LAGRÉE, Michel . Religião
e tecnologia: a bênção de Prometeu. EdUSC. Bauru. 2002.
TAUSSIG, Michael. Xamanismo,
colonialismo e o homem selvagem: um ensaio
sobre o terror e a cura. Paz e Terra. São Paulo. 1993.
TYLOR,
Edward Burnett. Primitive Culture:
researches into the development of mythology, philosophy, religion, language,
art and custom.
John Murray. Londres. 1873 [1871]
2- Numa outra
ponta, já no final do século XIX, no outro lado do canal da Mancha, uma
pesquisa que mais adiante virá a se oferecer para a antropologia social como um
cânone de um passado trágico. “The enquiry as to the relation of
savagery to barbarism and semi-civilization is almost entirely in pre-historic
or extra-historic regions. This is of course an unfavourable condition, and
must be frankly accepted.” (Tylor, 1873:35). Uma pesquisa em que
conceitos fundamentais, cultura e civilização, são tomados como sinônimos
relativos – isto é, sinônimos quando um e outro se relacionam somente entre si
numa remissão selvagem. Não quero avançar ainda mais sem levar em conta, assim
como o faz a historiografia de Michel Lagrée (2002), de que se trata de um
pensamento conduzido pela imagem da industrialização, imagem esta que pergunta
sobre a selvageria do e no industrialismo. Se falamos sobre o
selvagem do industrialismo, nos
remetemos à imanência selvagem, ao selvagem implícito nas ações de industriais
e seus ideais de forma similar aos selvagens da colonização na dialética
apontada por Michael Taussig (1993) – no universo em que a última fronteira são
os selvagens, só a selvageria se impõe fazendo da violência, igualmente
selvagem, uma relação de vínculo e, ao mesmo tempo, de indistinção. Assim, há
algo de selvagem no seio do industrialismo em que a exploração do trabalho é,
seguramente, uma das suas dimensões mais visíveis.
Se falamos
sobre a selvageria no industrialismo,
então o tópico é o da identificação numa tábula classificatória em que o
caráter da ação é propriamente simbólico e, portanto, transcendental dizendo
respeito aos métodos de observação que fazem o selvagem figurar na codificação
das teorias industriais, dentre as quais a antropologia social. Que se diga que
nem toda antropologia moderna é industrial e que as trilhas abertas por Tylor
não são necessariamente formas de uso comum de evolucionismo. Ainda assim, em Primitive Culture encontramos o
vocabulário comum às teorias do desenvolvimento e do progresso onde reside de
fato sua reflexão sobre a industrialização que é, vale lembrar, um modo da ação
humana que tange discussões complexas sobre a organização social em suas mais
diversas faces. Sua generalização, e a antropologia de Tylor não é outra coisa,
tem efeitos tão interessantes quanto o teve a noção de verdade revelada – isto
é, visto do ponto de vista industrialista.
A evocação
da verdade revelada, e com ela todo o universo religioso politicamente
relevante em meio ao jogo da planificação da vida em comum da economia política,
conduzem a leitura dos escritos de Tylor para a cena do desalojamento do
religioso, de sua condição futura de locatário e de como a reflexão industrial
o trata como um meio para um devir que deveio. O futuro se faz presente em cada
gesto, não sendo o futuro da perfeição da Civitate
Dei antecipada pela Igreja Romana mas o futuro da sociedade perféctil da Civitate Homini cuja força se encontra
canalizada pelos dutos de energia à vapor. A história já sofre, aqui, as
tentações da termodinâmica. Neste ambiente em especial convém perguntar se é
possível tratar o industrialismo antropológico como mais uma das respostas ao
absolutismo teológico e ao juízo sintético histórico que responde pelo conceito
de “secularização”. Particularmente se colocarmos, como o faz Tylor, as lentes
que enxergam a história por movimentos de difusão cultural e o drama das sobrevivências
que, com relação à modernidade têm especial valor na discussão sobre formas
jurídicas com relação às quais convém perguntar se são meio ou forma de vida; e
se no contexto adaptativo mais radical que põe as formas de vida em risco de
extinção, se convém narrarmos a seleção natural por via da mecânica clássica ou
se há margem para algum dispositivo com a forma de uma evolução criadora que o
neo-lammarckismo hoje chama de epigenética.
Antes de
mais nada convém avançar com certo comedimento, porque há muita velocidade na
antropologia de Tylor. Os deslocamentos geográficos e históricos se dão a
serviço de uma colagem sem preocupações relativas à etiqueta, diplomacia ou
liturgia – de cargo ou de sacramento. O mesmo se dá com a sinonímia entre
civilização e cultura, que é imediata e ligeira; o pré-histórico e o
extra-histórico se apresentam como indiferentes entre si determinando terem o
mesmo significado – no que faz surgir a primeira dificuldade. Isto porque os
conceitos mobilizados por Tylor não têm significado preciso. Sua definição se
dará por regiões, que é o que fará par com o conceito enquanto significante,
dado que são remissíveis a formas de vida. Quando ainda no primeiro capítulo de
Primitive Culture Tylor desabilita a
antropologia racista ao buscar a refutação da fundamentação poligenista de seus
pressupostos, o mesmo Tylor faz uma remissão secreta a Claude Bernard, em nome
da classificação dos estágios culturais – que, de uma forma pervertida é a
transformação, mesmo que não intencional (diria um leitor de Karl Löwith) da
teologia de Joachim dei Fiori em uma teoria, não do futuro, mas do presente. A
fisiologia corre nas veias do industrialismo na medida em que, para o melhor
entendimento da distribuição global da humanidade , será preciso “dissecar
detalhadamente e então classificar” (1973:07) em grupos que correspondam à
espécie como são os utensílios, o artesanato, os mitos e tudo o mais que seja
fruto da atividade humana, esta espécie industriosa.
“What this task is like, may be almost perfectly illustrated by comparing
these details of culture with the species of plants and animals studied by the
naturalist. To the ethnographer, the bow and arrow is a species, the habit of
flattening children’s skull is a species, the practice of reckoning numbers by
tens is a species. The geographical distribution of these things, and their
transmission from region to region, have to be studied as the naturalist
studies the geography of his botanical and zoological species.” (1873:07)
Há aqui, antes de qualquer
outra coisa, o eco da proliferação das teses sobre a especificação. Torna-se
muito difícil, na verdade, saber o que é uma espécie e, todavia, os artefatos
humanos devem ser convertidos neste utensílio classificatório e sua
classificação responde à conformação geográfica produtiva na qual a cultura
parece corresponder a uma certa infra-estrutura de produção e, ao mesmo tempo, no
produto ele mesmo. O significado é fundamentalmente o indício de sua
sobrevivência em meios mais ou menos hostis – o modo de compreensão da relação
com as demais formas de vida com as quais compete, principalmente, por
subsistência (uma variação do tema do connatus).
No
entanto, vemos que o etnógrafo deve reconhecer nos artefatos os traços de uma
forma de vida, o que faz do reconhecimento de formas culturais um componente
anímico do pensamento expresso em índices reconhecíveis. É o etnógrafo que
vamos reconhecer, tramando na prosa
de Tylor (e não pela prosa dele) o
encontro entre o selvagem imanente e o transcendental, o que permite refletir
melhor sobre o industrialismo como aceleração produzido por regiões de indiferença. Assim, para que
uma teoria da cultura aos modos da antropologia do progresso da espécie humana
seja posta em questão é preciso reconhecer que tanto faz o conceito ter tal ou qual significado. O que importa
para o esquema é a especificidade da
forma de vida em seus traços constitutivos, a forma pela qual pode ser
reconhecida e que a conduz à sua própria generalidade. Mas, e aqui arrisco
dizer sem o devido exame, não é qualquer conceito cujo significado é
indiferente, mas somente os conceitos fundamentais, como civilização e cultura
mostrando, metodologicamente, um exercício contrateológico no qual o fundamento
não está na palavra proferida, mas nas extensões que ela produz
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