorosa, pegou um exemplar da flor e levou-a para a esposa a fim de verificar a informação que, por fim, se confirmou. Por causa disso Kanarawarì passa os dias seguintes colocando seu irmãos nas mais difíceis provações sem nunca revelar suas intenções, que seriam concretizadas não fosse a intervenção, também diária do avô. Em uma das provações Kanaratì sobe até o ninho de um gavião, onde ficou por quatro dias: "Aí o Irìvu [urubu] veio, veio, veio, chegou perto dele e disse: "Oi, você tá aí? Eu soube que seu irmão está sempre com raiva de você." Era só um urubu, velho, mulher. Desceu e parou: "Espere aí um pouquinho, vou apanhar meu marido. Foi lá, trouxe sal, pimenta, água para eles beberem, para comerem ratos, os Urubus. Aí Kanaratì ficou chamando: "Por aqui, por aqui, por aqui". O urubu disse: "Ouço sempre dizer que seu irmão está com raiva de você". Aí o rapaz bebeu água, tomou banho e quando acabou, o Urubu comeu o rato podre; para comer o rato, tinha levado pimenta e sal. Aí disseram: "Agora você monta em cima da gente, não olha para baixo, nem se mexe, senão não volta mais. Você tem que ficar quieto".  Monto. "Não abra os olhos, feche bem fechados, senão você fica com medo". Foi devagar, foi devagar, até que chegou lá no céu. Aí entrou lá e ele desceu: "Espera aí. Tem de descer com calma." Porque o Urubu tinha esporão grande na asa, se espetava o rapaz, matava-o. (O esporão era do tamanho dessa caneta.)" (Agostinho, 1974:197-198, grifo meu)
[3] Em uma Reunião Equatoriana de Antropologia da qual participei em 2010 eu conversava com um estudante da Universidade Federal de Roraima, em Boa Vista. de quem não perguntei o nome. Após um Grupo de Trabalho que discutia a história da etnologia alemã com a s ausências de Erwin Frank e de Marco Antônio Gonçalves - o primeiro então falecido -, vim a conversar com um também aluno de pós-graduação. Enquanto eu fazia doutorado na Unicamp, ele fazia mestrado na UFRR. Enquanto eu era mineiro, ele era makuxi. Discutíamos a má formação que tínhamos no que tangia o domínio da bibliografia clássica e de como as aulas na graduação não conseguiam dar conta deste universo. Após concordarmos a respeito disso meu colega listou os nomes que nos faltavam enquanto eu pensava em Radcliffe-Brown, Edmund Leach, Maurice Leenhardt. Seus nomes eram Theodor Koch-Grünberg, Curt Unkel Nimuendaju, Max Schmidt. Nunca apresentei os nomes que eu tinha em mente e ainda não sei se fiz bem.
[4] Não é à toa que Works and lives  (Geertz, 2002) é dedicado a Kenneth Burke, uma das figuras maiores da tropologia norte-americana cujas reflexões sobre retórica e forma literária são muito pouco apreciadas pelo público brasileiro, gozando de somente uma tradução de 1979. Ainda assim, é interessante notar o desprezo local por um pesquisador tão dedicado à eloqüência literária como forma de condução do público leitor. No ensaio Psicologia e forma, ao introduzir longamente a cena em que Hamlet se confronta com o fantasma do pai, urdida e antecipada com enorme cuidado por William Shakespeare, Burke anota: "Demorei-me um pouco nesta cena porque ela ilustra de modo perfeito a relação entre psicologia e forma, e indica de maneira muito hábil como uma deve ser definida em termos da outra. Vale dizer, a psicologia, no caso, não é a psicologia do herói, mas a psicologia do público. E, por via dessa distinção, a forma seria a psicologia do público. Ou, vista de outro ângulo, a forma é a criação de um desejo ou anseio (appetite) na mente do ouvinte e a satisfação adequada desse anseio. Tal satisfação - tão complicado é o mecanismo humano - envolve, às vezes, um conjunto temporário de frustrações, mas, ao fim, essas frustrações demonstram ser, simplesmente, um tipo mais complexo de satisfação, e, além disso, servem para tornar mais intensa a satisfação do cumprimento (fullfilment). Se, numa obra de arte, o poeta diz algo, por exemplo, acerca de um encontro; se escreve de tal maneira que desejamos assistir a esse encontro, e depois, nos põe tal encontro diante dos olhos - isso é forma. Do mesmo passo, obviamente, é também a psicologia do público, porquanto envolve desejos e sua satisfação." (Burke, 1979:45) 


Bibliografia


AGOSTINHO, Pedro. Kwarìp: mito e ritual no Alto Xingu. E.P.U./EdUSP. São Paulo.1974.
BURKE, Kenneth. Teoria da forma literária. Cultrix. São Paulo.1979.

GEERTZ, Clifford. The interpretation of cultures. Basic Books. Nova York.                       1973.
_______________. Negara: o Estado teatro no século XIX. Bertrand                                   Brasil/Difel. Rio de Janeiro/Lisboa.1991 [1980].
________________O saber local: novos ensaios de antropologia                                       interpretativa. Vozes.             Petrópolis. [1983]1997.
________________Obras e vidas: o antropólogo como autor. UFRJ. Rio de                     Janeiro. [1988] 2002.

sábado, 20 de fevereiro de 2016

VIDA TORTUGA ESTIMADA

Alimentou-me com hortaliças
anos a fio
para lhes apressar a morte e,
sadicamente,
adiar a minha.