O fragmento foi redigido em 1950. Discute o conceito de política no mesmo momento em que redigia seu livro maior, Origens do totalitarismo, prefaciado no mesmo ano. Assumindo a tarefa de introduzir o público leigo ao conceito aos temas fundamentais da política, Hannah Arendt escreve uma espécie de manifesto do tempo presente em um planeta que via parte das principais instituições ocidentais ruir sob o peso do totalitarismo. Começar a discussão a respeito do fragmento em questão, aquele que disserta sobre o que é política, tem como principal horizonte tomar como ponto de partida o conceito, e o problema do conceito do comum como fundamento da vida política. A expectativa primeira é que poucas coisas são tão difíceis de compreender quanto o que podemos chamar de comum.
Ainda que seja nosso ponto de partida, o problema do comum, convém estabelecermos que é somente enquanto orientador para uma reflexão sobre a política que o comum vai nos orientar. E, se seguirmos o primeiro fragmento, de agosto de 1950, vemos que a política se baseia em 7 elementos. E não, Hannah Arendt não nos oferece uma definição. E se Jacques Rancière estiver certo (2018) como acredito que esteja, é porque a política é antes um acontecimento que danifica as relações, que coloca algo a perder, que não tem nenhuma definição propriamente positiva - assim como o comum. De um comum como algo indeterminado, como um conceito que faz precipitar a atividade política, o comum é fonte de uma certa indeterminação na exata medida em que é possível dizer que o conceito sofre do mesmo mal da política propriamente dita: não consegue irromper que não seja por interrupção do ordenamento posto, por um desacordo quanto ao fato de que o comum não se concretiza nas relações postas. Esta dificuldade maior nos coloca então no horizonte de que a reflexão sobre a política em suas diversas manifestações é uma reflexão que, na medida em que é exclusivamente teórica, ou mesmo meta-teórica, propicia um momento de concórdia ou, lembrando uma reflexão maussiana, de conciliação que não compactua com a radicalidade do desentendimento para o qual a política se presta.
Digo tudo isso porque Hannah Arendt introduz sua reflexão na fórmula “a política se baseia na pluralidade dos homens” (1999:21). Nisso, a política tem como base, sustenta-se a partir da constatação fática, do fato de que há diversidade humana que é, para todos os fins, irredutível. Esta irredutibilidade é o horizonte de sua pesquisa sobre o totalitarismo e sobre o fim da política na propaganda totalitária. E ainda assim, é daqui que partimos. Em primeiro lugar, a política parte da constatação de que há algo de irredutível na humanidade, e ela é exatamente a diversidade existencial humana. Esta diversidade existencial constrange o pensamento na forma pela qual a política não é, e não pode ser um exercício de taxinomia:
“A política baseia-se na pluralidade dos homens. Deus crio o homem, os homens são um produto humano mundano, e produto da natureza humana. A filosofia e a teologia sempre se ocupam do homem, e todas as suas afirmações seriam corretas mesmo se houvesse apenas uym homem, ou apenas dois homens, ou apenas homens idênticos. Por isso, não encontraram nenhuma resposta filosoficamente válida para a pergunta: o que é política? Mas, ainda: para todo o pensamento científico existe apenas o homem - na biologia ou na psicologia, na filosofia e na teologia, da mesma forma como para a zoologia só exite o leão. Os leões seriam, no caso, uma questão que só interessaria aos leões.” (ARENDT, 1999:21)
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Quatre petits fils proprement comparés |
A figura zoológica do homem no singular tem uma trajetória importante na medida em que, ao mesmo tempo em que produz uma alternativa às formas de racismo poligenista, que consistiam em mais de uma variação sobre a modernidade escravocrata e o regime de apartheid, ela faz da variação monogenista uma versão alocrônica de formas distintas de racismo. Por exemplo, na figura dos três estágios evolutivos presentes na filosofia da história do positivismo de Comte. Neste caso estaríamos, contudo, na seara de arranjos mais ou menos metafóricos, em que a zoologia humana seria mais uma apreciação sobre a conformação as ciências da vida - as ciências que instituem enunciados que orbitam ao redor da vida como um conceito, ou seja, como uma classe de fenômenos estabelecida -, seria importante encontrar um exemplo literal do que estamos falando, que servisse como fonte de um arquivo que, contra teológico, reafirmasse a unidade humana nas bases da anatomia comparada. Felizmente, estas fontes remontam exatamente à Enciclopédie, editada por Denis Diderot e Jean le Rond D’Alembert e encontram seu momento pinacular na obra De l’homme, de Buffon. Uma remissão para a tradição francesa de pensamento não é meramente um exercício de erudição. É, no limite, a reconstituição do arquivo político onde se expressa o sujeito constituído que terá na lei o seu reconhecimento. Na lei humana e, obviamente, nas leis da natureza. Fazer coincidir um com o outro é, bem sabemos, uma obsessão moderna sem precedentes e é com ela que nos havemos, ainda que de forma bastante incipiente.
O verbete da Encilopédie que versa sobre a antropologia de um ponto de vista propriamente moderno é o de anatomia. Escrito por Diderot, acompanha o interesse do mesmo pelas ciências da vida e pela proliferação de metáforas políticas na descrição do funcionamento do corpo. Diderot, entusiasta das luzes em seu formato enciclopédico, endossa a atividade da anatomia - a dissecação - pela atividade imediata, isto é, conhecer a figura, a posição e as conexões dos ossos, das cartilagens, das membranas, dos nervos, dos ligamentos, dos tendões, os vasos arteriais, venosos, linfáticos, etc (DIDEROT, 2015:253). Tendo como horizonte compreender a correlação entre fluidos e sólidos no corpo, faz da correlação entre diferentes estados da matéria como dinâmica da conservação e restabelecimento da máquina (DIDEROT, op.cit.), reiterando parte da enteléquia cartesiana e La Méttrie e antevendo uma das noções caras dos máquinas movidas a combustão.
O caminho do Iluminismo, convém notar, tem notas ardilosas em que é possível antever o futuro nada animador para a vida em comum. Ao considerar as opiniões sobre a prática da dissecação dos chamados médicos dogmáticos, eis como Diderot dá prosseguimento ao verbete:
“’É preciso’, diziam eles, ‘abrir cadáveres, examinar as vísceras, esfoliar as entranhas, estudar as partes diminutas do animal', e nunca é demais elogiar a coragem de Herófilo e Erasístrato, a quem eram entregues malfeitores que eles dissecavam ainda vivos, bem como a sabedoria dos príncipes que sacrificaram um pequeno número de malfeitores em benefício de uma multidão de inocentes, de todas as condições, e todas as idades e de todos os séculos que estão por vir.” (DIDEROT, 2015:254)
Eis a passagem que nos obriga a recuperar a urgência de uma nova ética, tal como proposta por Hans Jonas, para quem uma ética prática envolta nos modos gregos, que resolve questões eivadas de imediaticidade - a esfera da política de Hannah Arendt - vê na responsabilidade uma forma de antecipar a atividade técnica com seu resultado, assumindo um compromisso com a possibilidade da consumação do futuro. A utopia do pleno conhecimento enciclopédico, ainda que tenha produzido uma esfera moral produtiva decisiva para a produção do conhecimento positivo e fundamental para a corrosão das relações de trabalho, parece ver no balanço entre mortos e vivos resultantes de uma operação técnica a razão suficiente para uma tomada de decisão. É impossível não perceber aqui o tipo de prenúncio que conforma a administração total das práticas institucionais nas quais absolutamente tudo está em jogo. Não estamos falando, obviamente, somente de conhecimento. Mas desconfio que aquilo que toma a forma de uma matriz ideológica é muito mais o desdobramento da administração de uma cultura material que, a esta altura, ou funciona nesta correlação de escalas ou tende a travar. Com o imperativo do crescimento como índice de desenvolvimento - o que nos coloca diante de questões de economia política -, a desconfiança carrega consigo uma maré de corpos que recebe o nome de humanidade. Afinal, com vistas em um conhecimento anatomicamente preciso, o objeto passado é o cadáver e sua predisposição para a manipulação. Quando encarnada, a humanidade transforma-se em uma outra coisa. É a disposição habitual do coração para empregar nossas faculdades em benefício do gênero humano. E aqui, a ética reclama seu lugar de direito uma vez que o anatomista, é ele desumano? E aqui o iluminismo mostra-se praticante de uma forma aguda de poder e de ajuizamento na qual permite-se pensar no lugar de outrem:
“De minha parte, não gostaria de ser nem cirurgião nem anatomista, pois tenho algo de pusilânime; mas nem por isso me parece menos desejável que fosse instituída entre nós a prática de entregar a profissionais que tivessem a coragem de realizar a operação a serem vivisseccionados. Não importa como se considera a morte de um malfeitor, seria muito mais útil à sociedade que ela ocorresse num auditório do que no cadafalso, e esse suplício seria tão medonho quanto qualquer outro. Haveria um meio de administrar a conduta do espectador, do anatomista e do paciente; o espectador e o anatomista não realizariam no paciente operações que não fossem úteis ou cujas consequências não fossem claramente funestas; e o paciente, confiando somente nos homens mais esclarecidos, receberia a vida como prêmio, caso sobrevivesse à operação nele realizada. A Anatomia, a Medicina e a cirurgia, não teriam a ganhar com isso? Quantas vezes não nos instruiriam mais as consequências da operação do que a operação mesma? Quanto aos criminosos; quem não preferiria uma operação dolorosa à morte certa? Ou quem não preferiria, em vez de ser executado, se submeter à injeção de líquidos no sangue, à transfusão deste, à amputação de uma perna, à extirpação do baço, à extração de um tecido o cérebro, à ligação das artérias mamárias às epigástricas, ao corte de uma seção do intestino, à abertura do esôfago, à ligação entre os vasos espermáticos, com extirpação do nervo, ou à intervenção noutra víscera qualquer?” (DIDEROT, 2015:256)
Diderot faz a escolha. O risco à morte de uma minoria, não em nome de uma maioria, mas em nome de um futuro que pode nunca vir a acontecer. A questão ética, e a abertura para a política que recusa o homem como uma forma unitária indistinta visa prevenir, ou ao menos recusar tomar decisões como a que Diderot toma, ainda que mediante a redação de um verbete de um empreendimento editorial. Afinal, a desumanidade de um malfeitor o qualifica para morrer porque sua morte possível, à luz do futuro, é um mal menor. No sentido dado por Hannah Arendt, se há algo que o prisioneiro não é, se há um lugar em que ele não está, é entre homens - e a anatomia é útil, mas aos magistrados. Os homens estão fora, movendo a burocracia da morte. E, no entanto, o regime de corpos sob tutela não é a forma de produção das instituições médicas? Por fim, há alguma diferença entre uma doutrina como esta e qualquer uma outra, que vê na vida alheia rifada por uma solução prognóstica a noção acabada de aprimoramento?
No final das contas, o que importa é o progresso. O aprimoramento das descobertas sempre conjugadas com o que poderia ter consequências surpreendentes (DIDEROT, 2015:263). O que é francamente decepcionante para avaliarmos o humor e a capacidade diagnóstica de Diderot, que não percebe o papel ambíguo daquilo que ele mesmo promove. Aparentemente, este é o nosso papel.
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. Companhia das Letras. São Paulo. 1990
ARENDT, Hannah. O que é Política? - fragmentos das obras póstumas. Bertrand Brasil. Rio de Janeiro. 1999
BUFFON. De l’homme. François Maspero. Paris. 1971
DIDEROT, Denis & D’ALEMBERT, Jean Le Rond (dir.). Enciclopédia - ciências da natureza (vol. 3). Unesp. São Paulo. 2015
RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. Editora 34. São Paulo. 2018