quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Short guy, short time: o tamanho do campo de trabalho e do trabalho de campo.

(sim, é sobre antropologia.)




I - O futuro de um ofício. É sobre isso que pretendo escrever, ainda que sendo um tanto incisivo, uma vez que diz respeito ao que pratico, do qual tiro meu sustento e que, imagino, traz consigo componentes éticos e epistemológicos nada desprezíveis, ainda que constantemente desprezados. Reagir à pergunta “how short can a fieldwork be?[1]”. Este é o desafio imposto, não pela hierarquia entre o corpo docente e o corpo discente (este é um trabalho escolar), mas porque se trata de um desenho, da caracterização – ou caricaturização – do ofício do etnógrafo. A pergunta é proposta por George Marcus, antropólogo com uma trajetória mais profícua do que posso medir, e que vou me permitir tratá-lo, em última estância como escritor de um só artigo, a saber, aquele que traz a pergunta acima como título. Permito, contudo, fazer um aparte. Em inglês, short é sinônimo de pouca extensão ou intervalo, equivalente ao delta das fórmulas de dinâmica em física, podendo ser aplicado a alguém de pouca estatura ou mesmo a uma distância pequena. Short time, short person, too many things.
Tal como ele mesmo sugere, Marcus se sente incomodado com o que chama de ideais regulativos da pesquisa de campo, de matriz malinowskiana, e se ampara em James Faubion para sugerir uma reforma na cultura profissional da antropologia. Em outras palavras, sugere conceitos que façam da etnografia algo mais plástico, suscetível a manipulações do tipo “collaboratories”, tal como proposto no sítio do centro de pesquisas que dirige. Está pensando em uma antropologia mais adequada para o nosso tempo – e o pronome é uma adição minha, mas em se tratando de antropologia posso me incluir sem pedir permissão, a esta altura. Acredito que, pelo tom de minha escrita, o que tenho a escrever não é movido por simpatia. O que segue então deixa isso claro. Pergunto-me o que uma coisa tem a ver com a outra? O que o legado malinowskiano tem a ver com a abertura da disciplina para uma zona de maleabilidade maior? No que implica esta maleabilidade? Independentemente se eu vier a pensar no legado da pesquisa de campo como exatamente a rearticulação de problemas em novas situações de pesquisa – não fora escolha ou projeto de Malinowski ficar tanto tempo na Nova Guiné, já que havia uma Grande Guerra acontecendo -, creio ser um ato de honestidade seguir Marcus onde ele mesmo vai. Vou seguir o conselho que Marcus ofereceu outrora.
Mesmo que dizendo que não, e de fato o diz, o que permite ocorrer como desdobramento do artigo é o abandono de prerrogativas que conferem à pesquisa de campo em antropologia sua característica, que Marcus chama de professional culture of craft. Permito-me traduzir a partir da noção de artesanato. Segundo razões que Marcus deixa claro mais adiante, e pretendo chegar à elas, é tempo de rever o superlativo do autoral nas práticas artesanais do trabalho etnográfico e nos entregar a novas necessidades relativas a um colaboracionismo mais intenso que, de qualquer forma já configuram as práticas mais individualizadas do ofício. Afinal, no man is an island. Mas aos poucos chegamos ao ponto.
Uma das citações do trabalho de Fabian faz a conexão entre as agências de fomento, a inércia que lhes caracteriza e uma certa noção do campo do trabalho do antropólogo no futuro. Não quero reiterar minha antipatia, mas tenho dificuldades em definir o estado de arte presente, até porque são muitos os envolvidos fazendo coisas muito diferentes entre si. Inclusive pesquisas consideradas ultrapassadas por tantos, como as de genética de populações, nutrição e perfil bélico, e mesmo trabalhos de campo intensivos e extensos – alguns deles defendidos no último ano no mesmo Programa de Pós-Graduação para o qual escrevo este mal fadado ensaio. Assim, qual futuro é este, legislado com tamanha fluidez? Não sei. O que emerge do artigo em questão é uma concepção, que considera nova, na qual a seqüência de trabalhos em geral considerados como o retorno repetido a uma mesma localidade com vistas na repetição seqüencial tenha sua seqüencialidade redefinida em outros termos. Não mais na visita repetida, mas nos passos dados para seguir o nativo, literalmente. Pé-ante-pé. Talvez por algumas horas? Quem sabe? Se posto em uma caricatura, é muito semelhante a algo que, aos poucos se transforma numa anedota contada a meia-boca em conversas debochadas, que se convencionou chamar de antropologia da passagem, que faz remissão a um artigo de um antropólogo prestigiado da paisagem nacional. Obviamente esta caricatura não faz justiça ao projeto de Marcus, mas o mesmo me parece servir para a cultura artesanal da profissão que ele monta como fantoche, os case bounded projects of fieldwork.
Ao dissertar desta maneira poderia ser dito que sou um etnólogo dos mais caxias, dedicado à pesquisa extensa de uma mesma população, fazendo da minha vida o balanço etnográfico de duas, três gerações aldeãs em algum lugar do Alto Rio Negro. Não é bem isso. Na verdade, nada disso. Mas ainda assim, como fantoche eu aceitaria a provocação. Até porque não acredito que o problema fundamental do artigo de Marcus esteja aí. Nada do que foi sugerido considero particularmente grave, não a ponto de querer me posicionar publicamente contra ou a favor, mesmo que já o tenha feito. O que é peculiar é que todo o esforço deste artigo é a defesa do que ele chama de incompleteness. Incompletude. Em outras palavras, Marcus diz que deveríamos deixar de considerar uma etnografia que mantém aberturas próprias de um trabalho inconcluso como a virtude própria do ofício etnográfico de forma que o modelo à forma de um collaboratorie possa surtir efeito, levando à cabo as propriedades do esforço coletivo que a etnografia logo é. Incompletude como norma de prática, toda a linha de produção da etnografia, desde o projeto. Se incompletude pode operar como norma prática, se faz referência a um trabalho incompleto, o que é uma etnografia completa, acabada? A de Malinowski, que voltou algumas vezes à campo? Toda vez em que ouço algo sobre fragmentação, lembro da unidade rompida que, ainda rompida, opera nem que por utopia. Incompletude, a mesma coisa. Diria que se ocorreu de se eleger um fantoche para formular um contraste, George Marcus montou um fantoche ruim. Transformou Malinowski e sua obra na “obra completa”. Sabiamente, em outro campo, Carlos Drummond de Andrade viu sua antologia ser publicada após suas obras completas. Fazendo menção à antologia, disse: “dos males, o menor”.

Entendo que a figura, e mesmo a defesa que o antropólogo anglo-polonês fazia da etnografia de longo escopo tenha se desdobrado em um sem-número de constrangimentos aos pesquisadores heterodoxos. Como eu, inclusive. Mas acredito firmemente que se os trabalhos de campo podem ser menores que o previsto, Malinowski pode ser perfeitamente a little bit of a short man. For a short time, at least.

II – fico devendo a continuação.

[1] MARCUS, George and OKELY, Judith: Debate Section. (George E. Marcus) “How short can fieldwork be?” Social Anthropology/Anthropologie Sociale (2007) 15, 3, 353-367. 2007. European Association of Social Anthropologists.

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