Mostrando postagens com marcador Andar em Círculos. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Andar em Círculos. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Em partes inteiras

Nem uma gota cai
só,
nenhuma,
pois divide-se em outras tantas
gotas,
por menor que seja é sempre
gota
a ser solta enquanto cai no mililitro que conta
gota
a
gota
nos menores traços,
nos menores gestos,
e mesmo ao chão, antes de deitar-se
nua
a gota se multiplica - quando se divide -
e então
imagine a multidão da chuva.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Prolixo

Mover-me na direção de alguém;
mover-me sem
me mover
não é,
em condição alguma,
nem uma coisa
nem
outra. 

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.

-->
FRAZER, James George. The golden bough: the magic art (2/13 vol.). Macmillan. 1990 [1913].
HOCART, Anthony Maurice. Kings and councillors: an essay in the comparative anatomy of human society. University of Chicago Press. Chicago.1970.
HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano. Unesp. São Paulo. (1999[1748]).



7-

-->
O que vemos em Frazer é que a arte da magia repousa em dois ramos. Um a respeito da prática da magia e outro, sua teoria. Um e outro são pseudo-formas; pseudo-arte e pseudo-ciência, respectivamente. Afinal, por se tratar de uma investigação evolucionista, o selvagem é pseudo-civilizado isto é, contém o civilizado em germe da mesma forma que o civilizado contém o selvagem como ameaça cuja fronteira está no limite da epiderme. Esta configuração toma forma, como bem se sabe, nas variações modernas do ceticismo em grande parte incarnada por David Hume, quem podemos sugerir ser em grande parte um ancestral direto de James Frazer, inclusive na arte de reconhecer que certas coisas acontecem. Trata-se da décima sessão de An Enquiry concerning Human Undesrtanding, que versa sobre os milagres que, antes de mais nada, são coisas que acontecem. Pas d’événement, pas de miracle parce que d’abord, le miracle est une chose à voir.
Hume põe em questão o argumento da presença real do corpo de Cristo no sacramento Cristão, o mesmo corpo que outrora serviu de analogia para a justificação do Estado na cristandade. O problema inicial, o mesmo que traça uma espécie de fundação do empirismo moderno, diz respeito aos relatos fidedignos relativos aos eventos relatados e a instituição da confiança nos testemunhos. Porque nem sempre se trata de má-fé do religioso ou do homem do povo, mas de uma profunda desarticulação com relação aos critérios de descrição e da constância dedicada à observação metódica que discrimina não somente a longa permanência no sítio que localiza a percepção como destaca os termos que guiam a observação in loco. Afinal, os apóstolos não são, sob nenhum ponto de vista, naturalistas.

Assim, a evidência que temos para a veracidade da religião cristã é menor que a evidência para a veracidade de nossos sentidos, porque já não era maior que esta nem mesmo nos primeiros autores de nossa religião, devendo certamente diminuir ao passar deles para seus discípulos, e ninguém pode depositar nos relatos destes tanta confiança no objeto imediato de seus sentidos. Ora, uma evidência mais frágil jamais pode desfazer uma mais forte, e assim, por mais que a doutrina da presença real estivesse claramente revelada na escritura, dar a ela nosso assentimento seria diretamente contrário às regras do raciocínio correto. Ela contradiz os sentidos, apesar de que nem a escritura, nem a tradição nas quais se supõe que esteja sustentada trazem consigo tanta evidência quanto os sentidos, quando consideradas meramente como evidências exteriores, sem que nossos corações dela tomem conhecimento pela operação imediata do Espírito Santo.” (Hume, 1999:143-144)

Temos então um exemplo do combate à superstição a partir de um ponto de partida muito particular, que é o que toma a religião segundo questões postas pela teoria do conhecimento. Ao contrário do que propõe a história do direito e, em parte, o tema da secularização como história política da religião, aqui a religião não aparece como forma forte que degenera nas formas modernas, mas ao contrário a forma em potencia se atualizando em planos perfécteis – a perfectibilidade é, aqui, imanente. A proliferação de milagres em meio à história profana é um problema a ser resolvido. Cabe a ressalva de que, como todo cético, Hume não considera a experiência um meio infalível para promover a orientação no mundo. Isto não impede, contudo, que ele possa elencar uma hierarquia de formas de acesso ao conhecimento do mundo que é, para todos os efeitos, experimental antes de tudo que é, antes de mais nada, potencialmente falha. Contudo, ele toma partido antes da observação do que da observância das leis, o que altera profundamente o que se pode compreender como estrutura da mediação e, com isso, a forma de se relacionar com um acontecimento.

Nem todos os efeitos seguem-se com igual certeza de suas supostas causas. Verifica-se que alguns acontecimentos estiveram constantemente conjugados em todas as épocas e lugares; outros, porém, mostram-se mais variáveis e frustram algumas vezes nossas expectativas, de tal modo que, em nossos raciocínios relativos a questões de fato, coexistem todos os graus imagináveis de confiança, desde a máxima certeza à mais diminuta evidência moral.” (Hume, 1999:145)

Com evidência moral entenda-se, obviamente, àquilo que a vida religiosa foi reduzida. Com grau de evidência, por sua vez, compreende-se o regime de probabilidade em que se exercita o conflito das evidências de forma a estabelecer proporções da repetição da incidência que relaciona causa e efeito produzindo assim camadas estatísticas que pesam em favor de uma ou outra versão. Estatística é, convém lembrar, uma ciência de Estado assim como uma percepção do estado de relações que permite que o investigador não seja refém da autoridade de um testemunho somente e que possa se aplicar na coletânea de relatos. E é o regime de probabilidades que orienta, assim, a investigação daquilo que acontece vindo estabelecer no regime das causalidades, a forma posta em evidência como a de maior regularidade guardando assim a dimensão preciosa das regularidades ocultadas da experiência, seja por pertencerem a ordens infinitesimalmente grandes, infinitesimalmente pequenas ou radicalmente distintas da experiência adquirida, como no caso do príncipe indiano que submetido ao calor dos trópicos não acredita na possibilidade da água congelada, o que é fundamentalmente racional.
Nisso, o milagre. O acontecimento não somente como exceção da regularidade, o que é meramente o inesperado, mas também como a suspensão das leis da natureza. Afinal, quais são as chances de um milagre acontecer de novo? Quais são as probabilidades? A absoluta exceção do milagre é de tal ordem que se torna impossível instituir a partir dele qualquer autoridade com vistas no relato porque como acontecimento ele não faz nada mais do que irradiar como novidade e obrigar ao relato que destaque que, por fim, ele aconteceu e nada além disso. O efeito fundamental sobre aquele que o testemunha é o efeito das maravilhas, das mirabilia, seja porque aconteceram, o que é uma dimensão sempre suspeita dado que depende do relato, seja porque alguém relata vindo a sofrer suficientes distorções a ponto de fazer com que todos os testemunhos sejam por fim dignos de descrédito mostrando que o fantástico e o maravilhoso é antes de mais nada, um erro de escalonamento quando não o mero exercício de tornar a narrativa algo mais interessante e se promover com isso. Assim, o relato que poderia pretender transmitir algo de verdadeiro cede em graus diversos àquilo que é meramente verossímil, ainda que seja muito pouco provável. Preferindo contar uma boa história no lugar de algo que se mostre regular, normal e repetitivo, a narrativa sobre os milagres oferecem uma sorte de ficção que exagera contornos, excessivamente afetiva e nada preocupada no exame do caso. Todos os olhos na qualidade do testemunho, naquilo que efetivamente há para ver. É muito difícil distinguir, assim, a antiguidade fabulosa de James Frazer dos povos bárbaros particularmente suscetíveis em compartilhar histórias milagrosas. E talvez não seja necessário.
Que os dois primeiros volumes de O ramo de ouro sejam uma teoria da magia e que a mesma responde melhor a certas questões de caráter prático do que teórico, isto é claro. No entanto, o papel que a magia desempenha como um regime de semelhanças associadas merece tanta atenção porque é um complexo de associações entre termos assemelhados que parece nos levar a algum lugar em especial: o sacerdócio de Nemi. Entendendo que se trata da sucessão pelo assassinato cujas regras de sucessão Frazer se propõe a reconstituir, nada melhor que estabelecer o paralelo, para todos os efeitos adequado, da história da religião com o exercício pericial da cena de um crime e chamar o exercício de “método comparativo”.
O caso que, com poder consideravelmente menor, as regras de sucessão do sacerdócio Nemi não encontram paralelo na antiguidade clássica e conseguir explica-las efetivamente demanda uma ginástica fenomenal não somente porque não se correspondem com qualquer outro costume antigo como pertencem ao campo de investigação própria da antropologia social moderna. Trata-se de um costume bárbaro cuja racionalidade está obviamente em questão. É preciso confiar, contudo, na continuidade da mente humana que serve como fiador do mecanismo evolutivo que preserva as hipóteses de Frazer cuja história natural permite que de alguma forma seja possível percorrer a história ao contrário, voltando ao ponto senão de origem, àquele que permite borrar a distinção entre selvageria e antiguidade, ambos fonte, imanência e, de alguma forma, sobrevivência.

Accordingly, if we can show that a barbarous custom, like that of the priesthood of Nemi, has existed elsewhere, we can detect the motives which led to its institution; if we can prove that these motives have operated widely, perhaps universally, in human society, producing in varied circumstances a variety of institutions specifically different but generically alike; if we can show, lastly, that these very motives, with some of their derivative institutions, were actually at work in classical antiquity; then we may fairly infer that at a remoter age the same motives gave birth to the priesthood of Nemi. Such an inference, in default of direct evidence as to how the priesthood did actually arise, can never amount demonstration. But will be more or less probable according to the degree of completeness with which it fulfils the conditions I have indicated. The object of this book is, by meeting these conditions, to offer a fairly probable explanation of the priesthood of Nemi.” (Frazer, 1990:10)

O que Frazer sugere fazer é exatamente trabalhar com o que Anthony Maurice Hocart sugeriu ser o domínio das provas circunstanciais em seu Kings and Councillors. É na leitura de Hocart, inclusive, que duas coisas saltam aos olhos. A primeira, sobre o grau de penetração do paradigma indiciário nesta forma de administração da prova de forma que a investigação arqueológica que nos conduz à antiguidade e à selvageria, ao mesmo tempo, se utiliza do aparato próprio da antropologia forense em que são os rastros de alguém que interessam, e que nos conduz ao agente e suas intenções – como o será na figuração ao redor do assassinato do sacerdote de Nime. A segunda diz respeito à necessidade e, ao mesmo tempo, a precariedade do uso artificial de analogias para o exercício comparativo em antropologia que se conduz pela variety of institutions specifically diferente but generically alike.
Hocart abre seu livro dissertando sobre as regras do jogo de seu programa de pesquisa pautado por uma analogia explícita com a investigação pericial criminal. E é exatamente a cena de um crime que lhe serve de figura em que se dispõe do corpo, mas não de testemunhas. O que ele sugere é que as evidências diretas são superestimadas caso não sejam testemunhas do ato e, ainda assim, lembremos, réu confesso não elimina a necessidade de investigação pericial. Não é outra a vitória da biologia ao recusaras evidências diretas e recorrer ao enorme expediente da evidências circunstanciais que faz da evolução das espécies a forma de coletar e acolher a enorme diversidade de fatos sem recorrer à premissa da empiria.

There is one branch of human history which has no direct evidence to build on, and no hope of any. That is comparative philology. No one expects that we shall ever recover documents containing specimens of that lost speech from which Latin, Greek, Sanskrit, English, and such languages, are descended. Writing was not adopted by its users till long after it had split up into languages very distinct from one another. Our earliest Greek inscriptions hardly go back to 1000 B.C., at the very least a millennium after this splitting up. This absence of all direct evidence has proved a blessing in disguise. It has forced linguists to drop the wasteful an ineffective frontal attack, to which archaeologists are addicted, for a more decisive and economical flanking movement. They have been driven to the comparative method.” (Hocart, 1970:15)

O método comparativo persegue divergências constitutivas da história de seu objeto exatamente porque os rastros que o mesmo deixa fazem com que ele divirja da primeira impressão coletada. O caminho que leva até o original – e o tema se torna profundamente atrelado à questão da mímesis – visa eliminar as diferenças com vistas naquilo que em um primeiro momento é a regularidade das semelhanças que permitem deduzir, a partir disso, a forma original que desencadeou todas as variações morfológicas. É a comparação entre formas que oferecem uma semiótica particular, aguda e, mais uma vez, à revelia do contexto. É a intensidade da analogia que faz com que o grau de reincidência de uma forma na outra é que indica haver algo para além da superfície, como no caso-teste em que Agni é comparado com Hermes (Hocart, 1970:17-19) no qual são tantas as similaridades entre os mitos narrados que deve haver algo para além da mera aparência – e é aí que se trata de um exercício de anatomia comparada, e que as narrativas pertencem a um mesmo gênero porque sua fábula cumpre quase a mesma narrativa. Mais uma vez, generically alike que tem, por fim, uma dimensão estrutural. O acontecimento é investigado com vistas em sua estrutura entendida como suas condições de possibilidade, não naquilo ou quem ele representa. Todos os abusos da história conjectural partem daí. Seus méritos, idem. Um deles é de não ter aberto mão dos acontecimentos em favor de seus representantes.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Religião para Lelés da Cuca: genealogia da moral


BATAILLE, Georges. L’expérience intérieure. Gallimard. Paris. (2012 [1947])
______________________. Théorie de la religion. Gallimard. Paris. (2011[1973])
NIETZSCHE,  Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Companhia das
Letras. São Paulo. 2001.

I-

Todos temos amigos, ou ao menos é o que parece ser. De qualquer forma é algo que só podemos intuir. Não há muito o que fazer senão, nesta altura, desconfiar que sim. Porque se trata de correspondência fugaz, desconfiada dos sinais que emitimos e por isso, desacertada, dos sinais que recebe em troca. Que haja desconfiança quanto a quem é ou não é amigo, mas o que dos inimigos se sabe é que quem é, o é por justa razão, porque obstrui o caminho, especialmente no ato da caminhada. Trancar a rua, é o que parece, sendo o suficiente como código, e que basta odiar e, mais do que isso, eliminar o obstáculo que define o exercício da inimizade, desde o obstáculo até o extermínio de uma das partes. Nisto boa parte dos folhetins que dispomos define ser o ato de inimizade e o caminho  de uma trama magistral aquela que elimina da superfície terrestre o corpo político chamado de "empecilho". Inimigos que, por fim, carregam consigo todos os sinais de fraqueza e da incompreensão da escala da relação que faz desentender no mesmo golpe as dimensões da violência, aquilo que é bom e aquilo que é mal.
Nietzsche é responsável por uma passagem delicada em que investiga o legado judeu para a emergência de uma certa noção de inimizade na conformação de uma moral moderna, a mesma que desenha a forma de determinar o bom, o mal, o belo e o feio sem que seja reconstituída a genealogia que dá conexão entre estes termos todos. O bom e o mal, o belo e o feio, o bem e o ruim/mau não são a mesma coisa, diriam alguns; ora, responde o filólogo da genealogia, a palavra dirá aquilo que eu quiser que ela diga caso eu seja nobre, forte e valoroso - afinal este jogo da potência que permite que algo como o batizado ocorra. Dá nome quem pode, não quem quer. E que por agir na instituição de um domínio e que por isso eu seja signo de nobreza, beleza e bondade, que se deixe o contrário como mero exercício do negativo, sendo vil aquele que não age com nobreza. E é no sacerdócio que esta operação tomará uma outra dimensão, aquela em que não é preciso conciliar o ato de nobreza com a nobreza que se porta fundando uma ordem, uma organização sem corpo, uma autoridade de chancela. Uma moral sem risco da bondade impessoal e da maldade corporificada. O sacerdócio dos escravos, a herança judaica para quem a guerra é um mau negócio vindo a forjar a vingança por via da tresvaloração, o que logo em seguida o mesmo Nietzsche chama de vingança espiritual (2001:26) em que se deu a beatificação da impotência.
Que se leia do legado de Nietzsche como anti-semitismo seria simplesmente resultado de pressa o que, contudo, não impede tal interpretação. Afinal, diriam alguns, é preciso se proteger do inimigo. Seguramente que o esmalte da figura judaica sai arranhada da acusação, mas não é o judeu enquanto tal quem afronta a potência humana de ser, mas a personagem que  exercita a sua desfiguração do inimigo a quem não se deve senão desprezo e que, por ordem da inversão judaica levada ao ápice pelo cristianismo teria levado à reles maldade, redução ao mínimo múltiplo comum de uma existência comprimida a uma só dimensão. O que está em questão é o inimigo, aquele contra quem há de se indispor e que, reduzido ao aspecto mais vil e ignóbil, à mera maldade reduz a contenda ao mesmo ponto, ao mesmo termo em que só é possível ser um inimigo como alguém a ser exterminado. O que daí desdobra é um elogio a Mirabeau quem não conseguia cultivar quaisquer sentimentos por seus inimigos a quem não desculpava porque se esquecia. Esquecia-se especialmente da ofensa.

Um homem tal sacode de si, com um movimento, muitos vermes que em outros se enterrariam; apenas neste caso é possível, se for possível em absoluto, o autêntico “amor aos inimigos”. Quanta reverência aos inimigos não tem um homem nobre! – e tal reverência é já uma ponte para o amor... Ele reclama para si seu inimigo como uma distinção, ele não suporta inimigo que não aquele  no qual nada existe a desprezar e muito a venerar! Em contrapartida, imaginemos “o inimigo” tal como o concebe o homem do ressentimento – e precisamente nisso está seu feito, sua criação: ele concebeu “o inimigo mau”, “o mau”, e isto como conceito básico, a partir do qual também elabora, como imagem equivalente, um “bom”- ele mesmo!...”(Nietzsche, 2001:31)

Que a genealogia seja um equívoco[1], que tenha apontado para o agente errado, eis algo a ser discutido. Mas não é necessariamente o agente que está em questão mas a precipitação da agência e de um certo dispositivo formal no qual a projeção da impotência como forma de poder tenha transformado a relação de inimizade na purgação do mal que ronda, cerca e invariavelmente mata e que, assim, deve ser reduzido ao mínimo que logo é. Que não seja o judeu como pessoa mas como efeito, o poder exercido por via do sacerdócio contra a nobreza, como efeito em que o inimigo é uma ameaça completa fazendo da contenda o exercício das formas vis forçando a uma atitude contrária à vida e ao exercício da potência: a de si e a de outrem. Reduzir a vida ao mínimo comum fazendo do inimigo alguém a ser exterminável porque do ponto de vista do valor ele já não faz diferença alguma, ou quando o faz figura nas sendas do dispensável, quando não do degenerado. A dificuldade de enunciar este ponto de vista, contudo, só não é maior do que o esforço em aceita-lo. Por diversas razões.
Uma forma de fazê-lo é mudar as personagens e alterar a escala da relação. Outra é introduzir questões relativas à distinção entre ação e agência com vistas nos conteúdos e dispositivos que determinam pessoas, coisas e movimentos. Nada disso se faz diretamente pela genealogia da moral, mas não deixa de ser possível fazê-lo no cotejo com outras fontes. Bataille, por exemplo que ao seguir no anti-dogmatismo, que é na verdade anti-papismo radical, recusa a noção de autoridade e do conceito de projeto para reduzir toda autoridade possível ao pré-discursivo, ao não proferido ou melhor, ao silêncio loquaz. Recusa até mesmo a noção de mística para não oferecer oportunidade para a reintrodução de uma ordem eclesiástica qualquer no universo da potência, reproduzindo assim a redução ao extinguível. A experiência interior, reduto da única autoridade que autoriza, plano da imanência, fluxo que corta e cola, a certeza que se desfaz quando algo é dito. Mas quando a assertiva parece formar corpo e conduzir para uma direção gloriosa, a que redime a humanidade fazendo com que venha de encontro com ela mesma, aparece a Guerra – questão que jamais incomodaria a nobreza serralheira de Friedrich Nietzsche porque até então o que havia era a guerra, no minúsculo. Nela encontramos o horror maior, mais definitivo e marcante que o horror da experiência interior, outra forma de arrebatamento.

L’horreur de la guerre est plus grande que celle de l’expérience intérieure. La désolation d’un champ de bataille, en principe, a quelque chose de plus lourd que la « nuit obscure ». Mais dans la bataille on aborde l’horreur avec un mouvement qui la surmonte : l’action, le projet lié à l’action permettent de dépaser l’horreur. Ce dépassement donne à l’action, au projet, une grandeur captivante, mais l’horreur en elle-même est niée. » (2012 :58)


[1]O primeiro impulso para divulgar algumas das minhas hipóteses sobre a procedência da moral me foi dado por um livrinho claro, limpo e sagaz – e maroto – no qual uma espécie contrária e perversa de hipótese genealógica, sua espécie  propriamente inglesa, pela primeira vez me apareceu nitidamente, e que por isso me atraiu – com aquela força de atração que possui tudo o que é oposto e antípoda. O título do livrinho era A origem das impressões morais; seu autor, o Dr. Paul Rée; o ano de seu aparecimento, 1877. Talvez eu jamais tenha lido algo a que dissesse “não” de tal modo, sentença por sentença, conclusão por conclusão, como a esse livro, não para refutá-las – que tenho eu a ver com refutações! – mas sim, como convém num espírito positivo, para substituir o improvável pelo mais provável, e ocasionalmente um erro por outro.”(2001:10)

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Who am I, Jackie Chan? III - o cômico em comum e o liberal engraçadinho

-->
3-

            However, to those who have been taught to regard essentialism as the gravest of intellectual sins it is necessary to explain that certain things are essential to that project – as indeed there are to “India” as a nation-state. To say this is not equivalent to say that the project (or “India”)  can never be changed; it is to say that each historical phenomenon is determined by the way it is constituted, that some of its constitutive elements are essential to its historical identity and some are not. It is like saying that the constitutive rules of a game can never be subverted or changed; it is merely to point what determines its essential historical identity, to imply that certain changes (though not others) will mean that the game is no longer the same game.”(Asad, 1993:18).

            West and the rest. É esta a clivagem para a qual Asad mais se dedica na contenda com Geertz. É o ponto e que concentra sua agressão exatamente por ser esta a fronteira criada pelo exercício da modernidade vindo a exprimir termos particulares desta relação, em particular como se constituem os modernos o resto do mundo como o exercício de seu negativo; os limites da extensão da contemporaneidade e o atraso evolutivo atualizado nas formas mais variadas; o privilégio do tempo futuro da gramática expressiva da noção de progresso. Ainda que completamente envolvida com a cisão os temas da pesquisa antropológica moderna a obriga a se aproximar demasiadamente da relação e seus protagonistas, esta gente que não produz e que não tem nada a acrescentar ao projeto da modernidade. Carrega consigo o fardo da inutilidade política, filosófica, teórica porque, enfim, toma a estranha decisão algo epistemológica de andar com as pessoas erradas e, de alguma forma, participar do seu jogo.

            Seria este o exercício proposto por Geertz, o de estudar na aldeia?

            Lembrando uma querela que persiste para além dos anos 1980, os temos de Writing Culture e a predicação da cultura via George Marcus e James Clifford vale retomar um lembrete. Antes de mais nada, o antropólogo é um autor. A antropologia, por determinação da condição humana ou mesmo por inspiração na Ciência Nova, é um artifício e a cultura um complexo ficcional. Produzir as thick descriptions  defendidas por Clifford Geertz é, desde o começo a definição de uma agenda de pesquisa que Asad problematiza. A antropologia como um código semiótico que, à forma dos demais, constituem a base da orientação humana como uma coisa feita. É ficção. A teoria da ação parte de um sujeito emancipado que, em Geertz não vai além de uma pragmática engaiolada ou, segundo a sua remissão à obra de Max Weber, suspensa numa teia de significados que é, por fim, a cultura. Ora, se a agência implica na extensão do ato e sua posse, o que pode um sujeito que só faz ficção? Seguramente, não muito mais do que antropologia, o que é algo como uma redução ao cômico:

            Anthropologists have not always been aware as they might be of this fact: that although culture exists in the trading post, the will fort, or the sheep run, anthropology exists in the book, the article, the lecture, the museum display, or, sometimes nowadays, in the film. To become aware of it is to realize that the line between mode of representation and substantive content is an undrawable in cultural analysis as it is in painting; and the fact in turn seems to threaten the objective status of anthropological knowledge by suggesting that its source is not social reality but scholarly artifice.” (Geertz, 1973:16)

            A redução ao cômico é um aspecto menos idiota do que parece, ou é perfeitamente idiota num certo sentido, digo, no sentido certo. Abre alas para a agência de um fator decisivo do esforço etnográfico de um certo culturalismo que recusa a narcose estética oferecida pelo ópio dos grandes modelos teóricos do tipo “the world according to me”. Franz Boas, em 1887 publica um elogio à geografia em favor de sua atividade eminentemente descritiva. Recuperar aqui este elogio por via de um desvio analítico-pragmático à Gilbert Ryle faz com que, de certa forma Geertz se alinhe com uma determinada questão ética imposta ao etnógrafo. Refunda a relação com ela operando no regime em que a mesma determinação das cores que da ótica passa pelos olhos de quem vê constitui o espaço de definição em que a antropologia e a condução da reflexão é feita junto aos amigos inúteis em um ambiente artificial, dado que ficcional. O caso é que cultura meramente ficcional provoca um pequeno distúrbio acerca da noção de alteridade, especialmente quando os amigos inúteis afirmam na primeira pessoa do plural que “não somos agentes da história, nem mesmo da nossa e o que fazemos não é ficção” recusando, por exemplo, a simetria por vezes perversa, por vezes redentora entre antropologia e conhecimento local.

domingo, 23 de junho de 2013

MOVIMENTO DO MOVIMENTO: sobre algo que não sei e que, por isso invento a respeito.

 
Auto-retrato
De calças curtas. Talvez não haja outra forma de descrever a cena. Pego em pleno movimento numa fotografia comprometedora. Estava fazendo outra coisa em minha tranquilidade classe média regado a suco de pêra e, literalmente, estava no meu canto. Um apartamento de 22 metros quadrados no bairro de Montparnasse, em Paris, 53 Rue du Moulin Vert. O apartamento consumia mais da metade daquilo que eu tinha para gastar. O resto se transformou em comida, algumas viagens, 60 kg de livros e uma pequena poupança construída às custas de um número significativo de privações. Mateus, meu filho, está em vias de nascer e minha tese de doutorado, esta filha bastarda, está em plena gestação. Estava olhando para o outro canto. Foi então que veio o clique fotográfico. Travei os pés enquanto torcia o tronco. Saí na foto na forma de Jânio Quadros. Não estava só. Era uma foto coletiva em que estávamos todos em uma posição devidamente patética. Sem esforço algum seremos reconhecidos como os patetas da vida política. Não vimos o golpe chegar, levamos o murro e passaremos a vida inteira dando justificativas estapafúrdias a respeito de como apanhamos de um bêbado inútil, daquele vagabundo na forma de rolo-compressor.
            Assim, uma vez que sou junto aos meus mais queridos uma trupe decepcionante não pretendo fazer nenhum esforço a mais do que vinha fazendo. Não quero, não devo e não pretendo fingir ser algo diferente. Dito de outra forma, devo seguir o rumo atropeçado no qual vinha com o intuito de seguir fazendo exatamente o mesmo. Nos tempos do teatro meu professor e diretor José Tonnezzi chamava nossa atenção para assumirmos o erro. Siga a cena e não tente encobri-lo. A empáfia de presumir que a plateia não viu o seu equívoco é a pior forma de ser ator. Comecei errado. Resta seguir na cena a partir disto e trair minhas expectativas sobre quem eu deveria ser. É no ridículo que se encontra a unidade antropológica, melhor não escamotear.
            Quando estava tomando o golpe, vendo o assalto das ruas ainda em Paris, redigia um dos vários fichamentos que aos poucos alimentavam relatórios, blogs e notas que poderiam ser incorporados à tese que ora redijo. Uma vez que eu estava olhando para o lado errado, resta seguir o movimento e assumir o erro. Eu não estava atento. Retomo o fichamento de onde havia parado. Lia Mille Plateaux. Tentava compreender melhor, ou ao menos intuir o que Deleuze e Guattari apelidam de Corpo sem Órgãos (CsO). No esforço de demonstrar o conceito de visageité/rostidade, a noção de CsO era obrigatória, não importando o quão irritante ela parece ser. Ao menos a mim ela irrita.
           
*          *          *

            Começar do fim. Dizer que já acabou, que não há nada a fazer e, por isto dizer que tudo está por fazer e não importando o que for feito, havemos de ser indiferentes à trama. Dito de outra forma, eliminar a causa ou suspendê-la sem com isso interromper as relações de anterioridade. A causa está isolada de um certo tipo de desdobramento não vindo a ser promotora de mais nada aparecendo na forma da silhueta que se forma no apagar das luzes, o breve movimento antes do breu. O fim, desde o começo é só aquilo que se apresenta, é o mero evento com relação ao qual os demais eventos devem se ocupar, ocupando o espaço ao redor numa relação mais de cuidado e sustentação que de causalidade. Há quem chame isso de sincronicidade. Há quem chame isto de uma moda francesa inútil. Aceito ambas as versões dado que nenhuma delas fere o meu orgulho. Dele não me sobrou grande coisa e do que resta, deixo para usar com meu filho.
            A coincidência artificial e forçada do fim com o começo tem como finalidade sugerir a potência da conversão, provisória, do telos em meio, em milieu ou mesmo moyen d’analyse. Isto serve mesmo para o conceito, seja ele qual for, a ser apreciado em favor de seu movimento interno, e interno recompondo a forma redundante do movimento do movimento próprios ao poema de e.e. cummings que reza HE DANSED HIS DID, uma variação da forma de dançar a questão, que é como a atividade oracular zande é definida por Edward Evans-Pritchard. Reconheço que nada disso diz muita coisa e que mesmo parece travar a clareza que o pensamento exige para que possa demonstrar um raciocínio. A expressão “movimento do movimento” não é exatamente o meu melhor momento. Mas se a uso, faço como alguém que expõe suas vergonhas. E mesmo para um exercício ruim é preciso encontrar um meio para fazê-lo revolvendo os grãos com arado preparando o terreno, ou mesmo constituindo território – e que só será assim, território, se o movimento do movimento vier a se tornar movimento de algo reinstituindo a causa como elemento da trama; do trigo à massa, de Cícero à Elias Cannetti, o milieu plateau.

            Bateson appelle plateaux des régions d’identité continue qui sont constitués de telle manière qu’elles ne se laissent pas interrompre par une terminaison extérieure, par plus qu’elles ne se laissent aller vers un point culminant : ainsi certains processus sexuels, ou agressifs, dans la culture balinaise. Un plateau est un morceau d’immanence. Chaque CsO est fait de plateaux. Chaque CsO est lui-même un plateau, qui communique avec les autres plateaux sur le plan de consistance. C’est une composante de passage. »(Deleuze & Guattari, 1980 :196; edição Minuit)

            O CsO parece ser, de outra forma o corpo posto numa diagonal qualquer que lhe atravesse desrespeitando os circuitos organizados, ainda que pelas dobras que desrespeitem as distâncias ordinárias e mesmo seus meios de circulação. Assim, a ausência de órgãos implica um acidente da ordem, quero acreditar. Um acidente na organização que é, de outra forma a violação da integridade da discrição dos elementos e a composição de uma linha de fuga que desfaz a operação organizada que acaba por se perder em meio ao movimento bastardo – o movimento do movimento. E as fronteiras, os casos limite e membranas de definição são igualmente desfiguradas ao ponto de assumirem um novo rosto, ou mesmo um novo segredo, a depender dos poderes de organização presentes nos órgãos atravessados. E então percebe-se, ou melhor, percebo que o que resta a fazer é pôr e tirar as coisas de lugar. E é assim que quero ler os teoremas de desterritorialização  que seguem do capítulo sobre o CsO. Começar do meio, a partir daquilo que resta, uma forma de começar pelo fim ou deixar falarem as ruínas.

*          *          *
           
       
Tabuleiro de Go
    
... foi então que eu sugeri a Ricardo Lísias, escritor e enxadrista, que assistimos a tudo numa enorme dificuldade de articulação. Os comentários referem-se a um jogo de xadrez enquanto as peças se movem à forma do go deixando claro haver uma pobreza fundamental de nosso vocabulário político. Uma vez que o segundo jogo não é tão popular quanto o primeiro, convém dar vazão à diferença. Permitam-me recorrer mais uma vez ao Mil Platôs, não por considera-lo a síntese autorizada da filosofia futura, mas simplesmente por ser aquilo com o que me ocupava até então. A citação é longa. Paciência.

            Seria preciso tomar um exemplo limitado, comparar a máquina de guerra ao aparelho do Estado segundo a teoria dos jogos. Sejam o Xadrez e o Go, do ponto de vista das peças, das relações entre as peças e o espaço concernido. O xadrez é um jogo de Estado, ou de corte; o imperador da China o praticava. As peças do xadrez são codificadas, têm uma natureza interior e propriedades intrínsecas, de onde decorrem seus movimentos, suas posições, seus afrontamentos. Elas são qualificadas, o cavaleiro é sempre um cavaleiro, o infante um infante, o fuzileiro um fuzileiro. Cada um é como um sujeito do enunciado, dotado de um poder relativo; e esses poderes relativos combinam-se num sujeito de enunciação, o próprio jogador de xadrez ou a forma de interioridade do jogo. Os peões do go, ao contrário, são grãos, pastilhas, simples unidades aritméticas, cuja única função é anônima, coletiva ou de terceira pessoa: “Ele” avança, pode ser um homem, uma mulher, uma pulga ou um elefante. Os peões do go são elementos de um agenciamento maquínico não subjetivado, sem propriedades intrínsecas, porém apenas de situação. Por isso são relações são muito diferentes nos dois casos. No seu meio de interioridade, as peças de xadrez entretêm relações biunívocas entre si e com as do adversário: suas funções são estruturais. Um peão de go, ao contrário, tem apenas o meio de exterioridade, ou relações extrínsecas com nebulosas, constelações, segundo as quais desempenha funções de inserção ou de situação como margear, cercar, arrebentar. Sozinho, um peão de go pode aniquilar sincronicamente toda uma constelação, enquanto uma peça de xadrez não pode (ou só pode fazê-lo diacronicamente). O xadrez é efetivamente uma guerra, porém uma guerra institucionalizada, regrada, codificada, com um fronte, uma retaguarda, batalhas. O próprio do go, ao contrário, é uma guerra sem linha de combate, sem afrontamento e retaguarda, no limite sem batalha: pura estratégia, enquanto o xadrez é uma semiologia. Enfim, não é em absoluto o mesmo espaço: no caso do xadrez, trata-se de distribuir-se em um espaço fechado, portanto, de ir de um ponto a outro, ocupar o máximo de casa com um mínimo de peças. No go, trata-se de distribuir-se num espaço aberto, ocupar o espaço, preservar a possibilidade de surgir em qualquer ponto: o movimento já não vai de um ponto a outro, mas torna-se perpétuo, sem alvo nem destino, sem partida nem chegada. Espaço “liso” do go contra espaço “estriado” do xadrez. Nomos do go contra o Estado do xadrez, nomos contra polis. É que o xadrez codifica e descodifica o espaço, enquanto o go procede de modo inteiramente diferente, territorializa-o e desterritorializa (fazer do fora um território no espaço, consolidar esse território mediante a construção de um segundo território adjacente, desterritorializar o inimigo através da ruptura interna de seu território, desterritorializar-se a si mesmo renunciando, indo a outra parte...). Uma outra justiça, um outro movimento, ou outro espaço-tempo.” (Deleuze & Guattari, 1997:14 do vol. 05 da edição brasileira, editora 34; trad. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa)

*          *          *

            Conversar com os líderes do movimento, disse Eduardo Paes, prefeito do Rio de Janeiro. Receber a manifestação na Av. Presidente Vargas com a cavalaria como procedimento padrão, disse José Maria Beltrame, secretário responsável pela pasta da Segurança Pública no estado do Rio de Janeiro durante o governo de Sérgio Cabral. Parecia uma micareta, com um bando de gente que não sabia o que estava fazendo na rua, me disseram alguns dos mais próximos e queridos, como minha irmã que esteve no ato de Campinas dois dias atrás. Gente de todos os tipos saindo por todos os lados interrompendo o trânsito. E é daí que convém começar. Do meio. De locomoção. Foi o que fez o Movimento Passe Livre. Talvez eu tenha sorte semelhante.
            A cobertura das cenas de confronto em Niterói-RJ na última quarta-feira é significativa. Ainda que houvesse um verdadeiro massacre movido a bombas de gás lacrimogênio, cavalos, viaturas e balas de borracha, a cobertura jornalística da Rede Globo de Televisão se ocupava fundamentalmente com o trânsito. Um movimento de parar o trânsito, as ancas da desinibida do Grajaú que, todavia se move. A cada forma de ocupação do espaço, como a que tomou a rodovia Castelo Branco desde Carapicuíba e que impediu a circulação de automóveis até o aeroporto de Cumbica, a repetição de um diagnóstico. Interrupção do trânsito, engarrafamentos, paralisação. O movimento era responsável pela paralisação. Cabe deixar então o movimento falar. No caso, o Movimento Passe Livre, que ao responder a um coronel da Polícia Militar sobre a justiça de ocupar uma via pública importante como a Av. Paulista, ouviu como resposta o óbvio. Se em uma cidade como São Paulo a interrupção de uma só via é suficiente para travar o trânsito, algo está errado. Muito errado. O coronel jamais respondeu a esta questão. E não respondeu a nenhuma outra, como tampouco qualquer jornalista que se recusa a ver o imediatamente óbvio das imagens em que milhares de pessoas ocupam as ruas, avenidas e rodovias interditando a passagem dos carros. Não há paralisação. Há movimento, ainda que não o previsto pelo sistema logístico. As pessoas em manifestação caminham pelas vias provando que não há interrupção do tráfego, mas a ocupação de uma outra lógica de deslocamento. Cortando na diagonal a organização, emergem de todos os lados como uma forma de redução efêmera ao óbvio que o comentário já não pode mais dar conta. Procura a hierarquia no movimento do movimento, ordem naquilo que atravessa a rua em grande parte inconsequente. Procura unidade a partir das palavras de ordem, lideranças e pesquisas de opinião que só fazem proliferar a confusão em que se cai ao ouvir a massa uma pessoa por vez. Contudo, as imagens não mentem. É o mero exercício quantitativo da cidadania banal caminhando e fazendo barulho. Sugestivamente é chocante que tenha ocorrido. Em razão do choque, Tropa de Choque.
           

*          *          *

            O movimento não começou sexy e envolvente. Ele começou fascista. Ao menos foi definido assim por dois dos comentaristas mais apressados que dispomos em nosso território. Marco Antonio Villa, com quem tive aulas extensas sobre novelas mexicanas quando a ementa descrevia um curso sobre história europeia moderna e contemporânea, e Arnaldo Jabor cravaram os motivos da organização. Baderna, destruição e danos ao bem-público que, de fato, é muito-pouco-público. Seguramente fruto de uma articulação perversa que nas palavras ressentidas do próprio Jabor se transformaram numa semente de um novo futuro. O movimento tinha uma unidade definida pelo movimento que, logo mais, não tinha mais pois era um agrupamento muito maior. E a totalidade do movimento escapou da coordenação porque movia-se na diagonal do sistema logístico. Todos os que avançaram contra o movimento fizeram por bem recuar. Todos, menos a Polícia Militar, quem por fim conferiu ao movimento sua unidade definitiva e, por outro lado indica que o movimento não é coisa de agora, o que implica em acusar amigos, colegas e outros escribas de terem cometido um erro de edição.
            Conversava com minha mãe a respeito dos último acontecimentos, da tomada das ruas, dos quebra-quebras. Minha mãe disse temer que houvesse uma escalada da violência, que tinha medo que o Brasil perdesse o rumo e que muita gente viesse a se machucar ou coisa pior. Minha mãe me disse, desde lá da Cidade do México, que teme que a coisa descambe pela violência desmesurada. Daí eu perguntei para ela quando é que a coisa foi diferente, quando é que fomos governados de outra forma, quando é que fomos coisa diferente. O silêncio do outro lado da linha foi didático para nós dois. De outra forma, não é agora que as pessoas circulam com muita dificuldade. É sempre. A paralisação da Ponte Rio Niterói só deixa isto mais evidente. A história que estamos a contar não cabe no enquadramento dado, o roteiro não é suficiente para dar conta de suas próprias personagens. Quando o movimento é lido como o Movimento – no caso, MPL -, toma-se a parte pelo todo produzindo uma sinédoque que não encontra eixo, que não participa da trama e que não acaba em samba que, aliás, entende muito mais de ocupar as ruas do que qualquer dos palpiteiros emergentes na crise, eu incluído. O caso é que foi ao fazê-lo que a Polícia Militar nos obrigou à unidade. Em uma só semana exercitamos a nossa condição de cidadania em sua plenitude sem que a referida instituição saísse de sua atuação normal. Havia cavalaria para a defender a prefeitura do Rio de Janeiro da mesma forma que há em qualquer estádio de futebol em dia de clássico. Em tempos de exceção não fizemos outra coisa senão exercitar nossa cidadania de forma ordinária, o que inclui o fato de termos a reles circulação de pedestres cerceada e violentada da forma mais flagrante e, importante, normal. Esta talvez seja uma forma de começar o assunto desde o meio. 

terça-feira, 28 de maio de 2013

Ruínas feito água.

... e então o caso ebuliu
porque esquentar é coisa de fogo brando.
Posto o dossiê no fogo, 
reduzido à cinzas, ou meramente evaporado
tal a lei da termodinâmica
que não sei enunciar e que, 
no entanto, 
a abelha voa. 
Jazer fugaz no vidro embaçado
e alguém escreve algo que
mal redigido, logo some
pela força da lei até 
restar em desagregação úmida
então, 
chove.

segunda-feira, 25 de março de 2013

Dou fé que logo sei.


E então veio com a frase
“não creio, mas temo”;
a forma do, posta a crase,
à forma do mais ameno
orgulho. O silêncio à base
do recuo mais obsceno
foi dito pelo não-dito, azedo
o gesto, o último aceno.

Digo,

Chegar atrasado, sentar-se à janela, a janela,
em pleno adeus com sabor de volto já.
e não volta.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Então, depois.


Dormir e acordar com o sol
Para então, já calejado pelo trabalho,
Torto, arranhado pelo calor,
Arquejado pela lida longa,
Convertendo trabalho em dia,
Canção em apelo, dor em
Ornamento, esforço em carinho,
Diário e penitente, o sol, ele mesmo,
Freqüente e implacável logo mais
desce longe, até seguir para outra jornada
Na qual desaparece e dá lugar à lua
Sem jamais deixar de transmitir
A luz, que é sua, e que a lua só é
Toda nua quando alguém intervém.