CERTEAU, Michel de.
Le lieu de l’autre : histoire
religieuse et mystique.
Gallimard/Seuil. Paris. 2005.
ECKHART, Mestre. O
Livro da Divina Consolação e outros textos seletos. Vozes.
Petrópolis. 1999.
EISENBERG, José. As
missões jesuíticas e o pensamento político moderno:
encontros
culturais, aventuras teóricas. UFMG. Belo Horizonte. 2000
SCHMITT, Carl. Théologie politique. Gallimard. Paris.
1988.
WILDE, Guillermo. Religión y poder en las misiones guaraníes. Editorial Sb.
Buenos Aires. 2009.
5-
Há que se
perguntar se seria ofensivo tentar medir a dimensão em que a mística jesuíta é,
por fim, o recurso à encenação que antecipa a Autopsicografia de Fernando Pessoa. E de alguma forma é o que
parece apontar o curto ensaio de Michel de Certeau sobre Ignacio de Loyola e
seus Exercícios Espirituais. Não é a
primeira vez que o historiador jesuíta recorre ao expediente da simulação para
compor um quadro acerca da mística. E que o recurso à encenação tem faces
diferentes a depender da escala em que a mesma impõe. Que a administração dos
exercícios do espírito ao que faz o retiro não é a mesma coisa que a
administração das almas na organização das missões – em termos nos quais
organização ressoa no conceito de redução,
isto é, a vida urbana cristã em versão miniatura ou, de outra forma, reduzida
aos traços essenciais – caricatura? Relativo à formação de agrupamentos
característicos das missões guaranis no Paraguay dos século XVII e XVIII:
“La fundación de un pueblo
expresaba, en la visión de los jesuitas, la instauración de un verdadero orden
cristiano. En esa singular visión, la idea de civilidad era intrínseca la de la religión católica. De allí que la
“reducción” fuera básicamente reducción
a vida política y cristiana. Pero el dominio no se ejercería únicamente en
el nivel del urbanismo, sino también en de los cuerpos pues, en última instancia,
la ciudad era una reproducción en escala macro des cuerpo humano y sus partes.
De allí que el uso de los lugares, las vestimentas y posturas corporales fuera
objeto de estricta vigilancia y control (Hespanha, 1994:95). La geografía
visual de los pueblos se ve reforzada por los castigos corporales y la
mortificación de los cuerpos, prácticas que ya aparecen prefiguradas en los Ejercicios Espirituales de Ignacio de
Loyola (Barthes, 1997).” (Wilde,
2009).[1]
A passagem citada do livro de Wilde faz
uma manipulação delicada, digo, põe as mãos num arquivo que de fato se dedica
aos textos que descrevem a administração das missões guaranis no Paraguay, as
meninas dos olhos de Lafitau e outros tantos jesuítas. Assim como Eisenberg
(2000), lê as cartas jesuítas com a finalidade de investigar no detalhe a
imaginação administrativa e seu percurso na própria administração da vida
missionária que, obviamente, inclui as populações guaranis. Mas a manipulação
mais delicada, que Wilde faz desdobrar do trabalho de Barthes sobre Ignacio de
Loyola, sugere uma certa imaginação comum entre a administração da alma de
outrem com a alma própria, fazendo coincidir o governo de si com o governo dos
outros. Este desdobramento confere apressadamente razão à fórmula de Carl
Schmitt (1998) que define secularização como desdobramento dos conceitos
teológicos em teoria moderna de Estado. Sugere, sem considerar a mudança de
escala entre si e outrem, identidade entre os exercícios a despeito da mudança
de escala ao mesmo tempo que, no mesmo espírito em que consideram sem fazer
qualquer menção a força da sugestão de que um documento administrativo é tão
católico quanto o poderia ser um texto místico; ou da mística. E vice-versa.
É temeroso fazê-lo, contudo, a partir de
textos secundários e não a partir da fortuna jesuítica. Contudo, como o que
está em questão é a elaboração e aprofundamento de um problema em questão – o
lugar do outro como um problema de teologia política -, é possível que este
movimento seja válido mesmo que de forma meramente tentativa. E assim é preciso
aprender a medir a distância entre, por exemplo, as cartas jesuíticas e um
documento como os Exercícios Espirituais
de Ignacio de Loyola. O retrato que José Eisenberg (2000) faz do fundador da
Companhia de Jesus merece, talvez, uma leitura mais cuidadosa. Até porque o que
faremos é, por enquanto, uma mirada desde a mirada alheia, uma forma muito fiel
ao espírito jesuíta.
Eisenberg dedica o primeiro capítulo de
seu livro ao noster modus operandi
que tem sua introdução na vida do cavaleiro Iñigo de Oñez y Loyola que, ferido
em 1521 em uma batalha contra os franceses em Pamplona, retirou-se para o
castelo em Loyola em fins de recuperação. Sugestivamente, o seu castelo, quando
e onde leu Vita Christi de Ludolfo da
Saxônia e Flos Sanctorum de Jacobus
de Voragine, sobre a vida de Jesus Cristo e a vida dos santos, respectivamente.
Que seja marcado ser uma leitura que tenha conduzido Ignacio à vida religiosa,
passagem enunciada pelo próprio Ignacio em sua Autobiografia e aceita por Eisenberg sem mais; é pouco razoável que
seja, contudo, uma bibliografia suficiente, ainda que adequada para o tipo de
narrativa de descoberta vocacional. É no ano seguinte que, já no esforço de
desvencilhar das marcas do cavaleiro Iñigo na vida fora da rota de Manresa que
Ignacio lê Imitatio Christi de Thomas
à Kempis, livro que parece emprestar à teologia política o lugar que a mimese
merece. Esta é a cidade em que redigiu seus Exercícios
Espirituais que, não obstante as inspirações já anotadas tem filiação nos
escritos do abade Garcia Cisneros com quem ele havia travado contato no
mosteiro de Montserrat no ano anterior. De cavaleiro a peregrino sem nunca ter
deixado de ser, nem um, nem outro. A viagem à Jerusalém, cidade que lhe recebe
no outono de 1523 reforça isso.
A alcunha de alumbrados aos seguidores de Ignacio por via da leitura e prática
dos exercícios é um capítulo à parte a ser melhor descortinado por leituras
futuras, especialmente pela ressonância que o termo tem com a fortuna dos iluminados da era moderna
particularmente justificável como hipótese tanto pela constância de
intelectuais iluministas formados em redutos jesuítas – como Dennis Diderot –
quanto pela forma pela qual a articulação entre o governo de si e o governo dos
outros se dá como uma espécie de relação serial. Os efeitos propriamente
políticos desta forma de governo de si toma a forma, antes de mais nada, de
perseguição dado o fato de os exercícios oferecerem um desafio ao ministério
dos sacramentos. Ignacio foi encarcerado, vindo a ser absolvido quarenta e dois
dias depois pela Inquisição. Liberto, sai de Alcalá para ir à Salamanca, onde
seria preso mais uma vez.
Michel de Certeau (2009), em L’espace du désir sugere como síntese
algo que pode oferecer algumas das razões de Ignacio ter sido diversas vezes
preso em centros de ortodoxia teológica de forma a ser acolhido somente no
Collège de Montaigu, na Paris de 1528 – onde figuras como Erasmo e Lutero
também cumpriram etapa de formação. Vejamos:
“Esta
“maneira de proceder” é uma maneira de dar lugar (faire place) ao outro. Ela se
inscreve então, ela mesma no processo em cujo ela mesmo fala, a partir do
“princípio” e que, em seu desdobramento total, consiste em seu texto dar lugar
ao “Diretor”; do diretor, dar lugar ao retirante; deste, das lugar ao desejo
que lhe vem desde o Outro. Deste ponto de vista o texto faz aquilo que diz ao
se formar ao se abrir, sendo produto do desejo de outro. É um espaço construído
para este desejo.” (2009:247)
O desejo que
mostra sua forma em uma apresentação algo psicanalítica é desdobramento do volo, ou vontade, volição do texto de
Ignacio. O ensaio de Certeau reitera a relação que o discurso que manifesta a
volição, ou no caso, o desejo pelo Outro como a forma de considera-lo como
princípio fazendo com que aquele que se exercita tenha como epicentro de sua
atividade o destinatário da ação. O que faço aqui, faço com vistas em Deus –
fórmula que parece responder com alguma precisão algumas das prescrições do Livro da Divina Consolação.
O destinatário
da ação implica que a ação cumpre um itinerário. E este itinerário cumpre ser,
por sua vez, o postulado de um “Fundamento” no qual se prevê a premissa do
valor do itinerário sem que o mesmo tenha etapas pré-definidas como verdade substantiva. É, de
outra forma, um esquema de movimento
(op.cit.:244) que parece responder a algumas premissas coreográficas que compõe
a metáfora dramatúrgica que inundara a vida intelectual ibérica no alvorecer da
sua era moderna particular. É, de outra forma, uma partitura cujo primeiro fora para o qual aponta é para fora do
texto que, em si, não contém nada de especial.
“Os Exercícios fornecem somente um conjunto de regras e de práticas relativas às
experiências que não são descritas e tampouco justificadas, que não são introduzidas
no texto cuja representação não se faz em parte alguma pois são exteriores ao
mesmo dada a forma do diálogo oral
entre o instrutor e o retirante, ou da história silenciosa das relações de Deus e seus dois
correspondentes.” (op.cit.:239)
Da orden de proceder à noster modus procedendi há
uma variação pronominal nada pequena. E esta variação parece encenar a
diferença entre os Exercícios Espirituais e as reduções
que, todavia, respondem pelo mesmo apelo jesuíta. Os exercícios ocupam àquele
que se presta ao retiro por quatro semanas, ou quatro atos, nos lembra Michel
de Certeau. O tempo de retiro é composto em topoi,
composições de lugares de toda sorte
– que mais tarde se desdobram nos exercícios mnemônicos como os palácios da
memória eternizados por Matteo Ricci – divididos nas semanas correspondentes.
Um itinerário. Devem haver lugares
tradicionais de prece; cenários
artificiais com motivos de meditação; composições
gestuais; indicações sobre a iluminação de lugares específicos, como a escuridão
da terceira semana e a claridade, na quarta; trajetórias de retorno e reprise; simulações que demandassem ao retirante estivesse em outras disposições
e situações, como de humor ou se morto. Michel de Certeau chama de não-lugar o que me parece, no final das
contas, a ênfase na negação do ali
como dêitico de lugar. Por exemplo, a Espanha que não acolheu os esforços
primeiros de Ignacio de Loyola, ainda que louvassem a fama do cavaleiro Iñigo
que não encontrou outra coisa para ler em seu castelo que não fossem histórias
exemplares.
[1] A bibliografia citada por Guillermo Wilde é
proveniente de Las categorías del político
y de lo jurídico en la época moderna
de António Manuel Hespanha na revista Ius
fugit (3-4) e do livro de Roland Barthes Sade, Fourier, Loyola. O capítulo de Wilde disserta sobre a civilização dos pagãos guaranis, o que de
qualquer forma significa conversão ao cristianismo.
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