CERTEAU, Michel de. La
Fable Mystique, I: XVIe-XVIIe siècle.
Gallimard. Paris.
1982a.
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Le lieu de l’autre : histoire
religieuse et mystique.
Gallimard/Seuil. Paris. 2005.
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La Fable Mystique, II : XVIe-XVIIe
siècle. Gallimard. Paris.
2013.
4-
O argumento
de Michel de Certeau aponta para a afirmação de que o terreno da mística é o da
inconstância da alma selvagem. Seguramente que a menção ao território como conceito constituinte do problema não deve ser
absorvido sem alguma luta. No caso de seguirmos a intuição de Georges Bataille,
a de que a mística deve ser destituída por completo com a finalidade de limar
toda e qualquer forma de autoridade na composição posterior de seu conteúdo – o
que repete a eclesiologia de Genealogia da
Moral, de Friedrich Nietzsche -, a primeira fronteira é a que versa sobre o
interior e o exterior (dedans; dehors). São, assim, coisas muito
diferentes transpirar o êxtase e fazê-lo, de outra forma, pilar da edificação
de outrem. Deixar vazar as dores sem fonte e organiza-las num objeto em que se
dê a comunicação, não da dor, mas da dor
ou mesmo da “dor”. A dor de outrem, ou a dor tornada um problema na forma de um
livro, para todos e para ninguém. A dor que deveras sente, contudo, segue fugaz
e inconstante o suficiente para que não seja o solo da Igreja. O solo e o
fundamento ainda é a palavra erigida em sintaxe. A experiência é, à sua vez,
música.
“Embriaguez da voz e da música escapando da
história e o discurso místico se
constituirá nesta longa série litúrgica, festiva e artística, como o
acúmulo onde se exacerba a diferença entre um texto sem voz (ele não “fala” mais) e de vozes insensatas (elas não
articulam mais a narrativa ortodoxa). Ele se situará precisamente neste
afastamento.” (Certeau, 2013:221)
Não é
difícil sugerir que o discurso místico e toda a operação editorial que se
constitui ao seu redor serve como um canal diplomático entre o que está dentro
e o que está fora, cuja lógica territorial interfere nas relações de troca. Que
se entenda, e aí residem as restrições de Bataille, a troca presente num
determinado evento experimental não garante a reprodução da mesma troca
implicando que o sacrifício com finalidade premeditada não tem qualquer relação
com a graça. Legislar a respeito, portanto, é tema dos mais delicados uma vez
que se infere a dimensão e a constância da interferência da Revelação, assim
como é por sua vez inconstante a experiência da mesma. Mas ainda custa a
clareza da relação entre mística e território. Contudo, o universo jesuíta é
pródigo em encenar a tensão entre administração e experiência – e a forma como
ela consolida, no fim, outras formas de administração e experiência de forma a
administrar a experiência.
Vale notar
que, em prosseguimento à citação, a música não é seu sistema de notação, ainda
que por via dele e seu aprendizado adequado é possível retornar à música ela
mesma, vindo a experimentá-la de novo. Não voltar à mesma experiência daquela
música, problema a ser colocado à parte, mas à música ela mesma em sua forma
reconhecível, levando adiante a hipótese mais humilde de que a segunda execução
é análoga sem ser idêntica à primeira. E que este sistema de notação permite
distinguir quem executa e quem, de uma certa forma, aprecia e, por fim, quem
está algo ausente da constituição da cena – lembrando a profunda relação entre
teatro, barroco e a Companhia de Jesus. Há quem experimenta por ordem da Graça,
privilégio intransferível. Há a rede de notas e retórica em que o registro se
dá de forma que a experiência sobre a qual se cala possa ser simulada em um
outro ambiente. E há aqueles que, fora deste novo ambiente, são da ordem do
selvagem pois não podem tocar e tampouco serem tocados pela experiência
reproduzida pois estão além da fronteira. O místico, ele mesmo um selvagem, não
terá direito a entrar no mesmo ambiente que ajudou a fundar.
Antes de
mais nada, a mística estuda indivíduos. Isolados. Postos no claustro sem
qualquer menção à trajetória que nos permite chegar até ele na forma de sua
simulação tipográfica ou, repetindo Certeau, tatuada no papel (1982a).
Com exceção dos trabalhos de Ernst Troeltsch e Max Weber em The Social Teachings of the Christian
Churches e em Economia e Sociedade,
as considerações sobre o estabelecimento da mística como uma ciência e modo de
enunciação seguem pouco exploradas. Contudo o indivíduo místico, o mesmo que
encanta a literatura com suas infinitas possibilidades de fazer proliferar o
maravilhoso é também posto em uma cadeia discursiva em que a experiência à qual
a escrita remete possa estar sujeita à troca – mais do que meramente
linguística. Assim, a mística opera também por via de escolas e grupos; discípulos e mestres; redes de comunicação e transmissão oral, escrita e
itinerante; genealogias e meios; modelos de organização, como monastérios e
eremitismo; procedimentos de comprovação e reconhecimento de milagres, ascese,
curas; codificação sensorial; e por fim, técnicas de representação e
concentração, para além de uma certa economia da honra em que a discriminação
entre grandes homens e homens de poder possa se dar tanto quanto a produção de
sua coincidência. Não é um objeto fácil de controlar, tão dissocializada e
despolitizada (Certeau, 2013:38-39), pois inconstante ao ponto de precisar de
controle constante. E o que demanda controle constante é, por definição,
inconstante. Selvagem.
Sendo algo
mais concreto, não se trata de uma investigação desamarrada de suas fontes, sem
lugar e sem remissões a acontecimentos. Trata-se da modernidade clássica
francesa e a precipitação de toda uma literatura e um sistema discursivo ao
redor da palavra mística. É neste sentido que o termo fábula , história maravilhosa de veracidade questionável, é
utilizada. Algo como conto maravilhoso
que revela, para além do folclore, muito pouca coisa ou quase nada de uma
população de que sua organização social. Aliás, este é o juízo de Lafitau a
respeito da coincidência entre os Antigos e os Selvagens – coincidência oriunda
de uma certa administração das diferenças que os modernos têm com sua própria
infância.
É um ensaio
sobre o frontispício de Mœurs des sauvages américains comparées aux mœurs
des premiers temps, de Joseph-François Lafitau (1724). No canto
direito do frontispício, uma figura feminina empunha uma pena sentada em uma
escrivaninha enquanto mira um homem mais velho, alado, portando uma foice
acompanhado de dois querubins (génies) portando quatro
caduceus, um em cada mão. Os caduceus são representantes diretos da antiguidade
e dos selvagens americanos. Do lado de fora, cenas da providência tendo como
destaque Adão e Eva mais a serpente – anacronismo indisfarçável, pois já estão
no céu a despeito de tudo. Temos então uma cena e um título. Comparemos um com
o outro, tal qual são comparados Antigos e Selvagens, duas formas da infância
da razão.
A comparação
é, antes de mais nada, uma aproximação. Em termos especificamente espaciais em
que dois ou mais elementos díspares são postos na mesma tábua, quadro ou
discurso como coordenados. Lafitau faz uma investigação propriamente
arqueológica na qual recorre à etnologia como uma forma de testemunhar aquilo
que o elemento retrovisor da documentação historiográfica produz como ponto
cego da coleção do cabinet des curiosités.
A comparação, assim, desarticula a ordem cronológica em favor de um esquema
cuja formalização encaixa (emboîte) simbolicamente (2005:96) os
termos comparados em termos de comparação gerais. No caso, compara-se a
humanidade em seus tempos e feitos de origem.
“A comparação é uma “relação” que joga sobre
outras indefinidamente ao gerar o “sistema” de Lafitau, isto é, “um todo cujas
partes se sustentam por ligações que têm entre si”. O “sistema” se define
exatamente como um texto. Assim cada comparação assume o papel de ser, neste
laboratório, uma “preparação textual” efetuada pelos assistentes do escrivão.
Ela transforma, pouco a pouco, a coleção em texto. Não será nem a
ancestralidade, e tampouco a identidade social dos documentos dos quais trata o
que “sustém” o sistema, mas a “própria relação” estabelecida dentre si –
ancestralidade e identidade. Em princípio, ao inverso da historiografia, ele
não é autorizado pelas peças que cita, isto é, pelo referencial intervindo como
legitimação (é o “real” quem legitima a historiografia, “descrição, narração
das coisas tal como elas são). Ela
não é autorizada que por ele mesmo enquanto “língua” própria ou sistema de relações. Entre a comparação
e a escritura, há continuidade. Uma fabrica a outra.”(Certeau, op.cit.:97)
A cena do
gabinete de curiosidades busca analogias selvagens daquilo que se apresenta
como tal e que cede às mesmas analogias por não ter nada a dizer em sua defesa
e tampouco a respeito de seu lugar. Já está deslocado e devidamente
colecionado, cabendo somente sua forma de ordenação extrínseca estabelecida
pelo tableau comparativo. Aquilo que
os símbolos e instituições que antecedem no tempo a Era Moderna comunicam como
sua origem reduz, e é reduzido àquilo que comunica como analogia com os povos
selvagens que são, não vizinhos, mas antepassados reminiscentes que nada tem a
dizer para os modernos. Mas tem muito a mostrar. São, de outra forma, objetos
de um tempo indizível. Indizível pelo afastamento mas, também indizível porque
o barbarismo é próprio do tempo selvagem. Selvagens são, por definição,
analogias místicas. E místicos são, por analogia, selvagens. Século XVI. Francês.
1724. Lafitau. Jesuíta que ordena seus
figurinos antigas (com os quais veste as personagens do frontispício) como seus confrades vestem à moda da época
os Índios das “reduções” do Paraguay (Certeau, op.cit.:93). Ora, é no
Paraguay que localizamos o ideal pedagógico jesuíta e a configuração acabada
das tensões entre o interior e o exterior que conformam tanto o problema da mística em uma ordem religiosa,
quanto a religião em sua própria forma de organizar um território, isto é, de
operar administração o que vai incluir, evidentemente, a edição dos textos
místicos.
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