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domingo, 4 de novembro de 2018

Promener pour la méthode: mimesis interspecífica, hermenêutica de ouvido, e o perfectível Conde de Buffon, parte II

O fragmento foi redigido em 1950. Discute o conceito de política no mesmo momento em que redigia seu livro maior, Origens do totalitarismo, prefaciado no mesmo ano. Assumindo a tarefa de introduzir o público leigo ao conceito aos temas fundamentais da política, Hannah Arendt escreve uma espécie de manifesto do tempo presente em um planeta que via parte das principais instituições ocidentais ruir sob o peso do totalitarismo. Começar a discussão a respeito do fragmento em questão, aquele que disserta sobre o que é política, tem como principal horizonte tomar como ponto de partida o conceito, e o problema do conceito do comum como fundamento da vida política. A expectativa primeira é que poucas coisas são tão difíceis de compreender quanto o que podemos chamar de comum.

Ainda que seja nosso ponto de partida, o problema do comum, convém estabelecermos que é somente enquanto orientador para uma reflexão sobre a política que o comum vai nos orientar. E, se seguirmos o primeiro fragmento, de agosto de 1950, vemos que a política se baseia em 7 elementos. E não, Hannah Arendt não nos oferece uma definição. E se Jacques Rancière estiver certo (2018) como acredito que esteja, é porque a política é antes um acontecimento que danifica as relações, que coloca algo a perder, que não tem nenhuma definição propriamente positiva - assim como o comum. De um comum como algo indeterminado, como um conceito que faz precipitar a atividade política, o comum é fonte de uma certa indeterminação na exata medida em que é possível dizer que o conceito sofre do mesmo mal da política propriamente dita: não consegue irromper que não seja por interrupção do ordenamento posto, por um desacordo quanto ao fato de que o comum não se concretiza nas relações postas. Esta dificuldade maior nos coloca então no horizonte de que a reflexão sobre a política em suas diversas manifestações é uma reflexão que, na medida em que é exclusivamente teórica, ou mesmo meta-teórica, propicia um momento de concórdia ou, lembrando uma reflexão maussiana, de conciliação que não compactua com a radicalidade do desentendimento para o qual a política se presta. 

Digo tudo isso porque Hannah Arendt introduz sua reflexão na fórmula a política se baseia na pluralidade dos homens (1999:21). Nisso, a política tem como base, sustenta-se a partir da constatação fática, do fato de que há diversidade humana que é, para todos os fins, irredutível. Esta irredutibilidade é o horizonte de sua pesquisa sobre o totalitarismo e sobre o fim da política na propaganda totalitária. E ainda assim, é daqui que partimos. Em primeiro lugar, a política parte da constatação de que há algo de irredutível na humanidade, e ela é exatamente a diversidade existencial humana. Esta diversidade existencial constrange o pensamento na forma pela qual a política não é, e não pode ser um exercício de taxinomia: 

A política baseia-se na pluralidade dos homens. Deus crio o homem, os homens são um produto humano mundano, e produto da natureza humana. A filosofia e a teologia sempre se ocupam do homem, e todas as suas afirmações seriam corretas mesmo se houvesse apenas uym homem, ou apenas dois homens, ou apenas homens idênticos. Por isso, não encontraram nenhuma resposta filosoficamente válida para a pergunta: o que é política? Mas, ainda: para todo o pensamento científico existe apenas o homem - na biologia ou na psicologia, na filosofia e na teologia, da mesma forma como para a zoologia só exite o leão. Os leões seriam, no caso, uma questão que só interessaria aos leões. (ARENDT, 1999:21) 
 
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Quatre petits fils proprement comparés
 A figura zoológica do homem no singular tem uma trajetória importante na medida em que, ao mesmo tempo em que produz uma alternativa às formas de racismo poligenista, que consistiam em mais de uma variação sobre a modernidade escravocrata e o regime de apartheid, ela faz da variação monogenista uma versão alocrônica de formas distintas de racismo. Por exemplo, na figura dos três estágios evolutivos presentes na filosofia da história do positivismo de Comte. Neste caso estaríamos, contudo, na seara de arranjos mais ou menos metafóricos, em que a zoologia humana seria mais uma apreciação sobre a conformação as ciências da vida - as ciências que instituem enunciados que orbitam ao redor da vida como um conceito, ou seja, como uma classe de fenômenos estabelecida -, seria importante encontrar um exemplo literal do que estamos falando, que servisse como fonte de um arquivo que, contra teológico, reafirmasse a unidade humana nas bases da anatomia comparada. Felizmente, estas fontes remontam exatamente à Enciclopédie, editada por Denis Diderot e Jean le Rond D’Alembert e encontram seu momento pinacular na obra De l’homme, de Buffon. Uma remissão para a tradição francesa de pensamento não é meramente um exercício de erudição. É, no limite, a reconstituição do arquivo político onde se expressa o sujeito constituído que terá na lei o seu reconhecimento. Na lei humana e, obviamente, nas leis da natureza. Fazer coincidir um com o outro é, bem sabemos, uma obsessão moderna sem precedentes e é com ela que nos havemos, ainda que de forma bastante incipiente. 
 
 O verbete da Encilopédie que versa sobre a antropologia de um ponto de vista propriamente moderno é o de anatomia. Escrito por Diderot, acompanha o interesse do mesmo pelas ciências da vida e pela proliferação de metáforas políticas na descrição do funcionamento do corpo. Diderot, entusiasta das luzes em seu formato enciclopédico, endossa a atividade da anatomia - a dissecação - pela atividade imediata, isto é, conhecer a figura, a posição e as conexões dos ossos, das cartilagens, das membranas, dos nervos, dos ligamentos, dos tendões, os vasos arteriais, venosos, linfáticos, etc (DIDEROT, 2015:253). Tendo como horizonte compreender a correlação entre fluidos e sólidos no corpo, faz da correlação entre diferentes estados da matéria como dinâmica da conservação e restabelecimento da máquina (DIDEROT, op.cit.), reiterando parte da enteléquia cartesiana e La Méttrie e antevendo uma das noções caras dos máquinas movidas a combustão. 
 
 O caminho do Iluminismo, convém notar, tem notas ardilosas em que é possível antever o futuro nada animador para a vida em comum. Ao considerar as opiniões sobre a prática da dissecação dos chamados médicos dogmáticos, eis como Diderot dá prosseguimento ao verbete: 
 
 ’É preciso’, diziam eles, ‘abrir cadáveres, examinar as vísceras, esfoliar as entranhas, estudar as partes diminutas do animal', e nunca é demais elogiar a coragem de Herófilo e Erasístrato, a quem eram entregues malfeitores que eles dissecavam ainda vivos, bem como a sabedoria dos príncipes que sacrificaram um pequeno número de malfeitores em benefício de uma multidão de inocentes, de todas as condições, e todas as idades e de todos os séculos que estão por vir. (DIDEROT, 2015:254)
 
 Eis a passagem que nos obriga a recuperar a urgência de uma nova ética, tal como proposta por Hans Jonas, para quem uma ética prática envolta nos modos gregos, que resolve questões eivadas de imediaticidade - a esfera da política de Hannah Arendt - vê na responsabilidade uma forma de antecipar a atividade técnica com seu resultado, assumindo um compromisso com a possibilidade da consumação do futuro. A utopia do pleno conhecimento enciclopédico, ainda que tenha produzido uma esfera moral produtiva decisiva para a produção do conhecimento positivo e fundamental para a corrosão das relações de trabalho, parece ver no balanço entre mortos e vivos resultantes de uma operação técnica a razão suficiente para uma tomada de decisão. É impossível não perceber aqui o tipo de prenúncio que conforma a administração total das práticas institucionais nas quais absolutamente tudo está em jogo. Não estamos falando, obviamente, somente de conhecimento. Mas desconfio que aquilo que toma a forma de uma matriz ideológica é muito mais o desdobramento da administração de uma cultura material que, a esta altura, ou funciona nesta correlação de escalas ou tende a travar. Com o imperativo do crescimento como índice de desenvolvimento - o que nos coloca diante de questões de economia política -, a desconfiança carrega consigo uma maré de corpos que recebe o nome de humanidade. Afinal, com vistas em um conhecimento anatomicamente preciso, o objeto passado é o cadáver e sua predisposição para a manipulação. Quando encarnada, a humanidade transforma-se em uma outra coisa. É a disposição habitual do coração para empregar nossas faculdades em benefício do gênero humano. E aqui, a ética reclama seu lugar de direito uma vez que o anatomista, é ele desumano? E aqui o iluminismo mostra-se praticante de uma forma aguda de poder e de ajuizamento na qual permite-se pensar no lugar de outrem: 
 
 De minha parte, não gostaria de ser nem cirurgião nem anatomista, pois tenho algo de pusilânime; mas nem por isso me parece menos desejável que fosse instituída entre nós a prática de entregar a profissionais que tivessem a coragem de realizar a operação a serem vivisseccionados. Não importa como se considera a morte de um malfeitor, seria muito mais útil à sociedade que ela ocorresse num auditório do que no cadafalso, e esse suplício seria tão medonho quanto qualquer outro. Haveria um meio de administrar a conduta do espectador, do anatomista e do paciente; o espectador e o anatomista não realizariam no paciente operações que não fossem úteis ou cujas consequências não fossem claramente funestas; e o paciente, confiando somente nos homens mais esclarecidos, receberia a vida como prêmio, caso sobrevivesse à operação nele realizada. A Anatomia, a Medicina e a cirurgia, não teriam a ganhar com isso? Quantas vezes não nos instruiriam mais as consequências da operação do que a operação mesma? Quanto aos criminosos; quem não preferiria uma operação dolorosa à morte certa? Ou quem não preferiria, em vez de ser executado, se submeter à injeção de líquidos no sangue, à transfusão deste, à amputação de uma perna, à extirpação do baço, à extração de um tecido o cérebro, à ligação das artérias mamárias às epigástricas, ao corte de uma seção do intestino, à abertura do esôfago, à ligação entre os vasos espermáticos, com extirpação do nervo, ou à intervenção noutra víscera qualquer?” (DIDEROT, 2015:256)
 
 Diderot faz a escolha. O risco à morte de uma minoria, não em nome de uma maioria, mas em nome de um futuro que pode nunca vir a acontecer. A questão ética, e a abertura para a política que recusa o homem como uma forma unitária indistinta visa prevenir, ou ao menos recusar tomar decisões como a que Diderot toma, ainda que mediante a redação de um verbete de um empreendimento editorial. Afinal, a desumanidade de um malfeitor o qualifica para morrer porque sua morte possível, à luz do futuro, é um mal menor. No sentido dado por Hannah Arendt, se há algo que o prisioneiro não é, se há um lugar em que ele não está, é entre homens - e  a anatomia é útil, mas aos magistrados. Os homens estão fora, movendo a burocracia da morte. E, no entanto, o regime de corpos sob tutela não é a forma de produção das instituições médicas? Por fim, há alguma diferença entre uma doutrina como esta e qualquer uma outra, que vê na vida alheia rifada por uma solução prognóstica a noção acabada de aprimoramento? 
 
 No final das contas, o que importa é o progresso. O aprimoramento das descobertas sempre conjugadas com o que poderia ter consequências surpreendentes (DIDEROT, 2015:263). O que é francamente decepcionante para avaliarmos o humor e a capacidade diagnóstica de Diderot, que não percebe o papel ambíguo daquilo que ele mesmo promove. Aparentemente, este é o nosso papel. 

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. Companhia das Letras. São Paulo. 1990
ARENDT, Hannah. O que é Política? - fragmentos das obras póstumas. Bertrand Brasil. Rio de Janeiro. 1999
BUFFON. De l’homme. François Maspero. Paris. 1971
DIDEROT, Denis & D’ALEMBERT, Jean Le Rond (dir.). Enciclopédia - ciências da natureza (vol. 3). Unesp. São Paulo. 2015
RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. Editora 34. São Paulo. 2018

sábado, 7 de janeiro de 2017

A FALÊNCIA DO PULMÃO DE AÇO



PIGLIA gostava dos jogos que Paul Auster tentou, certa vez, participar. Quando o escritor da Trilogia de Nova York arriscou das suas, conseguiu a sorte grande quando criou um jogo de baseball em uma carta de baralho, mas falhou flagrantemente quando abriu a porta para si mesmo - respondendo a personagem que, na mesma porta, batia: "Paul Auster" para Paul Auster abrir. Piglia não. Em Nome Falso ele mostra como funciona o jogo. Em busca do manuscrito inédito de Roberto Arlt, tão importante em sua respiração artificial - romance ao qual ainda dedico minha vida -, ele acaba por reconstituir a relação do autor de Os sete loucos e O lança-chamas com a figura fabulosa de Saúl Kostia - descrito com não poucos traços do Rigoletto, o corcundinha.



"Kostia era um sujeito gordo, asmático,que respirava ofegando. Estava sentado junto a uma mesa do fundo, no Ramos, rodeado de copos de cerveja, ao lado de uma mulher muito decotada e vestido de azul-claro e de um sujeito magro, de ar consumido e febril. Kostia falava como se estivesse pregando e a todo momento secava o rosto com um lenço amassado e sujo."


Este, o amigo de Arlt, carregava consigo a peça derradeira, aquela que permitiria um não sei o quê indiciário que permitiria a Piglia reapresentar o escritor Alrt à literatura argentina a partir do malefício do manuscrito inédito. Esta mesma literatura, reafirmava sempre que possível o mesmo Arlt, precisava urgentemente de escritores ruins para se salvar de si mesma - coisa que Macedónio Fernandez levou aos píncaros em Museo de la novela de la Eterna na criação do gênero da novela ruim. O fato é que Kostia era amigo de Arlt. E Arlt, por sua vez, apontava em Kostia aquele que seria o maior poeta argentino vivo. 


"Ele é um poeta", dizia Arlt. "Nós somos simples operários da literatura. Com a morte de Lugones, você, Kostia, é o único poeta que nos resta." Kostia morria de rir. "Digamos que eu seja Balzac", dizia-lhe Arlt. "Mas você é Mallarmé."


Na mesma página, a de número 39 da edição da Iluminuras traduzida por Heloisa Jahn, temos uma nota onde um poema de Kostia está transcrito na íntegra. Fruto de uma publicação da revista Claridad de 24 de agosto de 1941, o poema:


Ciegamente atado
a la tristeza y al vino
leoloslibros escritos por mi, recuerdos
deslucidos, tambaleantes poemas
y rancias fotografias
rastros puestos en la noche cerrada.
Miro la ziguezagueante línea errónea
todo yo ceñido a la tristeza
y a la luz, la luz
que serenamente ya no se puede contemplar
lainflamada luz de mi cabeza
y esos fulgores de lentitud
sobre el mismo cimineto de todas mis palabras
a la tristeza ligadas, y al vino,
y a los golpes de viento negro
que enpujan mi poesía al desencuentro.
Todo yo me veo comoun morir
más muriente a los treinta años de amaneceres
y de noches, sobre todo, sabiendo
que hay un automóvil estacionado a la puerta
de mi expuesta casa
y hay un paciente, un indiferente,
un estulto chófer,
que me conduzirá a la muerte.
Así, entre inpublicados libros
y libros nacientes,
entre fotografías y botellas
y amigos desaparecidos bajo la tierra,
oyendo el fragor del mundo en llamas espero
el acabamiento de los plazos. 



Seu prazo, inferno, se deu no dia do meu aniversário. 

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Acídia

Não queira saber do mal que faz
o mal-estar em querer
e em querer saber o mal que é
querer saber do mal
que é o que é querer
e então
querer saber.

Porque querer, e querer tanto
que faça moinho a moenda da carne
é o afastamento.
Dotado.
Muito bem dotado,
o dote das distâncias mais largas,
as que conjugam - retas paralelas -
de forma que toda relação venha a ser
sempre
uma outra coisa que não o que logo é.
E adia.

Eis o abuso do sacrifício
a desfaçatez do genocídio encarnado
o Império de logo mais
o adiamento,
a vontade que existe pelo hiato
cuja promessa é a perenidade da esperança
que todavia nego.

Porque, seja o que for,
- doing is being -
o que é é o que há.
Querer é foder.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.

Diana - janela do Musée du Louvre; fotografia de Refrator de Curvelo
9-


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FRAZER, James George. The golden bough: the magic art (2/13 vol.). Macmillan. 1990 [1913].
VIRGÍLIO.  Eneida. (trad/ Odorico Mendes). Ateliê/Unicamp. Campinas.2005.



Feliz ou infelizmente, Frazer não dispõe de nenhum cadáver a partir do qual ele possa conduzir qualquer elogio a Claude Bernard. No entanto, dispõe de documentos a partir dos quais recupera os poucos fatos que tramam uma cadeia de relações de espaço tempo com uma meia-dúzia de histórias que viraram escombros. Assim, a adoração à deusa Diana em Nemi fora instituída por Orestes quem, depois de matar Thoas, Rei da Queroneso Táurico (Crimea) traz consigo para a Itália sua irmã e a imagem da Diana Táurica escondida num feixe de gravetos. Uma vez morto seus ossos foram transportados de Aricia para Roma vindo a serem enterrados no templo de Saturno. A lenda táurica sugere que o estrangeiro que chegasse pelo mar seria sacrificado no altar da deusa, o que na Itália assumiu uma outra forma.

Crescia no santuário de Nemi uma determinada árvore cujo galho algum poderia ser quebrado. Apenas um escravo em fuga tinha a permissão de, caso tivesse forças, tomar um dos seus ramos. Se bem-sucedido o escravo adquiria o direito de lutar uma justa com o sacerdote do lugar e, vindo a mata-lo, reinaria em seu lugar portando então o título de Rei do Bosque (Rex Nemorensis). De acordo com a opinião dos antigos o galho fatídico era o Ramo de Ouro o qual, reza a profecia da Sibila[1], Enéas arrancara antes de seguir em sua jornada rumo ao mundo dos mortos. A fuga do escravo representava, assim é dito, a fuga de Orestes, sendo o combate com os sacerdotes a reminiscência dos sacrifícios humanos outrora oferecidos para Diana Táurica. Observa-se tal regra, a de sucessão pela espada, nos tempos imperiais; dentre outras de suas atrocidades Calígula manda um rufião vigoroso assassinar o sacerdote por considerar que estivesse no ofício por tempo demais; e um viajante grego que visitava a Itália na era Antonina observa que naquela época o preço pela vitória em uma justa seguia sendo o sacerdócio.”(Frazer, 1990:11 – tradução minha)

Antes de mais nada, o segredo está na figura de Diana Táurica cuja imagem fora contrabandeada até Nime. Ela, protetora de homens e mulheres em gestação, garante de partos com boa chegada. As estátuas de bronze que passaram a adornar seu santuário carregam uma tocha na mão direita cujo fogo se encontra presente igualmente em uma lâmpada de fogo perpétuo no mesmo santuário com vistas na proteção do Imperador Claudius, fogo mantido e guardado pelas vestais. Os detalhes a respeito da matéria que mantinha o fogo estão arroladas em registro arqueológico que passam a ter maior relevância quando a discussão se encarrega de apresentar uma coincidência histórica quanto ao calendário das festividades em homenagem à Diana. Ainda que não conheça os detalhes sobre a conversão dos calendários, em especial do Justiniano ao gregoriano e como é que transitam as datas neste deslizamento, a festa em homenagem à Diana se dava no dia 13 de agosto. É em 15 de agosto que a Assunção da Virgem Maria é comemorada – a diferença de dois dias se repete em outro caso, em 23 de abril na festa de São Jorge que outrora fora o festival romano da Parília, no dia 21. Frazer deixa claro que celebrar a Assunção da Virgem visa proteger vinhedos e outras frutas (maçãs) que ele não especifica – fora de contexto. Este é o período em que muitas frutas estão amadurecendo, sendo portanto um período de colheita, domínio igualmente protegido por Artemísia. Entendendo que Artemísia é a antecedente grega da Diana italiana, é possível estender as relações que perpassam as duas figuras nas extremidades da cronologia. Se Artemísia é um similar de Maria no que diz respeito ao culto de proteção aos vinhedos e sua colheita, nada impede que a cadeia de analogias inclua Diana. A analogia é, obviamente, do culto, dos ritos e da relação com os ritmos cósmicos registrados em calendário. Não chegamos perto do limiar da interpretação dos símbolos em que a imagem é sinal de algo. Tudo o que temos é o local e a data do crime marcados pela ruína cerimonial em que a similaridade cumpre o papel de crime serial.

A história a ser contada envolve mais duas deidades menores sendo uma delas, Egéria, ninfa das águas claras, outrora amante ou esposa do rei Numa. Em Roma é possível encontrar, em Porta Capena, uma outra caverna igualmente sob domínio de Egéria, igualmente disposta aos ofícios das vestais. A outra deidade, igualmente retratada nos versos de Ovídio, é Virbius, que igualmente igualmente e nos mesmos versos, ao nome de Hipólito, o casto e justo tendo aprendido com o centauro Quirão as artes venéreas. Foi também parceiro de caça de Artemísia e levado à morte por deus do mar que apavorou seus cavalos quando viajava pelo golfo Sarônico. Diana, aqui, é quem traz seu amado de volta à vida enfurecendo Júpiter que convoca Hades para levar o mortal para o seu lugar de direito. Disfarçado, é levado a Nemi e fica sob os cuidados de Egéria. Assim, trata-se de uma associação ao redor de Diana cuja natureza é o caminho que a investigação deve seguir[1] e que Frazer não demora nada em afirmar qual seria, qual seu caráter a-histórico. Há uma classe de mitos que explica a origem dos rituais religiosos que não tem outra fundação que não seja a semelhança real ou imaginária que possa ser traçada entre a presente instituição e algum ritual que lhe seja estrangeiro (Frazer, 1990:21)? Diana de Nime é um padrão a partir do qual se impõe uma comparação que é antes de mais nada, artificial dado que o original de fato é da ordem da razão funcional. Não é Diana a origem, mas a partir dela é possível abstrair o fator original a partir do qual a história é repetição; a cópia cuja mimesis a faz se confundir com o original. Aliás, sem a noção de função é difícil imaginar esta concepção de mimesis em que o original não é uma forma, mas sim sua pulsão de informar, o que a cibernética vem a sugerir como sendo a dinâmica da informação [http://docurvelano.blogspot.com.br/search?q=Simondon].


[1] A natureza desta associação permite que retomamos passagens como as abordadas por Brent Nongbri (2013), como a beatificação de São Josafá cujos apontamentos filológicos sugerem ser, na verdade, ou também, Sidarta. Sobre Hipólito lemos em The Golden bough: “”But the truth is” says Servius, “that  he is a deity associated with Diana, as Attis is associated with the Mother of the Gods, and Erichthonius with Minerva, and Adonis with Venus”. What the nature of that association was we shall enquire presently. Here it is worth observing that his long and chequered career this mythical personage has displayed a remarkable tenacity of life. For we can hardly doubt that the Saint Hyppolytus of the Roman calendar, who was dragged by horses nto death on the thirteenth of August, Diana’s own day, is no other than the Greek hero of the same name, who after dying over as e heathen sinner has been happily resuscitated as a Christian saint.” (1990:21).


[1]Anquísea e diva estirpe,/Descer a Dite é fácil; dia e noite/Seus cancelos o Tártaro franqueia: / Tonar atrás e à luz, eis todo o ponto,/ Eis todo o afã. Do reto Jove amados,/ Ou por virtude ardente ao céu subidos,/ Poucos, filhos dos deuses, o alcançaram:/ Medeia um bosque, e sinuoso em torno/Enfuscado o Cocito a espreguiçar-se./ Mas vezes duas se tranar a Estige/E a lôgrega morada ver cobiças/ Se tanto folgas do ímprobo trabalho,/ Ouve e à risca o executa. Árvore opaca, / Dicada à inferna Juno, oculta um ramo/ N’haste e nas folhas áureo: em vale umbroso/O encobre e fecha a denegrida selva. Sem que destronque o aurícomo rebento, / No Orco ninguém se interna: é dom que exige/E insistiu Prosérpina formosa./ Uma fora, brota o novo, e do luzente/ Metal frondesce a vara. Em alto a mira,/ Indaga, e achando-o respeitoso o apanhes; /Que, a te ser destinado, ele espontâneo/Logo te cederá; senão com força/ Nem duro ferro poderás sacá-lo. Porém, desta consulta enquanto pendes,/ Ai!, mal sabes que as naus te incesta agora/De amigo exânime o feral cadáver:/ No sepulcro o aposenta; em negras reses/ Enceta a expiação. É como aos vivos/ O ínvio reino sombrio e Estígias brenhas/ Hás de avistar.”  Calou-se, e os lábios cerra/ De olhos fixos, tristonho, eventos cegos/ A cogitar, a gruta Enéias larga: trilhando a pegada, o fido Acates/Volve iguais pensamentos. Sobre o sócio/Que, ao dizer da Sibila, enterrar devem(...”.)(trad. Odorico Mendes). Resta notar que Eneias é um escravo fugitivo em potencial que se tornou soberano de seu povo e que a sua entrada no reino dos mortos demanda o depósito de um morto igualmente. Há aqui um tipo de espelhamento entre ritual e narrativa que não se pode ignorar, especificamente porque é a matriz do texto de Frazer como acontecimento ele mesmo.

O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.



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É inútil, contudo, reagir a Frazer repetindo a milonga da ignorância, dizer que ele não sabe do que é que está falando quando reduz à mera superstição a quase totalidade daquilo que ele chama de teoria da magia – isso Wittgenstein o fez com rendimento superior ao que eu poderia fazer. E no meu caso, fazê-lo implicaria em repetir Frazer naquilo que ele tem de menos admirável e redutor, o que é seguramente a forma mais fácil de transformá-lo na figura ilegível para a qual Marilyn Strathern chama a atenção, quando os modernos se convertem nos selvagens de todos aqueles que finalmente os teriam superado. O que me parece mais exato é recuperar uma dimensão específica que não redime a antropologia vitoriana de nenhum de seus pecados, mas que talvez possa sugerir um percurso que os façam um tanto quanto menos selvagens, menos ainda que os selvagens dotados do barbarismo da superstição. Se me for permitido reduzir O ramo de ouro a uma só intenção eu gostaria de dizer que se trata de um enorme esforço, quase que desproporcional, em contar uma história. Só uma. E que, para tal, será preciso confundi-la com a história da humanidade, sua história original. Eis um motivo adequado para fazer viver o ato da magia que faz indistintos o original e a cópia senão por uma investigação severa de evidências circunstanciais. O ramo de ouro, o mais longo tratado pericial de ciência criminal da antropologia moderna. E como todo exercício do gênero, é necessário desconfiar daquilo que diz seu informante, mesmo que ele seja Ovídio, Virgílio ou Pausânias. É nesta hora que percebemos que o informante, ainda que não necessariamente para o caso presente, é sempre um suspeito. Um suspeito em potencial. E aqui encontramos uma entrada forte para o problema do ato ritual com relação aos mitos narrados; sobre o valor do ato mágico contraposto à teoria da magia; e, no meu caso, porque a metodologia se mistura, na confusão entre figura e fundo, com a história que se conta.  O que se diz deve ser lido à luz daquilo que se faz – forma peculiar da longa tradição que distingue dizer do fazer.
Aqui, contudo, parece que cometo um equívoco dos mais graves. Porque o objeto em questão são histórias de origem de costumes e ritos, o que está muito bem distribuído por quase toda a extensão da história das religiões comparada, seja fundada no teísmo, na fé ou mesmo na filogênese formal das instituições. Comparar estas historias de origem com um procedimento criminal parece abusivo, ainda que feito a partir dos escritos de Hocart, quem flerta com esta analogia sem pudor algum. Parece dizer que as histórias de origem são por fim, histórias de assassinato. Não sei se poderia chegar neste ponto, ainda que o ato historiográfico moderno por excelência, o mesmo ressaltado por Jules Michelet nas primeiras páginas de sua Histoire de la Révolution Française e reiterado à primeira oportunidade, seja a conversação com mortos mediante os meios disponíveis. A mera morte de outrem não permite deduzir seu assassinato da mesma forma que não é possível simplesmente confundir assassinato com origem, não porque o assassinato não seja um excelente ponto de partida para uma história mas porque a origem não precisa advir do fratricídio. Há histórias que começam com o mais surdo golpe de um fiat, um mero acontecimento. A morte é um deles.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.

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FRAZER, James George. The golden bough: the magic art (2/13 vol.). Macmillan. 1990 [1913].
HOCART, Anthony Maurice. Kings and councillors: an essay in the comparative anatomy of human society. University of Chicago Press. Chicago.1970.
HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano. Unesp. São Paulo. (1999[1748]).



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O que vemos em Frazer é que a arte da magia repousa em dois ramos. Um a respeito da prática da magia e outro, sua teoria. Um e outro são pseudo-formas; pseudo-arte e pseudo-ciência, respectivamente. Afinal, por se tratar de uma investigação evolucionista, o selvagem é pseudo-civilizado isto é, contém o civilizado em germe da mesma forma que o civilizado contém o selvagem como ameaça cuja fronteira está no limite da epiderme. Esta configuração toma forma, como bem se sabe, nas variações modernas do ceticismo em grande parte incarnada por David Hume, quem podemos sugerir ser em grande parte um ancestral direto de James Frazer, inclusive na arte de reconhecer que certas coisas acontecem. Trata-se da décima sessão de An Enquiry concerning Human Undesrtanding, que versa sobre os milagres que, antes de mais nada, são coisas que acontecem. Pas d’événement, pas de miracle parce que d’abord, le miracle est une chose à voir.
Hume põe em questão o argumento da presença real do corpo de Cristo no sacramento Cristão, o mesmo corpo que outrora serviu de analogia para a justificação do Estado na cristandade. O problema inicial, o mesmo que traça uma espécie de fundação do empirismo moderno, diz respeito aos relatos fidedignos relativos aos eventos relatados e a instituição da confiança nos testemunhos. Porque nem sempre se trata de má-fé do religioso ou do homem do povo, mas de uma profunda desarticulação com relação aos critérios de descrição e da constância dedicada à observação metódica que discrimina não somente a longa permanência no sítio que localiza a percepção como destaca os termos que guiam a observação in loco. Afinal, os apóstolos não são, sob nenhum ponto de vista, naturalistas.

Assim, a evidência que temos para a veracidade da religião cristã é menor que a evidência para a veracidade de nossos sentidos, porque já não era maior que esta nem mesmo nos primeiros autores de nossa religião, devendo certamente diminuir ao passar deles para seus discípulos, e ninguém pode depositar nos relatos destes tanta confiança no objeto imediato de seus sentidos. Ora, uma evidência mais frágil jamais pode desfazer uma mais forte, e assim, por mais que a doutrina da presença real estivesse claramente revelada na escritura, dar a ela nosso assentimento seria diretamente contrário às regras do raciocínio correto. Ela contradiz os sentidos, apesar de que nem a escritura, nem a tradição nas quais se supõe que esteja sustentada trazem consigo tanta evidência quanto os sentidos, quando consideradas meramente como evidências exteriores, sem que nossos corações dela tomem conhecimento pela operação imediata do Espírito Santo.” (Hume, 1999:143-144)

Temos então um exemplo do combate à superstição a partir de um ponto de partida muito particular, que é o que toma a religião segundo questões postas pela teoria do conhecimento. Ao contrário do que propõe a história do direito e, em parte, o tema da secularização como história política da religião, aqui a religião não aparece como forma forte que degenera nas formas modernas, mas ao contrário a forma em potencia se atualizando em planos perfécteis – a perfectibilidade é, aqui, imanente. A proliferação de milagres em meio à história profana é um problema a ser resolvido. Cabe a ressalva de que, como todo cético, Hume não considera a experiência um meio infalível para promover a orientação no mundo. Isto não impede, contudo, que ele possa elencar uma hierarquia de formas de acesso ao conhecimento do mundo que é, para todos os efeitos, experimental antes de tudo que é, antes de mais nada, potencialmente falha. Contudo, ele toma partido antes da observação do que da observância das leis, o que altera profundamente o que se pode compreender como estrutura da mediação e, com isso, a forma de se relacionar com um acontecimento.

Nem todos os efeitos seguem-se com igual certeza de suas supostas causas. Verifica-se que alguns acontecimentos estiveram constantemente conjugados em todas as épocas e lugares; outros, porém, mostram-se mais variáveis e frustram algumas vezes nossas expectativas, de tal modo que, em nossos raciocínios relativos a questões de fato, coexistem todos os graus imagináveis de confiança, desde a máxima certeza à mais diminuta evidência moral.” (Hume, 1999:145)

Com evidência moral entenda-se, obviamente, àquilo que a vida religiosa foi reduzida. Com grau de evidência, por sua vez, compreende-se o regime de probabilidade em que se exercita o conflito das evidências de forma a estabelecer proporções da repetição da incidência que relaciona causa e efeito produzindo assim camadas estatísticas que pesam em favor de uma ou outra versão. Estatística é, convém lembrar, uma ciência de Estado assim como uma percepção do estado de relações que permite que o investigador não seja refém da autoridade de um testemunho somente e que possa se aplicar na coletânea de relatos. E é o regime de probabilidades que orienta, assim, a investigação daquilo que acontece vindo estabelecer no regime das causalidades, a forma posta em evidência como a de maior regularidade guardando assim a dimensão preciosa das regularidades ocultadas da experiência, seja por pertencerem a ordens infinitesimalmente grandes, infinitesimalmente pequenas ou radicalmente distintas da experiência adquirida, como no caso do príncipe indiano que submetido ao calor dos trópicos não acredita na possibilidade da água congelada, o que é fundamentalmente racional.
Nisso, o milagre. O acontecimento não somente como exceção da regularidade, o que é meramente o inesperado, mas também como a suspensão das leis da natureza. Afinal, quais são as chances de um milagre acontecer de novo? Quais são as probabilidades? A absoluta exceção do milagre é de tal ordem que se torna impossível instituir a partir dele qualquer autoridade com vistas no relato porque como acontecimento ele não faz nada mais do que irradiar como novidade e obrigar ao relato que destaque que, por fim, ele aconteceu e nada além disso. O efeito fundamental sobre aquele que o testemunha é o efeito das maravilhas, das mirabilia, seja porque aconteceram, o que é uma dimensão sempre suspeita dado que depende do relato, seja porque alguém relata vindo a sofrer suficientes distorções a ponto de fazer com que todos os testemunhos sejam por fim dignos de descrédito mostrando que o fantástico e o maravilhoso é antes de mais nada, um erro de escalonamento quando não o mero exercício de tornar a narrativa algo mais interessante e se promover com isso. Assim, o relato que poderia pretender transmitir algo de verdadeiro cede em graus diversos àquilo que é meramente verossímil, ainda que seja muito pouco provável. Preferindo contar uma boa história no lugar de algo que se mostre regular, normal e repetitivo, a narrativa sobre os milagres oferecem uma sorte de ficção que exagera contornos, excessivamente afetiva e nada preocupada no exame do caso. Todos os olhos na qualidade do testemunho, naquilo que efetivamente há para ver. É muito difícil distinguir, assim, a antiguidade fabulosa de James Frazer dos povos bárbaros particularmente suscetíveis em compartilhar histórias milagrosas. E talvez não seja necessário.
Que os dois primeiros volumes de O ramo de ouro sejam uma teoria da magia e que a mesma responde melhor a certas questões de caráter prático do que teórico, isto é claro. No entanto, o papel que a magia desempenha como um regime de semelhanças associadas merece tanta atenção porque é um complexo de associações entre termos assemelhados que parece nos levar a algum lugar em especial: o sacerdócio de Nemi. Entendendo que se trata da sucessão pelo assassinato cujas regras de sucessão Frazer se propõe a reconstituir, nada melhor que estabelecer o paralelo, para todos os efeitos adequado, da história da religião com o exercício pericial da cena de um crime e chamar o exercício de “método comparativo”.
O caso que, com poder consideravelmente menor, as regras de sucessão do sacerdócio Nemi não encontram paralelo na antiguidade clássica e conseguir explica-las efetivamente demanda uma ginástica fenomenal não somente porque não se correspondem com qualquer outro costume antigo como pertencem ao campo de investigação própria da antropologia social moderna. Trata-se de um costume bárbaro cuja racionalidade está obviamente em questão. É preciso confiar, contudo, na continuidade da mente humana que serve como fiador do mecanismo evolutivo que preserva as hipóteses de Frazer cuja história natural permite que de alguma forma seja possível percorrer a história ao contrário, voltando ao ponto senão de origem, àquele que permite borrar a distinção entre selvageria e antiguidade, ambos fonte, imanência e, de alguma forma, sobrevivência.

Accordingly, if we can show that a barbarous custom, like that of the priesthood of Nemi, has existed elsewhere, we can detect the motives which led to its institution; if we can prove that these motives have operated widely, perhaps universally, in human society, producing in varied circumstances a variety of institutions specifically different but generically alike; if we can show, lastly, that these very motives, with some of their derivative institutions, were actually at work in classical antiquity; then we may fairly infer that at a remoter age the same motives gave birth to the priesthood of Nemi. Such an inference, in default of direct evidence as to how the priesthood did actually arise, can never amount demonstration. But will be more or less probable according to the degree of completeness with which it fulfils the conditions I have indicated. The object of this book is, by meeting these conditions, to offer a fairly probable explanation of the priesthood of Nemi.” (Frazer, 1990:10)

O que Frazer sugere fazer é exatamente trabalhar com o que Anthony Maurice Hocart sugeriu ser o domínio das provas circunstanciais em seu Kings and Councillors. É na leitura de Hocart, inclusive, que duas coisas saltam aos olhos. A primeira, sobre o grau de penetração do paradigma indiciário nesta forma de administração da prova de forma que a investigação arqueológica que nos conduz à antiguidade e à selvageria, ao mesmo tempo, se utiliza do aparato próprio da antropologia forense em que são os rastros de alguém que interessam, e que nos conduz ao agente e suas intenções – como o será na figuração ao redor do assassinato do sacerdote de Nime. A segunda diz respeito à necessidade e, ao mesmo tempo, a precariedade do uso artificial de analogias para o exercício comparativo em antropologia que se conduz pela variety of institutions specifically diferente but generically alike.
Hocart abre seu livro dissertando sobre as regras do jogo de seu programa de pesquisa pautado por uma analogia explícita com a investigação pericial criminal. E é exatamente a cena de um crime que lhe serve de figura em que se dispõe do corpo, mas não de testemunhas. O que ele sugere é que as evidências diretas são superestimadas caso não sejam testemunhas do ato e, ainda assim, lembremos, réu confesso não elimina a necessidade de investigação pericial. Não é outra a vitória da biologia ao recusaras evidências diretas e recorrer ao enorme expediente da evidências circunstanciais que faz da evolução das espécies a forma de coletar e acolher a enorme diversidade de fatos sem recorrer à premissa da empiria.

There is one branch of human history which has no direct evidence to build on, and no hope of any. That is comparative philology. No one expects that we shall ever recover documents containing specimens of that lost speech from which Latin, Greek, Sanskrit, English, and such languages, are descended. Writing was not adopted by its users till long after it had split up into languages very distinct from one another. Our earliest Greek inscriptions hardly go back to 1000 B.C., at the very least a millennium after this splitting up. This absence of all direct evidence has proved a blessing in disguise. It has forced linguists to drop the wasteful an ineffective frontal attack, to which archaeologists are addicted, for a more decisive and economical flanking movement. They have been driven to the comparative method.” (Hocart, 1970:15)

O método comparativo persegue divergências constitutivas da história de seu objeto exatamente porque os rastros que o mesmo deixa fazem com que ele divirja da primeira impressão coletada. O caminho que leva até o original – e o tema se torna profundamente atrelado à questão da mímesis – visa eliminar as diferenças com vistas naquilo que em um primeiro momento é a regularidade das semelhanças que permitem deduzir, a partir disso, a forma original que desencadeou todas as variações morfológicas. É a comparação entre formas que oferecem uma semiótica particular, aguda e, mais uma vez, à revelia do contexto. É a intensidade da analogia que faz com que o grau de reincidência de uma forma na outra é que indica haver algo para além da superfície, como no caso-teste em que Agni é comparado com Hermes (Hocart, 1970:17-19) no qual são tantas as similaridades entre os mitos narrados que deve haver algo para além da mera aparência – e é aí que se trata de um exercício de anatomia comparada, e que as narrativas pertencem a um mesmo gênero porque sua fábula cumpre quase a mesma narrativa. Mais uma vez, generically alike que tem, por fim, uma dimensão estrutural. O acontecimento é investigado com vistas em sua estrutura entendida como suas condições de possibilidade, não naquilo ou quem ele representa. Todos os abusos da história conjectural partem daí. Seus méritos, idem. Um deles é de não ter aberto mão dos acontecimentos em favor de seus representantes.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.

KAFKA, Franz. Um médico rural. Brasiliense. São Paulo. 1993. (trad. Modesto Carone)
TAUSSIG, Michael. Mimesis and alterity: a particular history of the senses. Routledge. Nova York. 1993.



2- Esta forma de indistinção relativa e parcial serve de motor para uma longa exposição daquilo que Frazer chama de arte da mágica, a mesma exposição que vem a servir como documento de base para o Esboço de uma teoria da magia de Mauss e Hubert. Um meio que permite com que civilização e selvageria sejam postos num plano de indistinção e cujas ruínas permitem que o antropólogo possa se transportar até esta mesma zona de indistinção relativa serve como ambiente privilegiado da teoria da mimesis de Michael Taussig (1993) que não obstante ser uma história particular dos sentidos, e não uma história geral, parte da premissa de que esta mesma história é antes de tudo atrelado às formas de corporificação – de presença, o meio de relação.
As histórias que Taussig narra, e no final de contas se trata de uma colagem algo dadá de narrativas em que o tema da semelhança toma forma replicando de alguma forma o método de retirar do contexto e fazer valer a relação por algum meio em que seja possível fazer viger a semelhança. É uma arte da magia que, contudo, trata Frazer como remanescente de outra coisa cujas ruínas, na verdade traços no papel, permitem outra forma de aceder ao selvagem, tão ambíguo quanto o sacerdócio praticado em Nemi. Selvageria delicada de uma história particular que não cessa de produzir transportes entre o selvagem e o civilizado que, numa variação da história natural humana faz da animalidade uma forma de narrá-la. Afinal, selvagem mesmo que vitoriano, humano. O chimpanzé de Um relatório à academia, de Franz Kafka é talvez o símbolo perfeito para este outro passo rumo a uma teoria da magia que não abre mão da história natural, ainda que seja de um tipo particular – em primeira pessoa, o chimpanzé já não é mais macaco mas ainda se lembra que, de alguma forma, o foi. O macaco se foi para que pudesse, todavia, ser lembrado nessa variação individuada da seleção natural em que o que resta como memória é, sugestivamente, o tendão de Aquiles.

Falando francamente – por mais que eu goste de escolher imagens para estas coisas – falando francamente, sua origem de macaco, meus senhores, até onde tenham atrás de si algo dessa natureza, não pode estar tão distante dos senhores como a minha está diante de mim. Mas ela faz cócegas no calcanhar de qualquer um que caminhe sobre a terra – do pequeno chimpanzé ao grande Aquiles.” (Kafka, 1991:58)

Esta não é uma história natural avant la lettre. E como epígrafe que é para Mimesis and alterity, não é exatamente o bucolismo de Virgílio. Contudo, parece nos transportar para o mesmo lugar, caso consideremos que lugar aqui não é meramente paisagem. É um meio.

O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.


FRAZER, James George. The golden bough: the magic art (2/13 vol.). Macmillan.1990 [1913].
 
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Contraponto/Museu de Arte do Rio. Rio de Janeiro. 2013


The Golden Bough, J. M. W. Turner, 1834.
1- Talvez eu esteja fazendo arranjos que tirem as coisas do contexto e, mesmo, não estou seguro de que o contexto vá garantir alguma coisa que não seja uma autoridade que o contexto não teria e, ainda assim, transferiria para aquilo que apresento como material de leitura. Por vezes parece ser necessário ser somente uma alusão ao entorno e seus elementos constitutivos determinantes, o tipo de tirania que a noção de causa aplica às disciplinas históricas. Não que a causa não exista, não que não faça sentido, mas porque provoca um excesso de sentido quando o que se busca é simplesmente apresentar um acontecimento. E quanto a isso, o contexto diz muito pouco, ainda que permita com que as hipóteses de uma determinada pesquisa não sejam generalizadas. Aliás, generalizar é tirar de contexto. Traçar analogias, igualmente. Tirar do contexto demanda, obviamente, algum tipo de transporte que, em outra época era outro nome para metáfora. Metáfora é uma forma de tirar de contexto que, para tal, se mobiliza por saltos de semelhança. E este é, de certa forma o expediente da magia e, ao mesmo tempo, da antropologia de James George Frazer. Metodologia e objeto se confundem no Ramo de Ouro, na proliferação selvagem de receitas de magia cuja fonte cobre toda bibliografia possível buscando compreender, em seus primeiros dois volumes, um evento particular: as regras de sucessão de sacerdócio no templo de Diana em Nemi.
Frazer retoma a relação própria de tantos historiadores modernos que, desde Volney vêem nas ruínas uma imagem do passado fazendo da sobrevivência das formas, rotas, uma espécie de sobrevivência – quando não uma espécie sobrevivente (Didi-Huberman, 2013).  Nemi, portanto, parece ter mantido, em algum sentido, a imagem do que a Itália fora nos dias de outrora quando a terra era habitada de forma esparsa, povoada com tribos de caçadores selvagens e pastores meditabundos (Frazer, 1990:08) que permitem induzir serem traços caracteristicamente italianos. O quadro de J. M. W. Turner homônimo ao livro serve como paisagem que permite reconstituir a cena da Itália ancestral, o mesmo Turner que sentia-se aliviado por ter vivido sua arte antes do advento e popularização da fotografia. Turner, à sua forma, era testemunha de um Itália ancestral que não era sua, nem por nacionalidade e tampouco por qualquer testemunho em primeiro grau. A sua Itália pagã é fruto das ruínas, as mesmas de Frazer que, em linhas gerais, a reconstitui por traços. Há muito tempo passado, há um intervalo gigantesco entre os dois momentos – sugerindo, obviamente, que haja algo que possa ser chamado de Itália no tempo de Ovídio que não seja, de alguma forma, um fantasma.
Este fantasma  verdeja em loureiros, oliveiras e cipreste; limoeiros e laranjais que compõe a cena bucólica tão apropriada para uma cena retirada de versos como os de Lucano, Ovídio e Virgílio – para citar somente aqueles vertidos para a língua portuguesa.

However, it was not merely in its natural surroundings that this ancient shrine of the sylvan goddess continued to be a type or miniature of the past. Down to the decline of Rome a custom was observed there which seems to transport us at once from civilisation to savagery. In the sacred grove there grew a certain tree round which at any time of the day, and probably far into the night, a grim figure might be seen to prowl. In his hand he carried a drawn sword, and he kept peering warily about him as if at every instant he expected to be set upon by an enemy. He was a priest and a murderer; and the man for whom he looked was sooner or later to murder him and hold the priesthood in his stead. Such was the rule of the sanctuary. A candidate for the priesthood could only succeed to office by slaying the priest, and having slain him, he retained office till he was himself slain by a stronger or a craftier.” (Frazer, op.cit.:09)

Vemos que a temática do transporte está presente. E, como é próprio da imaginação vitoriana, o transporte nos leva para a selvageria e num movimento quase que imperceptível colige civilização e selvageria na mesma cena. A mesma Itália antiga que buscamos no templo de Diana em Nemi, cheia de bucolismo e beleza, é a que oferece esta forma de alternância selvagem de poder no exercício do sacerdócio da mesma Diana. O mais forte ou hábil deve perseverar numa variação quase que darwinista do sacer ocium; selvageria e sacerdócio em um meio que borra sua distinção. E no entanto, neste mesmo jogo, é quem sobrevive aquele que exerce sua função e leva adiante as regras de sucessão só para que venha a ser assassinado logo mais. Caso não morra, morre a tradição com ele.