Paramos,
então. Não por um minuto de silêncio em respeito à memória de ninguém. Não
porque estamos correndo de uma viatura policial que apareceu enquanto fazíamos
uma zoada pelo bairro. Não porque ouvimos alguém gritar conosco enquanto,
vestido de uniforme, apontava uma pistola em nossa direção. Estamos de costas,
não sabemos do que se trata, ainda não nos viramos e a cena, para que tenha
poder, está carregada de suspense. Ainda não sabemos do que se trata. Ao não
sabermos do que se trata, no entanto, temos desenvolvido o ato de reflexo de
parar. E paramos. Em nome da lei. A paralisia movida pela autoridade de uma voz
que se levanta na paisagem informa uma série de coisas que nos orienta. Nossa
orientação básica, a de pararmos em nome da lei, sugere num sussurro
verdadeiramente inaudível que estamos sujeitos àquilo em nome de quê age a voz
que emite o comando de pararmos. Esta voz que grita é, por sua vez, um
representante da lei que não vimos ainda, mas que se proclama como tal. Afinal,
se a voz grita em nome da lei, é como seu representante que age. Não sabemos se
ela, a voz, é uma representante legítimo, se a reconheceremos, uma vez
identificada, como representante da lei. Afinal, é só uma voz - tudo aquilo que
a lei não é, mas sem a qual a lei não pode ser. A única coisa que sabemos é que
neste momento, em que uma voz emite o comando para que paremos de fazer o que
estamos fazendo em nome da lei, corremos um risco. No caso, de desobedecermos a
lei que, todavia, não sabemos qual é. O comando não diz qual lei representa,
então induzimos que é A Lei, toda a lei, que está sendo representada por aquele
que nos fala. Não sabemos quem é e tampouco refletimos sobre como isso seria
possível, como é que alguém poderia representar todas as leis como se fosse
somente uma, A Lei. E no entanto, numa relação que transformou o risco em ato
reflexo, paramos. Não queremos correr o risco de que seja, mesmo, A Lei. Porque
se for, entraremos em confronto com uma autoridade, isto é, alguém que age como
representante da lei, alguém que age em nome da lei. E assim, paramos. Ao
pararmos nem nos damos conta de que tomamos uma decisão, de que interrompemos
um movimento, que cortamos uma frase que dizíamos, que paramos coma zoada; simplesmente paramos. E ao pararmos,
agimos. Em nome da lei. E isso nos faz, imediatamente, também representantes da
mesma lei em nome da qual alguém vociferava um segundo antes. E, no entanto,
agir em nome da lei não diminui o risco da desobediência.
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quarta-feira, 26 de outubro de 2016
domingo, 16 de agosto de 2015
Hoje, limpei a horta
Ainda são outros dias, os que figuram no mesmo calendário que
persiste inalterado e que eu insisto em ignorar, inclusive, a sua localização e disposição na
casa. Os meses perdidos em outras tantas inventivas em que corri o risco de
aliar a busca pela sobrevivência com o resto de vergonha na cara que ainda
tenho não conseguem encontrar expressão alguma no movimento das folhas, na
determinação dos nomes e números das frações do tempo. Talvez ainda seja
setembro do ano passado, inclusive. Não sei. Não há muito para saber quanto a
isto. Estes dias de calendário são, antes de mais nada, repetição que não se
move. É sempre o mesmo dia, n+1. Nele o tempo não é uma seta e tampouco o que é
sólido se desmancha. A permanência do calendário não se permite desfrutar de
qualquer estado da matéria. Não sendo tampouco nenhuma gaiola de ferro, é um
incômodo frequente, a sombra do esquecimento que se faz vulto a periferia da
visão, o fator insuperável na consolidação de todos os calendários e sua
existência que sempre beira a inutilidade. E da beirada, convém lembrar,
despendem-se os suicidas e os excepcionais. Enfim, só para dizer que a
diferença entre os dias está em outro lugar. Não no calendário.
Ainda assim
é a dificuldade de desfazer uma determinada impressão é realmente muito difícil.
A de que a sincronia é suficientemente importante. São muitos os fatores que
promulgam sua centralidade inescapável. É o motor dos Estados modernos, é a
mola dos sistemas produtivos, é a marca das formas narrativas romanescas mais
realistas. A vida de todos acontece ao mesmo tempo, o que implicaria em dizer
que o fim do mundo viria numa mesma onda, como a triste torcida pelo calendário
maia falsificado parecia determinar. Esta sincronia, no entanto, que em suas
primeiras expressões movia suas engrenagens a custo de incontáveis vidas já não
carrega as mesmas feições de um dragão devorador. Já devidamente engordado,
hoje come provavelmente na mesma hora em que todos dividem seus dias entre as
refeições usufruindo os benefícios da doçura da domesticação. Nada de
importante parece acontecer ao mesmo tempo – especialmente o fim do mundo, ou o
começo de tudo.
Pode dar a
impressão de que coisas extremamente importantes acontecem sem que se preste
atenção e que outros eventos, fruto da mais soberba orquestração e visibilidade
não sejam mais do que pantomima da vida coletiva, quando não um capítulo
entristecedor de comunicação esquizofrênica. Se dou esta impressão, e se com
isso pareço ser indiferente a tamanho esforço que ora e vez colorem avenidas e
tingem todas as conversas com sua orientação bicolor e monotemática, não sou
então tão mal redator. Afinal de contas, novelas televisivas também perduram sua
indiferença temporal na enorme mancha da sincronia, o fazem todos os dias, e
ainda assim... na verdade, exatamente por isso, refazem o mesmo dia que deve se
repetir sem intervalos, salvo em caso de doença. E então, a doença. Eis, finalmente, um outro dia, desses que
não voltam nunca mais. Saudades.
Postado por
Refrator de Curvelo (na foto do perfilado, restos da reunião dos Menos que Um)
às
17:35
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Autobiografia,
Grande Divisão
sábado, 11 de julho de 2015
Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre as ruínas e o fantasma do religioso.
(retirado da tese de doutorado, recém-defendida. as remissões bibliográficas estão no vazio. lamento.)
(...) o crime contra a autoridade soberana não se limita mais ao núcleo
detentor do poder, ao novo príncipe, mas é pouco a pouco ampliado para abranger
todas aquelas ações que ameaçam a segurança e a prosperidade da sociedade e
atacam suas ideologias fundamentais, como a propriedade.”
Paolo Prodi, Uma história da justiça
1 - França- 1789 segue sendo um
marco inescapável ao imaginar a França moderna, especialmente quando o objeto
do qual se trata não é a Revolução Francesa, o que faz da data um espectro permanente
na imaginação a respeito do tempo francês. O processo revolucionário, que parte
de um esforço nacional para uma reforma fiscal e orçamentária do ano em questão,
se transformou em signo de ruptura no tempo ao ponto em que o conceito de
revolução foi, ele mesmo, revolucionado. Aquilo que outrora enunciava a retomada
do ciclo normal próprio das órbitas celestes como em De revolutionibus orbium coelestium de Copérnico, (Koselleck,2006:63;
Cohen, 1985), onde a revolução descreve um
movimento cíclico, passa a significar a ruptura no tempo na forma de sua
aceleração. Começar de novo a mesma trajetória no tempo, eis o que fora a
revolução como processo e eis o mesmo processo então revolucionado por uma
outra revolução[1].
Esta
revolução nova conduzida pela evidente necessidade de uma reforma de Estado em
fins dos século XVIII, necessidade reconhecida amplamente por grande parte dos
diretamente envolvidos[2],
tendo como primeiro ato revolucionário uma procissão que parte da Catedral de
Nossa Senhora de Paris até a igreja de São Luís em Versailles. A ação
revolucionária primeira cmo ato governamental acrescenta uma outra nota ao
processo no qual não é a regularidade indefectível da natureza quem conduz os esforços.
É a ação humana que ganha uma outra dimensão, se tornando portanto protagonista
de seu próprio meio, fazendo da retomada da ordem como a extinção de relações
postas anteriormente. Não se trata somente de uma substituição de postos como
na morte ritual – e real – do sacerdote do templo de Diana em Nemi (Frazer,
1990), mas uma alteração dos termos de relação que fundamentam a organização
social instituindo, no caso da Revolução Francesa, a organização social ela
mesma como objeto e meio da ação. O processo revolucionário que pretendera ser
uma correção de rumos chegou ao ponto de alterar a noção de rumo correto, o que
por fim combina com a imagem de um motim em uma enorme galera que culmina na
alteração do que é um rumo correto alterando a noção de destino. Dito de outra
forma, trata-se da filosofia da história entendida como ato governamental.
O que faço
nos dois parágrafos anteriores é um sumário bastante generalista. É
desnecessário ressaltar os riscos de um exercício de pesquisa que faça expediente
de algo desta natureza que, diante das requisições e cautelas de um discurso
acadêmico-científico, é bastante grosseiro. Dizer que o processo Revolucionário
francês começa como um ato governamental para por fim mudar aquilo que
significa governar pode ser tudo, menos preciso. A imprecisão da idéia ainda
assim é tentadora e, mais proveitosa. Obviamente que esta sugestão não pretende
se indispor com uma outra, a que atenta para uma dimensão sociológica dos
processos históricos que afirma que um dado evento com as proporções da
Revolução Francesa se encontrava gestado com enorme antecedência, e que, a
depender da diretriz narrativa pretendida, a Revolução teria uma data de
partida diferente. Suas origens culturais não coincidiriam, portanto, com suas
origens sociológicas, tampouco intelectuais e muito menos, historiográfias,
alterando sua datação no caso da distinção de fato ter alguma relevância. E
talvez tenha, mas como distinção, digamos, nativa. E isto faria de minha
grosseria algo salutar porque boa parte das categorias e conceitos em movimento
no período pós-revolucionário ressoarão mais adiante, cronologicamente, na
forma de categorias analíticas e conceitos sociológicos que parecem, por fim,
generalizações de tomadas de decisão ou de projetos sustentados no seio do
debate revolucionário. É o caso da sociologia, por exemplo (Wagner, 2000). O
que estou dizendo é que, após a Revolução, a emergência do pensamento
sociológico dificilmente poderia ser discriminado das reformas que se inserem
como postulado para as políticas de Estado e governo, assim como a mudança nos
fundamentos do que significa Estado e governar. É dessas reformas que grande
parte de conceitos fundamentais se transformam em moeda corrente. Seguramente
que a sociologia pode ser relacionada a diversas outras dimensões da história
moderna mas, repito, dificilmente poderia ser dissociada do esforço persistente
de reforma do Estado que conduziu grande parte das políticas conduzidas pela
França pós-revolucionária.
Visto de um
ponto de vista não-especializado, o jogo de sucessivas reformas tem a aparência
de mover as coisas de lugar, quando não a de tirar um obeto para então
substituir por outras cuja crônica se transforma na narrativa dos arcanos do
Estado e seus demiurgos que, logo, transformam-se em biografias coletivas que
atendem por um nome só: Império de Napoleão, de Louis Philippe, o governo de
Thiers. Não são somente nomes masculinos, mas períodos e unidades de espaço nos
quais incidem os gestos de governo de cada uma destas personagens, nem sempre
de corpo presente, mas por via da presença da chancela e, quando não, de sua
forja. Assim, o que dizer de posições como a da Coroa que caiu guilhotina
abaixo; ou mesmo da expulsão da religião pela porta dos fundos? Expulsão seria
mesmo um termo adequado? É preciso ver mais de perto este sinal que pode ser,
no mais das vezes, invertido ou, pelo menos, severamente atenuado exatamente
porque este mesmo sinal é diversas vezes confundido com o sinal da cruz.
No documento
da Constituição civil do clericato de 12 de julho de 1790, a Igreja
é varrida do solo francês. O processo já duramente questionado se torna uma
fratura ainda maior e, convém lembrar, conduzida diversas vezes com grande
violência durante o ano II da Revolução (1793-1794) quando a prática do culto
público, esta obsessão de Émile Durkheim (2000), sofrem golpes severo com
vistas na sua total extirpação do seio da vida pública, período no qual se
desenham substitutos na forma de festas cívicas. Daí por diante, depois da
abolição do dízimo, da nacionalização dos bens da Igreja e da supressão das
ordens religiosas a fronteira é posta: entre a religião e o Estado há uma linha
a partir da qual a França deixa de ter uma religião oficial. O culto religioso
é uma atividade, quando não ilegal, é, dali por diante, extra-oficial, apenas
reconhecida por lei. Mas quais os demais efeitos da deposição para além da
descrita?
“Em 1789 a Igreja ocupa, na França, o primeiro plano ao mesmo tempo político, social, intelectual e moral. O clericato é a primeira ordem do reinado, sendo a única ordem organizada em escala nacional tendo suas assembléias com relação às quais voltaremos a falar (Cousin et. al, 1989, voltarão a falar - não eu). O catolicismo é religião de Estado de forma que nenhuma outra confissão é, em princípio, tolerada após a revogação do édito de Nantes pelo édito de Fontainebleau, de 1685.” (Cousin et al.: 13).
Isto não
quer dizer, obviamente, que o processo Revolucionário se transformou numa festa
ecumênica em que todas as religiões puderam vir à luz. No entanto algo peculiar
tomou forma mediante uma proibição universal do culto público religioso. Por
via desta proibição que atingia inclusive aquela que outrora fora a religião
oficial, um ato governamental produzia um cenário em que todas as religiões
indiferiam entre si dado que a partir do ato se tornaram equivalentes. Este
gesto, repercutindo nesta escala, ainda que jurídico-teórico, produz uma certa
indiferença com relação à fé, à crença e tudo aquilo o mais que os antropólogos
modernos passaram a chamar de categorias nativas que, em não poucos casos,
caberiam na alcunha “teologia”. No caso, a católica.
[1] “Em 1842, um
erudito francês fez uma observação histórica de caráter bastante produtivo.
Haréau chamou a atenção para o fato, então esquecido, de que “revolução” se
referia a um retorno, uma mudança de trajetória, que correspondia ao uso latino
da palavra e que conduzia de volta ao ponto de partida. Uma revolução
significava então, primordialmente, de acordo com a etimologia da palavra, um
movimento cíclico. Haréau acrescentou ainda que, no âmbito político, esse
movimento circular fora entendido como círculo das constituições, segundo a
doutrina de Aristóteles ou de Políbio e seus seguidores, mas que desde 1789,
pela influência de Condorcet, não se podia mais compreendê-lo desse modo.
Segundo a doutrina antiga, havia um número limitado de formas constitucionais,
que substituíam alternadamente umas às outras, mas que, de acordo com sua
natureza, jamais poderiam ser ultrapassadas por outras formas. Trata-se dos tipos
constitucionais ainda correntes entre nós e de suas formas decadentes, que se
seguem umas às outras de maneira quase obrigatória. Haréau cita Louis LeRoy
como testemunha esquecida desse mundo passado. Para LeRoy, a primeira dentre
todas as formas de governo era a monarquia, a qual, uma vez transmutada em
tirania, era dissolvida pela aristocracia. Seque-se o conhecido esquema,
segundo o qual a aristocracia transforma-se em oligarquia, deposta a seguir por
uma democracia, a qual, por fim, degenera na forma decadente de uma olocracia,
dominação pelas massas. Nesse ponto ninguém mais governa de fato, e o caminho
para a dominação por um único indivíduo encontra-se novamente livre. Inicia-se
o velho círculo. Trata-se aqui de um modelo de revolução que, em grego foi
compreendido como metábole tôn politeiôn
ou como nakyklosis tôn politeiôn e que se nutria da experiência de que toda
forma de convivência política é, por fim, limitada. Cada mudança conduz a uma
forma de governo já conhecida, sob a qual os homens são obrigados a viver.
Seria impossível romper com esse círculo natural.”(Koselleck, 2006:63-64)
[2] Nunca é demais lembrar que a Coroa e a Igreja são
instituições diretamente envolvidas no processo revolucionário em seu primeiro
momento.
sexta-feira, 2 de janeiro de 2015
Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.
ELIAS, Norbet. Sociedade de corte. Jorge Zahar. Rio de Raneiro. 1999.
LATOUR, Bruno. Pasteur: guerre et paix des microbes - suivi d'Irréductions. Les empécheurs de penser en ronde. Paris. 2011.
QUÉTELET, Alphonse. Du
systeme social et des lois qui le regissent. Guillaumin et Cie. Paris. 1848.
ROSANVALLON, Pierre.
-->
L’État en France de 1789 à nos jours. Seuil. Paris 1990
SUTTON, Geoffrey. Science
for a polite society: gender, culture & the demonstration
of enlightenment. Westview Press. Boulder/Oxford. 1995.
14-
“A
história do Estado é indissociável da história dos meios de conhecimento sobre
os quais se apoia. Desde que a força bruta deixa de reinar sozinha, o poder
passa a se indexar nas formas de saber: não á decisão relativa aos homens e às
coisas que não seja medida e contada. Mesmo o termo estatística
traduz, etimologicamente, esta situação. No século XVII a estatística significa
“o que é relativo ao Estado”; um século mais tarde, o termo designa a
enumeração metódica de uma série de fatos. É uma forma de deslizamento
semântico da interpenetração de um conceito político e de uma forma de
entendimento, exemplar em si mesmo. Durante os séculos XVII e XVIII a
consolidação da soberania do Estado se apoia no progresso da demografia e da aritmética política. Os economistas que
desenvolvem esta última disciplina escrevem do ponto de vista do soberano. É a
ele que Montchrétien, Graunt, Petty, Vauban ou Boisguilbert esperam convencer e
aconselhar. A obra pioneira de William Petty, datada do fim do século XVII, é
particularmente interessante quanto a este respeito. É a primeira a
sistematizar a idéia de que governar é contar, ou recensear, inseparavelmente.
“Os que se ocupam da política sem conhecer a estrutura, a anatomia do corpo
social – escreve – pratica uma arte demasiado conjectural, que é a medicina das
antigas senhoras e dos empíricos” (Rosanvallon, 1990:37)
A revolta contra a influência de adivinhos
e feiticeiras nos assuntos de Estado esboçada por William Petty em seu Anatomia política da Irlanda de 1672 não
é fruto de qualquer desprezo relativo ao exercício de uma forma imprecisa de
superstição. O que a remissão não somente à trajetória de Petty, mas de todo o
serviço estatístico evoca é toda uma história em que toda sorte de arcanos,
inclusive de Estado, é desestabilizada como grade de referencias seguras no que
tangem a tomada de decisões. Diagnósticos e prognósticos entram em questão no
mesmo momento em que novos meios de apresentação do futuro entra em pauta. Se
Bruno Latour pôde, em um dado momento, chamar a atenção para a pasteurização da
França (2011) na qual a paisagem urbana faz corresponder engenharia,
sanitarismo e cidadania; em linhas gerais a substituição do vôo das andorinhas
pelos platôs de Quételet parecem sugerir a do território francês ao
cartesianismo. Não somente por apresentarem números no lugar de andorinhas, mas
por sugerir uma outra forma de desenho que apesente o futuro que não seja
pautado por exercícios de ornitologia.
A remissão à René Descartes não é
meramente ilustrativa, mas relativa à efetivação não somente da filosofia do
autor dos tratados sobre o método, o homem, o mundo, a dióptrica e a
meteorologia; faz remissão também aos meios de apresentação de dados relativos
aos objetos de reflexão que por fim culminam na metodologia por excelência das
primeiras instituições oficiais de observação científica francesas. Dito de
outra forma, diz respeito à transformação dos meios por via dos quais o mundo
se torna uma possibilidade. Esta transformação é encenada, por Geoffrey Sutton
(1995), pela passagem do ideal renascentista de ciência incorporado por
Théophraste Renaudot e seu Bureau
d’adresse para a instituição gradual da filosofia cartesiana, não somente
como princípio filosófico mas como método de exposição e ideal de pedagogia.
Que não percamos o foco, o que está sob foco é uma questão de método; methodos; meio – os mesmos que
Rosanvallon menciona no começo da citação acima. O Estado moderno, após a
Revolução, opera por via da proliferação de meios. Segundo Sutton, de todos os
meios disponíveis, o que Descartes seguramente não queria era um que lhe desse
problemas com a censura real.
“The spirit of the Principia would inform the Cartesian
school of natural philosophy for nearly a century after its appearance; that
much should be noncontroversial. What is offered here is an idiosyncratic
reading, a twentieth-century reading to be sure, but one that might help a
twentieth-century audience to understand how a denizen of Renaudot’s Bureau
d’adresse might have dealt with these books before anyone knew for sure that they
would one day form the basis of a modernity that reminded a twinkle in the
collective philosophical eye of the Rationalists. It is a reading that follows
Descarte’s directions, one guided by the idea that only in understanding the
broad sweep of the argument might we understand its parts, a reading willing to
sacrifice a whole series of beautiful little insights into details for the sake
of providing a coherent interpretation.” (Sutton, 1995:92)
O que Sutton defende é que mediante a profusão de debates que visassem
reconstituir a origem do argumento a respeito de todo tipo de tema, próprio
daquilo que encontrou no Bureau d’adresse
de Renaudot, a novidade cartesiana oferecia uma exposição sistemática de cada
um dos problemas tratados visando decompô-lo em suas partes constitutivas
buscando respaldo, ao invés de tratados da antiguidade, em observações
experimentais que ele mesmo conduzia. Contudo, a premissa não reduzia o
observado à mera observação. A articulação e a apresentação das relações
oferece uma novidade tão radical quanto aquela que se oferece como um método
específico. Ao invés dos cadernos de notas Renascentistas que produziam algo
muito próximo de uma miscelânea de fatos, casos e passagens de autores antigos,
o instrumento cartesiano por excelência é a demonstração feita
sistematicamente. Assim, a leitura dos Principia
implicava em sua leitura por inteiro dado que a elucidação de uma determinada
passagem se encontrava alhures, sem a utilização de comentários ou de fórmulas
de contemplação; sem arcanos? Assim, dentre todos os aspectos que Sutton
poderia ressaltar, é o caráter pedagógico da revolução cartesiana aquele que
ele resolve destacar:
“Pedagogy seems a peculiar place
to locate the crux of Cartesian modernity; to do so would surely overstate the
case. Nevertheless, the notion of system – be it philosophical, physical,
mathematical, or biological – grounded all Descarte’s work. It introduced a
search for consistency altogether novel in late Renaissance discussions method.
Moreover, this conception of consistency is at odds with our own ideas about
the internal coherence of a rigorous theory. The parts of the Cartesian system
needed not so much to fit together as to find a secure place in the whole.
Thus, once the system was grasped, inconsistencies among the various parts did
not produce the sort of cognition dissonance in Descartes or his readers that
it would in philosophers of the nineteenth and twentieth centuries. Instead,
Descartes acknowledged what he saw as very real but minor difficulties and
omissions; for example: “I have not described in my Principles all the motions of each planet, but I have supposed in
general all those that observers have found and I have attempted to explain
causes”. “(Sutton, 1995:94-95)
Assim, ao invés da doutrina dos quatro elementos, os três graus de sutileza
da matéria; ao invés da essência da alma, o local em que a alma se manifesta no
corpo; ao invés de remissões as mais diversas ao mais diverso, a descrição dos
meios pelos quais um dado fenômeno se concretiza. Tudo apresentado da forma
como ainda se entende como sistematicamente, sempre remetendo o caso singular a
uma dimensão média de regularidade – como o platô de Quételet[1].
O argumento ao redor da ciência estatística tem em vista a reconstituição dos
princípios que regem a sociedade, não mais como uma reunião da corte como fora
chamado nos tempos de Louis XIV (Elias, 1999), mas como um sistema médio de
difusão de regularidades que fazem das ações coletivas verdadeiras ondas de
transmissão, de violência inclusive. A produção estatística visa dar
visibilidade àquilo que, de outra forma, segue invisível aos olhos do
investigador exatamente porque a escala das ações de Estado não é humana. Como,
por exemplo, o fluxo de transações financeiras do Estado e o comprometimento
orçamentário do endividamento público – um dos catalisadores da Revolução
francesa.
[1] “Quand, du haut d’un vaisseau, j’arrête mes re gards
sur l’Océan, j’aperçois des vagues immenses qui passent majestueusement devant
moi, sans que je puisse reconnaître le lieu où elles se sont formées ni celui
où elles vont s’effacer.
Si je descends ensuite du vaisseau pour prendre place dans une barque à peu
près au niveau de la mer, et si je concentre mon attention sur les pe tits
mouvements oscillatoires qui rident la surface de l’eau, je perds de vue le
magnifique spectacle qui m’occupait d’abord. C’est tout au plus si mes regards
saisissent une étendue qui dépasse les li— mites de la vague sur laquelle je
suis porté; mais je vois ‘une infinité de détails qui m’avaient échappé.
Tel est aussi le spectacle que présentent les peuples. Vus à une certaine
distance, ils se dessinent, se diversifient entre eux et suivent leurs destinées,
sans qu’on puisse saisir, la plupart du temps, leur origine ni leur fin: les uns
turbulents et superbes; les autres souples et développant les étudier, il faut
concentrer son attention sur elles, et perdre de vue l’immensité de cet autre
océan sur lequel on navigue, il faut saisir rapidement leurs formes fugitives
qui rarement étendent à quelque distance le cercle de leur action. Mais ces
vagùes mêmes, qui nous représentent les peuples, ne sont rien à côté d’une onde
plus vaste, à côté de l’onde des marées qui domine l’océan à travers lequel
elle se déroule lentement dans sa marche triomphale. C’est ainsi que les
peuples s’effacent également en présence de l’humanité ». (Quétélet,
1848 :ii-iii)
quarta-feira, 3 de dezembro de 2014
Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.
CERTEAU, Michel
de; JULIA, Dominique; REVEL, Jacques. Une
politique de la langue: la Révolution française et les
patois – l’enquête de Gregoire. Paris. Gallimard.
1975.
FRÉGIER,
H.-A. Des classes sociales dangereuses de
la population des grandes villes. Libraire Académie Royale de Médecine. Paris.
1838.
TYLOR,
Edward Burnett. Primitive Culture:
researches into the development of mythology, philosophy, religion,
language, art and custom. John Murray. Londres. 1873 [1871]
4- Retomando:
selvagerismo e barbarismo são regiões, não propriamente conceitos; são
províncias carentes de sentido que exprimem, por sua vez, carência de sentido;
como o são os bairros operários que serviriam, de alguma forma, de prova
factual (matters of fact) das teses
sobre a degenerescência da raça humana. Aqui não estaríamos falando, contudo,
de Tylor cujo trabalho em grande parte trabalha na dissociação entre bárbaro e
selvagem, e favor do segundo que por sua vez, tem os seus bárbaros também. No
entanto, fica claro que a selvageria é compreendida, e aqui me repito, como uma
região. Vale a ressalva de que uma
região não implica por sua vez uma distância, seja ela espacial ou temporal.
“What
kind of evidence can direct observation and history give us to the degradation
of men from civilized condition toward that of savagery? In our great cities,
the so-called “dangerous classes” are sunk in hideous misery and depravity. If
we have to strike a balance between the Papuans of New Caledonia and the
communities of European beggars and thieves, we may sadly acknowledge that we
have in our midst something worse than savagery. But is not savagery; it is
broken-down civilization.”(Tylor, 1873:38)
Permita-me,
no entanto, que eu me corrija. Fosse uma errata eu diria: “em regiões, leia-se biomas” – ou environment.
“Thus, the savage life is essentially devoted to gaining subsistence from
nature, which is just what proletarian life is not. Their relations to
civilized life – the one of independence, the other of dependence – are
absolutely opposite. To my mind the popular phrases about “city savages” and
“street Arabs” seem like comparing a ruined house to a builder’s yard. It is more to the purpose to notice how
war and misrule, famine and pestilence, have again and again devastated
countries, reduced their population to miserable remnants, and lowered their
level of civilization, and how the isolated life of wild country districts seems sometimes tending toward a
state of savagery. So far as we know, however, none of these causes have ever
really reproduced a savage community.”(Tylor, 1873:38-39)
Convém recuperar,
aproveitando o jargão inaugurado por Pierre Clastres e, fundamentalmente,
Marshall Sahlins, a respeito da caracterização do selvagem como ser vivo em
estado de carência. Se de alguma forma há analogia com o proletariado, o é no
sentido rigoroso ainda que pese certa diferença constitutiva. Vejamos. O fato
de haver alguma diferença entre selvagens e a classe operária (uma versão sob
controle das classes sociais perigosas, que abrange todo tipo de gente) implica
em dizer que uma possível degenerescência não é fruto direto da história humana
como tal, mas de carências específicas produzidas ao longo do curso. Um exemplo
disso é o que Frégier determina como sendo a falta de instrução o que faz do
proletariado uma classe sociale
dangereuse[1].
No limite, o que Tylor defende é que o barbarismo moderno não é imanente à
condição humana em um determinado estágio evolutivo, mas um efeito marginal da
civilização que os selvagens também produzem (“outcasts of savage life”, in Tylor, 1873:42). Civilizações
específicas produzem marginais enquanto o progresso humano é, não somente
inexorável, mas se dá em outras bases. O progresso é a marca da expansão (propagation) – e não algo como o
desenvolvimento criativo – o que me leva a reconhecer que a excelência é fruto
de um certo imperialismo, a saber aquele difundido pelo Império.
“As the evidence stands at present, it appears that when in any race some
branches much excel the rest in culture, this more often happens by elevation
than by subsistence. But this elevation is much more apt to be produced by
foreign than native action. Civilization is a plant much oftener propagated
than developed. As regards to the lower races, this accords with the results of
European intercourse with savage tribes have survived the process, they have
assimilated more or less of European culture and rise towards the European
level, as in Polynesia, South Africa. Another important point becomes manifest
from this ethnological survey. The fact that, during so many thousand years of
known existence, neither the Aryan nor the Semitic stock appears to have thrown
any direct savage off shot recognizable by the age-enduring test of language,
tells, with some force, against the probability of degradation to the savage
level ever happening from high-level civilization.”(Tylor, 1873:48)
A distinção
entre civilização e cultura, se retomarmos em parte as lições de Norbert Elias,
que trafega pela região de indiferença,
se dá finalmente por quem assimila os valores de excelência. A história do
progresso dificilmente pode ser distinguida da história da tutela.
[1] Convém notar que o termo “classes sociais perigosas”
que Tylor utiliza sem citação de fonte repete o título do estudo-panfleto de
pedagogia de H.-A. Frégier publicado em 1838, que disserta sobre o melhoramento
das mesmas classes sociais que põem a vida social em perigo. As preocupações de
Frégier eram, antes de mais nada, de caráter policial uma vez que o mesmo era
chefe da prefeitura do Sena (órgão policial). A apresentação dos limites da
instrução pública em sua extensão com vista em atingir às populações mais
pobres implica obviamente na proliferação de multidões emotivas uma vez que o
uso da razão não lhes é impulsionado. Repetindo a fórmula de Geoffrey Sutton,
não têm método, uma outra forma de dizer que não são suficientemente franceses
– aquele que considerar esta fórmula abusiva, recomendável a leitura de Certeau
(1975). Mesmo que Frégier não definisse as tais classes sociais por via do
critério da ignorância, não seria difícil imaginar, especialmente após os
processo revolucionário de 1879, quem poderiam ser e como são perigosas as
classes às quais se refere. Um pouco de imaginação retórica permite imaginar
ser desnecessário dizer quem são – da mesma forma que a solução apresentada diz
respeito a uma determinada fórmula de tutela, aquela que emprega internatos
públicos fortalecendo as ferramentas do Estado tutelar, o mesmo que se desdobra
sobre os selvagens na diversidade da empresa colonial que fornece para Tylor
seus dados e seus pesquisadores.
sexta-feira, 22 de agosto de 2014
O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.
WIENER, Norbert. Deus, Golem & Cia. Cultrix. São Paulo. 1971
10-
Ora, se a conversão do funcionalismo em
cibernética merecer maior atenção, o que se passa é que existe uma distinção
importante entre figura e fundo que é, para todos os efeitos, fundamental.
Porque é ela que destaca os momentos de relação em que a singularidade da
imagem, quando afirmada, não implica na abdicação de sua possibilidade de
permuta e circulação a depender do meio de transporte, isto é, o fundo que lhe
serve de esteio, a convergência que culmina em ontogênese; a narrativa que
coincide na filogênese. Quando percebemos que há uma possibilidade de permuta
imagética que faz com que a narrativa da história das religiões mova entre as
figuras de Artemísia, Diana e da Virgem Maria – esta é a hipótese de Frazer -,
isto implica não somente em um sistema subjacente que conduz as transformações
mas em uma variação da figura como variação da imagem como ela mesma e como
padrão – que Norbert Wiener (1971:38-39) define como pictórica e operante,
respectivamente. Os termos que ele utiliza não são tão importantes quanto o
exemplo e as consequências do mesmo para fins da elaboração de um modelo.
Wiener discute no livro em questão a
relação entre criação e criatividade, e de qual forma um objeto criado como
máquina pode ele mesmo apresentar sinais de criatividade. É importante não
esquecer que a discussão toda, produzida nas décadas compreendidas entre
1940-1970, está inundada de referencias à teoria da informação, aos
investimentos da IBM em computadores capazes de jogar xadrez e aprender com os
jogos passados produzindo pela primeira vez sistemas estocásticos artificiais –
isto é, memória cujo registro de dados altera o sistema com relação à forma
pela qual os dados futuros serão registrados; aprendizagem.
Qual imagem mítica mais poderosa para a
discussão a respeito dos encantos da criação mecânica se não a de Pigmaleão e
Galatéia? O artesão que concretiza a beleza ideal tem em suas mãos, após
intervenção divina, a mesma imagem respondendo aos desígnios da vida. De figura
à movimento, Galatéia é operante quando viva. A história de Pigmaleão é um dos
pináculos poéticos do automatismo, e na versão de Wiener serve para encenar uma
relação delicada entre criador e criatura que culmina em uma outra questão, o
da relação entre o original e a cópia.
“Uma
forma reprodutora pode construir a imagem de um modelo de um cabo de arma e
este é suscetível de ser utilizado uma arma. Mas isso se deve ao fato de que a
finalidade de um cabo de arma é relativamente simples. De outra parte, um
circuito elétrico pode desempenhar uma função relativamente complexa e sua
imagem, obtida à custa de impressoras aplicadas a tintas metálicas, é capaz de
agir como o próprio circuito que representa. Os circuitos impressos são muito
comumente empregados na moderna engenharia elétrica.”(Wiener, 1971:38-39)
Uma imagem que, por via da devida
mediação, se transforma em uma outra imagem e que, por isso, opera. A relação
entre as imagens não é, todavia, figurativa mas de modulação segundo certos
padrões que podem muito bem ser abstratos e que tem como componente central sua
convertibilidade, isto é, uma imagem conduz a produção da imagem seguinte sem
necessariamente comprimir a analogia em elementos visíveis ainda que seu
propósito seja produzir visibilidade ou, em caso de outras dimensões estéticas,
formas perceptíveis. Assim:
“É possível,
pois, obter imagens pictóricas e imagens operantes. Estas desempenham as
funções do original e podem ou não assemelhar-se do ponto de vista pictórico,
ao original. Semelhantes ou não aos originais, podem substitui-los em suas
funções e isso é, de fato, uma similaridade de caráter mais acentuado. É
segundo a perspectiva de semelhança operante que estudaremos a possível
reprodução das máquinas.” (Wiener, op.cit.)
É assim que Diana vista do ponto de vista
dela mesma, é uma estátua contrabandeada desde a Crimea até Nime mas que se
converte num meio de relação entre Artemísia e Virgem Maria quando posta na
escala da religião natural de forma que metaforicamente, tanto Artemísia quando
a Virgem Maria sejam Diana sem que seja possível confundi-las quanto a sua
figura.
terça-feira, 18 de março de 2014
Século
Na querela dos Antigos e Modernos
e se, como partidos,
os Antigos fossem do Significado
os Modernos, do Significante
e
por si só
Direita e Esquerda não fossem sentido
apesar do desejo de monopólio,
de serem pura preeminência?
e se, como partidos,
os Antigos fossem do Significado
os Modernos, do Significante
e
por si só
Direita e Esquerda não fossem sentido
apesar do desejo de monopólio,
de serem pura preeminência?
Postado por
Refrator de Curvelo (na foto do perfilado, restos da reunião dos Menos que Um)
às
09:52
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quarta-feira, 4 de setembro de 2013
Who am I, Jackie Chan? IV - fazendo graça com o que não deve
ASAD, Talal.
Genealogies of religion: discipline and
reasons of power in Christianity
and Islam. Johns Hopkins Press. Baltimore and
London. 1993.
GEERTZ, Clifford. The interpretation of cultures.
Basic Books. Nova York.
1973.
4-
A discussão
a respeito da noção de agência aplicada ao problema da autoria, ou da
propriedade dos efeitos que em metafísica pode ser condicionado ao díptico
causa eficiente/design inteligente assume outras proporções quando a discussão
assume sua forma propriamente jurisdicional. Dito de outra forma, quando o que
está sob observação a mais escrupulosa é exatamente a determinação do poder
soberano, por um lado e de outro, a constituição do ato e do agente criminoso
que tomam à forma de um amplexo os extremos que ativam a identificação
codificada de agentes obsessores, por um lado que recheiam a bibliografia
produzida por Michel de Certeau, Robert Mandrou, Julio Caro Baroja, Keith
Thomas e Sarah Ferber. De outro lado delineia a forma do monopólio da
organização dos componentes psíquicos pela clínica e pelo direito cuja
historiografia de Michel Foucault, Marcel Gauchet, Ruth Harris, Jacques
Donzelot, Christian Phéline, Robert Darmon e os ensaios de Philipp Rieff e O Anti-Édipo de Deleuze e Guattari
descreveram à exaustão. Dito de outra forma, instituem de poder os agentes que
podem, os que não podem e os regimes de existência algo explorados pela
arqueologia foucaultiana e que tem um papel de destaque na composição da
modernidade histórica narrada a partir da linha da secularização. São
operadores de determinação ulterior das figuras presentes nos limites e no além
da jurisdição. É aí que a tensão entre Geertz e Asad atinge seu ápice e, penso
eu, sua maior relevância exatamente porque via Geertz nada parece existir com
maior grau de realidade dado que restrito ao terreno do simbólico – que é o que
existe no lugar de outra coisa numa forma de existência derivada próprias à
definição mais agressiva de semiótica da comunicação humana, e especificamente
humana como ele faz questão de enfatizar no ensaio sobre o impacto de conceito
de cultura no conceito de homem – segundo capítulo de The Interpretation of Culture.
De outra
forma, à maneira de Asad, o universo do discurso sempre sugere franjas e
bordas, ou um mais além da linguagem que define o empreendimento humano de
forma abrangente. Da antropologia também, como crítica e produtora de poder. A
comunicação humana reduzida a si-mesma parece ser condicionada por um projeto
de paz perpétua que acompanha esta forma mitigada de religião natural desde o
iluminismo escocês de David Hume, cuja concretude ou sua evidente falta forja a
principal razão de sua recusa e, no pacote, a recusa da ética implicada na
condução até o ponto em questão.
O itinerário
programado por Asad não é especificamente uma agenda contra-Geertz propriamente
dita, mas contra aquilo que o projeto de Geertz ironicamente representa dado
que demasiado dedicado na reprodução do confinamento e da defesa de uma
religião confinada (Asad, 1993:28), isto é, de uma atividade simbólica de
agência tutelada, o que é uma das especialidades do Estado moderno. Obviamente
que esta é uma forma grosseira de apresentar a antropologia de Clifford Geertz,
salvo se retomarmos a frase. Disse que Asad se indispõe contra aquilo que a
antropologia de Geertz representa, isto é, contrária à versão cômica dos
universais humanos que na forma de antropologia são registrados em livros,
filmes e museus e que, uma vez sumariados compõem um catálogo de traduções semióticas de textos culturais. Rigorosamente
a humanidade emerge como pura mediação com força de agência, é o objeto em
lugar de outro por excelência numa diluição homeopática da eucaristia.
Visivelmente é a contraproposta liberal para as instituições medievais que
eram, antes de mais nada, cristianismo público e não privado. E é esta
alteração que serve de evidência quanto aos limites da definição de religião
via Geertz:
“Let us, therefore, reduce our paradigm to a definition, for, although it
is notorious that definitions establish nothing, in themselves they do, If they
are carefully enough constructed, provide a useful orientation, or
reorientation, of thought, such that an extended unpacking of them can be an
effective way of developing and controlling a novel line of inquiry. They have
useful virtue of explicitness: they commit themselves in a way discursive
prose, which is this field especially, is always liable to substitute rhetoric
for argument, does not. Without further ado, then, a religion is:
(1)
a system of symbols which acts to (2) establish powerful, pervasive, and
long-lasting moods and motivations in men by (3) formulating conception of a
general order of existence and (4) clothing these conceptions with such an aura
of factuality that (5) the moods and motivations seen uniquely realistic.
a system of symbols which acts to…”(Geertz,
1973:90-91)
O
interessante é que Asad cita o elenco em tópicos sem mostrar ao seu leitor o
que é a definição de “definição” para Geertz como se os tópicos bastassem como
representativa de um universalismo qualquer sem se aproximar da postura de
Geertz como autor ou então, mais condizente com a crítica em questão, como
autoridade. Ao fazê-lo parece, contudo, perder o mais importante pois é quando
Geertz se mostra como uma espécie de comediógrafo liberal à forma de Harold
Bloom (Abaixo às verdades sagradas)
ou Richard Rorty (Contingência, ironia e
solidariedade), exímios problematizadores da definição de “definição”.
Afinal, se um símbolo é um objeto que se põe no lugar de outro, uma definição
se presta ao papel de premissa de um ato de comunicação cuja o ápice
performático é o da piada, da comédia. E deixar claras as premissas é uma
postura muito mais importante quanto a universalidade do conceito de religião
proposto do que a definição ela mesma. Até porque o religioso e o simbólico
coincidem nos termos da hermenêutica de Geertz, e Asad sabe disso. A esta altura,
ainda que motivações estejam fora da alçada do presente comentário, é mais
importante descobrir o que Asad que de Geertz mais do que o que Geertz de fato
produziu. E o que Asad demanda é disciplina.
quarta-feira, 17 de julho de 2013
La faiblesse de croire : la diabolie
DE CERTEAU,
Michel. La fable mystique, I – XVIe-XVIIe
siècle. Gallimard. Paris.
1983.
REICHLER, Claude. La diabolie. la séduction, la renardie,
l’écriture. Minuit. Paris.
1979.
1-
Estão, desde
então e desde sempre sob suspeita. Esta é a lição de Ernst Troeltsch a
respeito dos místicos e daqueles que se reúnem ao seu redor. Ruim com eles,
pior sem eles e a dimensão extática faz de seus eleitos a forma sensível da fé. E
a forma sensível, o contato imediato é igualmente a fonte das tentações mais
graves, especialmente quando o tema da natureza caída estrutura a ordem. O
mundo e o Céu, o mesmo destilado sempre com mesma letra maiúscula que encontramos em Don Juan de Molière. Isto porque o hiato
entre a ordem cósmica e a ordem política que guarda os segredos do outro mundo
nem sempre estão em acordo e, para além disso a relação entre um extremo e
outro delineia aquilo que é o próprio espaço da querela eclesiológica. A
extensão e a forma da ordem no que tange a definição do domínio. Não à toa, e
especialmente no alvorecer da modernidade clássica a tensão entre potestas e autoritas ofereceu e ainda oferece desafios nada insignificantes no
que tange a justificação da ordem, sua elaboração discursiva e a instituição do
domínio. Aquele que vive o poder na pele sem ser o poder ele mesmo é, assim, um
desafio para a divulgação das boas novas, quando são de fato algo otimistas.
Assim, o que
fazer com o relato místico, com as experiências de contato direto com os mirabilia, com tudo aquilo que desafia a
mera classificação desafiando a dignidade fundamental que impotente não
consegue fazer nada senão evidenciar a sua pequenez diante a linguagem adâmica
falida desde a Queda? Nem tanto esta questão, a do quê fazer, mas descrever
como fazer. Ou melhor, descrever como em determinados casos a Igreja, pela
agência que lhe é peculiar em momentos determinados resolveu uma certa gama
desses eventos, é aquilo que serve de base para as investigações primeiras de
Michel de Certeau, particularmente ao redor do estabelecimento dos escritos de
Jean-Joseph Surin - exorcista de formação jesuíta e o principal investigador do
caso da possessão das irmãs ursulinas em Loudun, entre 1630-1636. França. Ele
mesmo sendo um intelectual da igreja, igualmente jesuíta redige mais adiante
um trabalho de fôlego sobre exatamente a determinação filológica e teológica de
obras místicas que resolvem no livro La
Fable Mystique, I – XVIe-V+XVIIe siècle. Neste livro em questão, além de
descrever em detalhes como se deu a circulação dos escritos místicos de Surin,
Certeau assume o risco de olhar-se no espelho e ver-se na escrita mística que é
auxiliada por uma outra, secular e dedicada a transmitir sem iludir cujo teatro é encenado principalmente pela relação entre Diego de Jésus e São João da Cruz. Exercício de depuração e ordenamento sem fazer
pleno sentido, sem abrir mão do inefável, do inexprimível. Não é o mesmo de
determinar bulas, atas e manuais de direito canônico. Isto porque há algo que
deve ser deixado de lado ou que é de qualquer forma delicado, fugidio porque ausente deste mundo. O texto a ser
estabelecido não deve fazer as vezes de texto sagrado. Além disso, traz consigo
a ordem, o procedimento que define que o místico em questão não fora ele mesmo,
iludido. No que mais importa o texto se esvazia. E é sobre este vazio, no
terreno em que há muita margem de manobra que o diabólico toma lugar.
“Le
lecteur, séduit par ce « rien », deviendra-t-il fou à son tour, ou
bien, retourné chez lui, cherchera-t-il, s’il peut, à oublier ce qui lui est
retiré ? De n’être jamais là où
on pourrait dire, la folle a falsifié le contrat que l’institution garantit et
qui protège contre le « vertige » de ne pas savoir « à quoi m’en
tenir sur le désir de l’autre, sur ce que je suis pour lui ». Finalement,
aucun contrat, fût-ce le premier et dernier de tous, celui du langage, n’est
pas par elle honoré. En répétant nos mots et nos histoires, elle y insinue leur
mensonge. Peut-être, tandis que le sym-bolos
est fiction productrice d’union, est-elle dia-bolos,
dissuasion du symbolique par l’innommable de cette chose. » (Certeau, 1982 :58)
Peculiarmente o trecho que cito acima não faz remissão a qualquer coleção de textos místicos. As citações acima são trechos de
dois livros. O livro de Claude Reichler, La
Diabolie, e a autobiografia de Roland Barthes, ambos semiólogos. Ainda bem. E com “ainda bem”
não pretendo exprimir nenhum juízo em favor de Roland Barthes. Nem
desfavorável. Muito pelo contrário. De fato não há nada que eu pretenda, ao
menos não em demasia. Este é um ensaio no qual muito pouco, ou mesmo quase nada
tende a acontecer. Por vezes demasiado lento, e em outros momentos acelerado
aos saltos, pretende simplesmente sugerir notas de um exercício para o qual não
estou e não pretendo estar à altura. É fruto da inventiva de assinalar alguns
elementos para uma análise propriamente diabólica. Pelo visto, este não será um
exercício solitário ainda que a companhia seja algo custosa.
Quando ainda em Paris, com a
curiosidade atiçada pelo título do volume redigido por Reichler, encomendei-o
com vistas em tomar notas. Tomar conhecimento de sua existência por via do
livro de Michel de Certeau, no entanto, traz uma pequena dificuldade. Isto
porque segundo a investigação do jesuíta preferido de nove entre dez
estruturalistas franceses – há quem prefira Matteo Ricci, e mesmo António Vieira, é verdade – o
discurso diabólico é uma espécie de discurso limite ainda mais perigoso que o
idiota. Porque o apelo direto aos sentidos e a sedução extática são armas,
antes de mais nada, do Príncipe deste Mundo – lembrando o título do pequeno livro de Raïssa
Maritain. Sendo assim, o êxtase da relação imediata com o transcendente, com as
forças maiores que a humanidade são perigosas exatamente por não trazerem
clareza quanto aos signos de sua fonte. A imaginação e os dados imediatos, dois
diabos que o cartesianismo se esmerou em exorcizar – o que em nada tem a ver
com exterminar, mais uma vez muito pelo contrário.
O livro de Reichler, contudo, está
preocupado com coisa bastante diferente. Está atento ao discurso sedutor,
falacioso mas não como caso limite. Somente como caso. Entre a lisura e a retidão, por
um lado, e a sedução da falácia de outro, eis o que se mostra como tarefa do
estudo:
Se o cenário de Michel de Certeau se
aproxima da dimensão geopolítica da secularização e da formação do território
que faz do místico o estrangeiro na modernidade, exatamente como o louco e o
selvagem[1],
Reichler afirma a autonomia da imaginação sedutora. Não como uma forma de
cidadania, vale dizer, mas como uma postura que qualquer norma de linguagem,
ainda que venha a exorcizar, não elimina. E sim, estamos falando de um tratado
de semiótica. É a linguagem sobre a moral, e não a moral ela mesma que
interessará ao diabólico – e assim se mostrará o quão difícil, se mesmo
meramente possível, é falar do diabólico sem carregar desde então as suas
marcas. Uma delas é exatamente o de carregar a linguagem consigo como se
meramente linguagem fosse.
[1] Vale lembrar que Marcel
Gauchet é altamente refratário à tese foucaultiana que delineia de forma mais
enfática a equivalência sugerida entre loucos e estrangeiros. Ao contrário, é
dele a tese de que o sistema manicomial é, à sua forma, o reconhecimento de
cidadania deste tipo de cidadão pouco razoável. O caso é que é de Gauchet mesmo
a forma de definição da cristandade como desenvolvimento progressivo de
instituições de saídas da religião, fazendo de Deus o maior de todos os
estrangeiros, tal como expresso tanto em Le
desenchantement du monde como em La condition politique. Se a relação
entre louco e estrangeiro lhe soa arbitrária, as razões do religioso ser alguém
em proximidade com o estrangeiro radical, não. Ao mesmo tempos ele reconhece as
aporias da religião, e de como o enunciado religioso sofre para fazer sentido
diante das instituições modernas. Restaria então, no seu caso, resolver a
estranha facilidade em excluirmos da mesma fronteira, loucos, místicos e
selvagens.
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