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quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Who am I, Jackie Chan? IV - fazendo graça com o que não deve


ASAD, Talal. Genealogies of religion: discipline and reasons of power in Christianity
and Islam. Johns Hopkins Press. Baltimore and London. 1993.
GEERTZ, Clifford. The interpretation of cultures. Basic Books. Nova York.
1973.

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            A discussão a respeito da noção de agência aplicada ao problema da autoria, ou da propriedade dos efeitos que em metafísica pode ser condicionado ao díptico causa eficiente/design inteligente assume outras proporções quando a discussão assume sua forma propriamente jurisdicional. Dito de outra forma, quando o que está sob observação a mais escrupulosa é exatamente a determinação do poder soberano, por um lado e de outro, a constituição do ato e do agente criminoso que tomam à forma de um amplexo os extremos que ativam a identificação codificada de agentes obsessores, por um lado que recheiam a bibliografia produzida por Michel de Certeau, Robert Mandrou, Julio Caro Baroja, Keith Thomas e Sarah Ferber. De outro lado delineia a forma do monopólio da organização dos componentes psíquicos pela clínica e pelo direito cuja historiografia de Michel Foucault, Marcel Gauchet, Ruth Harris, Jacques Donzelot, Christian Phéline, Robert Darmon e os ensaios de Philipp Rieff e O Anti-Édipo de Deleuze e Guattari descreveram à exaustão. Dito de outra forma, instituem de poder os agentes que podem, os que não podem e os regimes de existência algo explorados pela arqueologia foucaultiana e que tem um papel de destaque na composição da modernidade histórica narrada a partir da linha da secularização. São operadores de determinação ulterior das figuras presentes nos limites e no além da jurisdição. É aí que a tensão entre Geertz e Asad atinge seu ápice e, penso eu, sua maior relevância exatamente porque via Geertz nada parece existir com maior grau de realidade dado que restrito ao terreno do simbólico – que é o que existe no lugar de outra coisa numa forma de existência derivada próprias à definição mais agressiva de semiótica da comunicação humana, e especificamente humana como ele faz questão de enfatizar no ensaio sobre o impacto de conceito de cultura no conceito de homem – segundo capítulo de The Interpretation of Culture.
            De outra forma, à maneira de Asad, o universo do discurso sempre sugere franjas e bordas, ou um mais além da linguagem que define o empreendimento humano de forma abrangente. Da antropologia também, como crítica e produtora de poder. A comunicação humana reduzida a si-mesma parece ser condicionada por um projeto de paz perpétua que acompanha esta forma mitigada de religião natural desde o iluminismo escocês de David Hume, cuja concretude ou sua evidente falta forja a principal razão de sua recusa e, no pacote, a recusa da ética implicada na condução até o ponto em questão.
            O itinerário programado por Asad não é especificamente uma agenda contra-Geertz propriamente dita, mas contra aquilo que o projeto de Geertz ironicamente representa dado que demasiado dedicado na reprodução do confinamento e da defesa de uma religião confinada (Asad, 1993:28), isto é, de uma atividade simbólica de agência tutelada, o que é uma das especialidades do Estado moderno. Obviamente que esta é uma forma grosseira de apresentar a antropologia de Clifford Geertz, salvo se retomarmos a frase. Disse que Asad se indispõe contra aquilo que a antropologia de Geertz representa, isto é, contrária à versão cômica dos universais humanos que na forma de antropologia são registrados em livros, filmes e museus e que, uma vez sumariados compõem um catálogo de traduções  semióticas de textos culturais. Rigorosamente a humanidade emerge como pura mediação com força de agência, é o objeto em lugar de outro por excelência numa diluição homeopática da eucaristia. Visivelmente é a contraproposta liberal para as instituições medievais que eram, antes de mais nada, cristianismo público e não privado. E é esta alteração que serve de evidência quanto aos limites da definição de religião via Geertz:

            Let us, therefore, reduce our paradigm to a definition, for, although it is notorious that definitions establish nothing, in themselves they do, If they are carefully enough constructed, provide a useful orientation, or reorientation, of thought, such that an extended unpacking of them can be an effective way of developing and controlling a novel line of inquiry. They have useful virtue of explicitness: they commit themselves in a way discursive prose, which is this field especially, is always liable to substitute rhetoric for argument, does not. Without further ado, then, a religion is:

            (1) a system of symbols which acts to (2) establish powerful, pervasive, and long-lasting moods and motivations in men by (3) formulating conception of a general order of existence and (4) clothing these conceptions with such an aura of factuality that (5) the moods and motivations seen uniquely realistic.

            a system of symbols which acts to…”(Geertz, 1973:90-91)

            O interessante é que Asad cita o elenco em tópicos sem mostrar ao seu leitor o que é a definição de “definição” para Geertz como se os tópicos bastassem como representativa de um universalismo qualquer sem se aproximar da postura de Geertz como autor ou então, mais condizente com a crítica em questão, como autoridade. Ao fazê-lo parece, contudo, perder o mais importante pois é quando Geertz se mostra como uma espécie de comediógrafo liberal à forma de Harold Bloom (Abaixo às verdades sagradas) ou Richard Rorty (Contingência, ironia e solidariedade), exímios problematizadores da definição de “definição”. Afinal, se um símbolo é um objeto que se põe no lugar de outro, uma definição se presta ao papel de premissa de um ato de comunicação cuja o ápice performático é o da piada, da comédia. E deixar claras as premissas é uma postura muito mais importante quanto a universalidade do conceito de religião proposto do que a definição ela mesma. Até porque o religioso e o simbólico coincidem nos termos da hermenêutica de Geertz, e Asad sabe disso. A esta altura, ainda que motivações estejam fora da alçada do presente comentário, é mais importante descobrir o que Asad que de Geertz mais do que o que Geertz de fato produziu. E o que Asad demanda é disciplina.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Who am I, Jackie Chan? III - o cômico em comum e o liberal engraçadinho

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3-

            However, to those who have been taught to regard essentialism as the gravest of intellectual sins it is necessary to explain that certain things are essential to that project – as indeed there are to “India” as a nation-state. To say this is not equivalent to say that the project (or “India”)  can never be changed; it is to say that each historical phenomenon is determined by the way it is constituted, that some of its constitutive elements are essential to its historical identity and some are not. It is like saying that the constitutive rules of a game can never be subverted or changed; it is merely to point what determines its essential historical identity, to imply that certain changes (though not others) will mean that the game is no longer the same game.”(Asad, 1993:18).

            West and the rest. É esta a clivagem para a qual Asad mais se dedica na contenda com Geertz. É o ponto e que concentra sua agressão exatamente por ser esta a fronteira criada pelo exercício da modernidade vindo a exprimir termos particulares desta relação, em particular como se constituem os modernos o resto do mundo como o exercício de seu negativo; os limites da extensão da contemporaneidade e o atraso evolutivo atualizado nas formas mais variadas; o privilégio do tempo futuro da gramática expressiva da noção de progresso. Ainda que completamente envolvida com a cisão os temas da pesquisa antropológica moderna a obriga a se aproximar demasiadamente da relação e seus protagonistas, esta gente que não produz e que não tem nada a acrescentar ao projeto da modernidade. Carrega consigo o fardo da inutilidade política, filosófica, teórica porque, enfim, toma a estranha decisão algo epistemológica de andar com as pessoas erradas e, de alguma forma, participar do seu jogo.

            Seria este o exercício proposto por Geertz, o de estudar na aldeia?

            Lembrando uma querela que persiste para além dos anos 1980, os temos de Writing Culture e a predicação da cultura via George Marcus e James Clifford vale retomar um lembrete. Antes de mais nada, o antropólogo é um autor. A antropologia, por determinação da condição humana ou mesmo por inspiração na Ciência Nova, é um artifício e a cultura um complexo ficcional. Produzir as thick descriptions  defendidas por Clifford Geertz é, desde o começo a definição de uma agenda de pesquisa que Asad problematiza. A antropologia como um código semiótico que, à forma dos demais, constituem a base da orientação humana como uma coisa feita. É ficção. A teoria da ação parte de um sujeito emancipado que, em Geertz não vai além de uma pragmática engaiolada ou, segundo a sua remissão à obra de Max Weber, suspensa numa teia de significados que é, por fim, a cultura. Ora, se a agência implica na extensão do ato e sua posse, o que pode um sujeito que só faz ficção? Seguramente, não muito mais do que antropologia, o que é algo como uma redução ao cômico:

            Anthropologists have not always been aware as they might be of this fact: that although culture exists in the trading post, the will fort, or the sheep run, anthropology exists in the book, the article, the lecture, the museum display, or, sometimes nowadays, in the film. To become aware of it is to realize that the line between mode of representation and substantive content is an undrawable in cultural analysis as it is in painting; and the fact in turn seems to threaten the objective status of anthropological knowledge by suggesting that its source is not social reality but scholarly artifice.” (Geertz, 1973:16)

            A redução ao cômico é um aspecto menos idiota do que parece, ou é perfeitamente idiota num certo sentido, digo, no sentido certo. Abre alas para a agência de um fator decisivo do esforço etnográfico de um certo culturalismo que recusa a narcose estética oferecida pelo ópio dos grandes modelos teóricos do tipo “the world according to me”. Franz Boas, em 1887 publica um elogio à geografia em favor de sua atividade eminentemente descritiva. Recuperar aqui este elogio por via de um desvio analítico-pragmático à Gilbert Ryle faz com que, de certa forma Geertz se alinhe com uma determinada questão ética imposta ao etnógrafo. Refunda a relação com ela operando no regime em que a mesma determinação das cores que da ótica passa pelos olhos de quem vê constitui o espaço de definição em que a antropologia e a condução da reflexão é feita junto aos amigos inúteis em um ambiente artificial, dado que ficcional. O caso é que cultura meramente ficcional provoca um pequeno distúrbio acerca da noção de alteridade, especialmente quando os amigos inúteis afirmam na primeira pessoa do plural que “não somos agentes da história, nem mesmo da nossa e o que fazemos não é ficção” recusando, por exemplo, a simetria por vezes perversa, por vezes redentora entre antropologia e conhecimento local.

Who am I, Jackie Chan? - II. Sobre a história subalterna.

 
2-

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ASAD, Talal. Genealogies of religion: discipline and reasons of power in Christianity
and Islam. Johns Hopkins Press. Baltimore and London. 1993.
GEERTZ, Clifford. The interpretation of cultures. Basic Books. Nova York.
1973.

            The essence of the principle of self-constitution is “consciousness”. That is, a metaphysical concept of consciousness is essential for explaining how the many fragments come to be construed as parts of single-identifying subjects. Yet if we set aside the Hegelian concept of consciousness (the theological principal starting from sense-certainty and culminating in Reason) and the Kantian concept of the transcendental subject, which Hegel rewrote as consciousness, it will have to be admitted that consciousness in the everyday psychological sense (awareness, intent, and the giving of meaning to experiences) is inadequate to account for agency. One does not have to subscribe to full-blown Freudianism to see that instinctive reaction, the docile body, and the unconscious work, in their different ways, more pervasively and continuously than consciousness does. This is part of the reason why agent’s act is more (and less) than her consciousness of it.”(Asad, 1993, 15)

            Que seja difícil acompanhar o debate a respeito das ações, especialmente porque com relação ao mesmo se impõe a pauta da responsabilidade, isto é, a partir de quando o ato efetivamente pertence exclusivamente àquele que o inicia? Quem pergunta é Jacques Ellul elegera como fundamental acerca da carência de responsabilidade em um sistema propriamente téchnicien – e, talvez, repetindo Hans Jonas -, o ato consciente e de posse do autor como moto contínuo da história não seja suficiente para compatibilizar os efeitos com as forças do movimento. Não necessariamente “a estrutura das ações possíveis que são incluídas e excluídas são, portanto independentes da consciência dos atores” (op.cit.:15-16). Ser agente da própria história pode não ser necessariamente o que está em questão. Sujeito e agente não estão implicados um no outro, não são planos necessariamente coincidentes. Qualquer sugestão relativa ao grau de implicação deve, antes de mais nada, conseguir identificar o que é que está em jogo.
            A retórica dos modelos de antropologia que Asad questiona, e que culminam no ataque a Clifford Geertz está diretamente relacionado ao tema da modernização dos sentidos que não parece atentar para a estrutura de duplo vínculo. Dito de outra forma, da modernização da Índia, por exemplo, pouco espaço há para imaginar sobre a indianização da modernidade ou mesmo uma leitura que reflita sobre a indiferença possível com relação ao seu advento – o que não implica em negar o advento, mas permitir que alguém lhe seja indiferente. Atento a este tipo de desdobramento que tantos outros esforços de imaginação se fazem, como a conversão indígena feita por jesuítas nas Américas segundo Michel de Certeau, que pergunta: convertidos em quê? Coisa que ele, jesuíta, nunca soube responder. É o mesmo tipo de disjunção potencial expressa na biografia de Victor Turner, convertido do comunismo ao catolicismo  pelos ndembu, valendo lembrar que até os anos 1970 não eram sequer vagamente cristãos – povo bantu. Converter sem saber no quê; converter sem querer; conversão à forma da diversão que abre espaço para uma história subalterna, termo que produz arrepios na sensibilidade protagonista do exercício autoral.
            Uma história subalterna ainda que não como regra, mas como um outro modo à parte do epicentro narrativo da história moderna que sugestivamente conta com o debate de Said acerca do orientalismo como uma de suas frentes. Isto se dá simplesmente porque a história a ser contada não necessariamente pode ser contada por si mesmo, ou que o narrador seja sequer uma personagem relevante, salvo se por redução sociológica. Seguramente que isto pode produzir  efeitos indesejáveis de interpretação mas, até o presente momento esta parece ser uma consequência inevitável. Mas no conflito das interpretações e na tensão entre as formas de justificação que não produzem acordo (ou contrato social), o que encontramos nas reflexões de Asad é exatamente o ponto de desacordo onde a história diverge exatamente como história por não contar com o mesmo enredo, gramática, personagens, predicação, autores, trama e fábula; vindo a produzir diferenças cujo encontro forçado como fora o colonial assume dimensões trágicas ainda que na apreensão na forma da crônica pareça assumir-se cômica. É como naquilo que é a guerra em que cada Cruzada conta com seu exército de Brancaleone que é importante compreender a medida das diferenças, isto é, como elas se medem a partir das imposições do contato e das requisições produzidas pelas diferenças entre si definindo o horizonte limite da relação e, também, da convergência narrativa.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Who am I, Jackie Chan?



ASAD, Talal. Genealogies of religion: discipline and reasons of power in Christianity and Islam. Johns Hopkins Press. Baltimore and London. 1993.

1-
            What worries me is that the arguments exposed by this “anthropological chorus” (now joined by a chorus of historians) are not as clear as they might be. Thus, when Sahlins protests that local peoples are not “passive objects of their own history”, it should be evident that this is not equivalent to claiming that they are its “authors”. The sense of author is ambiguous as between the person who produces a narrative and the person who authorizes particular powers, including the right to produce certain kinds of narrative. The two are clearly connected, but there is an obvious sense in which the author a biography is different from the author of the life that is its object – even if it is true that as an individual (as an “active subject”) , that person is not entirely the author of his own life. Indeed, since everyone is in some degree or other an object for other people, as well as an object of others’ narratives, no one is ever entirely the author of her life. People are never only active agents and subjects in their own history. The interesting question in each case is: In what degree, and in what way, are they agents or patients?”(1993:04)

            Eu não sou muito paciente, o que de forma alguma responde à questão de Asad – até porquê não sê-lo por predileção não implica que não tenha que exercitar a mesma paciência que não considero como constituinte de meus impulsos mais característicos. O exercício da paciência se desdobra da desconfiança que nutro de quaisquer debates realizados em termos demasiado marcados e estabelecidos. Vem a sensação de que alguma coisa não foi dita e que, mais do que qualquer outra coisa, algum mal entendido foi posto de lado. O tamanho deste mal entendido me parece ser sempre proporcional à eminência parda que estabelece os termos do debate. Muito do que Talal Asad escreve em seu Genealogies of Religion , livro que considero muito bem-vindo ainda que tenha chegado muito antes de mim à cena antropológica, tem como alvo uma certa dimensão do empreendimento da disciplina. Nada estreita, esta dimensão que lhe serve de alvo é nada menos do que o mundo – não confundir com o planeta, assim como “todo mundo” não é sinônimo de “toda a população humana”, nem por força do hábito. Seja tomado como ordem capitalista mundial, sistema da modernidade-mundo, ecossistema ou ministério da Providência o mundo é o que há, o que é problemático desde que seja apontado, como se faz em uma etnografia, alguém lá fazendo aquilo. Ao considerar o divórcio deste com o outro mundo, seja ele qual for, é o corpo animado da apreensão dos dados dos sentidos a base que acolhe as diversas manifestações da sociologia como manifestação de uma noção de ordem suficiente – ainda que frequentemente imaginada como algo diferente de uma ordem necessária, recusa de onde se desdobram algumas dimensões da dialética, especialmente a parcela da imaginação revolucionária precipitada no século XIX europeu na qual tudo parecia passivo de ser melhorado, especialmente a natureza, com ênfase na natureza humana perféctil. No mundo seguramente , e tentado por ele ou de outra forma, intuído a partir da experiência que permite que se trabalhe com um denominador comum. Comum? Asad diz que não.
            O livro parte de uma acusação que recai nas costas de Clifford Geertz, demasiado liberal e, portanto, profundamente protestante (na verdade, moderno) no seu esforço de compreensão dos conceitos de “religião”, simbolismo, cultura e mesmo cérebro e evolução humanos. Dito de outra forma ele soa algo kantiano para um programa pragmático de pesquisa – programa Asad endossa sem fazer alarde. A crítica que ainda não apresentei, vai nesta direção e, ainda que pense não ser descabida, desconfio. E desconfio por não estar certo sobre o que está em jogo e porque é preciso ir além compreendendo o que é que Asad pretende elucidar, quais eram os objetivos de Geertz visando aprender com o debate (na verdade, a acusação) algo mais do que a ladainha lastimável a respeito dos autores superados, frequentemente convertidos à condição selvagem de idiotas.

            Desde a introdução Asad pergunta quem é o agente da ação. Ora, se pensarmos na mesma matriz kantiana que dá forma a uma teoria da ação social, quem age é sempre o sujeito compreendido pela predicação que reconhece e determinar o evento em questão, os modos de ação e de causalidade. É por questões metodológicas que Max Weber recusaria a filosofia à moda de Tabacaria de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos que, no silêncio das maquinações de um cérebro solipsista ousou pensar filosofias que nenhum Kant ousara[1]. Se não opera como forma socialmente orientada da comunicação – isto é, orientada pela organização social do trabalho e suas formas políticas -, a intimidade da convicção não interessa. Não à sociologia que visa conhecer o conhecimento, mesmo aquele que reside no que é socialmente implícito.
            Ao mesmo tempo, esta mesma sociologia está atrelada à soberania do calvinismo que soube contestar a eucaristia traduzindo o sacramento, não mais por via da transubstancialização mas pela forma simbólica da boa ficção de articulação abstrata. É como se fosse o corpo de Cristo, então, sem sê-lo todavia. Chegamos ao simbólico que constrói também o tipo de reduto que, radicalizado à insignificância do sentido, vai ser chamado de prison house of language por Fredric Jameson ou, ainda mais dramático e poderoso, como gaiola de ferro por Max Weber. A linguagem é então o que comunica, antes de mais nada a condição humana ao comunicar, antes de mais nada a humanidade cuja constituição trágica (ou absurda, via Camus; O mito de Sísifo) faz com que nos desinteressemos pela hipótese de um caranguejo resolver equações  de segundo grau (Miguel de Unamuno; O sentimento trágico da vida). O inexprimível e o caranguejo seriam algo equivalentes. Animália et idiotia.
            A noção de agência contraposta à de ação permite, na verdade, demanda que se faça uma relação com o que não se compreende imediatamente como simbólico de forma a reconhecer que das ações humanas o autor da mesma em sua dimensão ulterior – o mundo – pode não ser humano. O agente do ator pode não ser ele, ou não exatamente dissociando, de um ponto de vista que escapa do normativo à forma de uma disjunção potencial. É esta mesma que permite o tipo de investigação de Ian Hacking sobre personalidades múltiplas, o que em sua análise pode ser uma coletânea de várias pessoas que são menos do que uma, cada uma. Ser menos do que um inteiro pode ser o suficiente para produzir agência (Rewriting the soul).
            A tensão aumenta quando o que está em questão é o que, ou quem está lá. “Lá”, naquele local retoma os termos de Geertz, a saber, sobre o conhecimento local (local knowledge) – o que retoma, à primeira vista, a matriz kantiana na qual o exercício crítico que circunscreve sua investigação à esfera da predicação é também um exercício relativo à elaboração de uma teoria do conhecimento que promove hermenêutica de segundo grau (Hans Ulrich-Gumbrecht; A modernização dos sentidos). Esta premissa é questionada nos termos da abertura fornecida pelo programa de pesquisa investido de agência. Mas a noção de “local” permite que se possa compreender melhor a diferença de projetos e a diferença que a diferença produz com relação à tensão entre Asad e Geertz. Isto porque “conhecimento sobre povos locais não é ele mesmo o conhecimento local” (Asad, 1993:09). Ao mesmo tempo é de Geertz a afirmação de que o objetivo da pesquisa de campo não é estudar a aldeia mas estudar na aldeia (frase redigida em ensaio publicado no intervalo de tempo entre os livros The interpretation of cultures e Available light que, lamentavelmente, esqueci qual). Esta disjunção me leva a perguntar sobre quem é esta personagem que Asad monta e até qual ponto ela tem identidade com Geertz em primeira pessoa, autor de seu próprio texto.
           


[1] “(...)Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.(...)

quinta-feira, 21 de março de 2013

Notas do Subterrâneo: faiblesse de croire, São João da Cruz e Diego de Jesus


L’idiote exemplaire selon la méthode exemplaire : Saint Jean de la Croix y el doctorcito.

 DE CERTEAU, Michel. La fable mystique, I – XVIe-XVIIe siècle. Gallimard. Paris.

1983.
________________________ La faiblesse de croire. Seuil. Paris. 1985.
KOSELLECK,  Reinhart. L’experience de l’histoire. Seuil. Paris. 1997.



           A trajetória de São João da Cruz, carmelita, deve começar por Diego de Jesus (1520-1671). Não porque não tenha São João direito à existência própria, mas por ser Diego de Jesus aquele que inicia o ciclo de São João com relação à publicação de sua obra, aquilo que se oferece como edição da obra. Das contribuições promovidas pela historiografia francesa, em especial aquela que trabalha no compasso, e por vezes no contraponto da história das mentalidades, uma das contribuições decisivas está na forma operada de contribuição para a crítica das fontes. Não necessariamente visando constituir uma verdade positiva daquilo que de fato um determinado documento diz, mas na composição de alguns determinantes sociológicos que fazem com que um determinado documento não somente venha à luz, mas entre em circulação. Nisso, uma das contribuições de trabalhos não somente como os de Michel de Certeau, mas também de Roger Chartier, Pierre Bourdieu, Jean Hébrard, Dominique Julia, Jacques Revel e Jean-Yves Mollier; mas não somente, cabendo também acrescentar nomes como o de Robert Darnton, Robert Mandrou, Michel Vovelle, Paul Zumthor e Carlo Ginzburg está em recompor as relações que precipitam em um documento significativo. A discussão de Chartier sobre a composição da cena da autoria nos meandros da publicação de um volume impresso entre os séculos XVI e XVII, por exemplo, são sugestivos quanto ao problema não só da edição, mas quanto a fundamentação da figura autoral. Isto porque, para fins de fiscalização do negócio do livro a identidade autoral se encontrava, antes de mais nada, naquele que hoje se encontra na figura do Publisher, isto é, do editor. Aquele que acerta os detalhes finais e corta o texto vindo a produzir uma espécie de arte-final, ainda que não assine o conteúdo, é o seu autor. No final de contas, a autoria não designa somente uma divisão do trabalho se não encontramos aonde a autoria está.
            No caso, a sucessão das edições do corpus de São João da Cruz faz com que o mesmo seja, no final de contas, um produto do controle da palavra mística quanto a sua apresentação, seja dentro ou fora da igreja. São João é, por fim, o texto estabelecido. As partículas da obra mística de São João são publicadas a partir de 1618, 27 anos após a morte do santo. Recebe uma tradução francesa de René Gaultier publicada em 1622, uma versão editada em Roma em 1627, cuja tradução italiana servirá de base para a primeira publicação em espanhol em Madrid, já em 1630. A temática da originalidade poética do canto místico – no caso, Cántico – não é a questão. É o fato de ter cumprido uma determinada circulação, de ter passado por um conjunto de mãos que intervém que o texto de São João servirá como figura, não de outra pessoa mas de São João, ele mesmo. As notas de Diego de Jesus acompanham todas estas edições dos Cánticos da mesma forma que o farão as notas de Luis de Léon com os Libros de la madre Teresa de Jesús, em 1588. Difícil para mim não imaginar aqui algo em redor da divagação de James Hillis sobre a figura do hóspede-parasita, uma das figurações do fantasma. Mas é, seguramente, leviano sequer sugerir a analogia que, ainda que leviana, me agrada.
            A aparição de Luis de Léon não é acidental. Isto porque as obras de São João da Cruz e sua circulação atritam exatamente com as de Teresa de Jesus quanto à forma da revelação do conteúdo místico. Respectivamente entram em choque a paixão apostólica e a contemplação cativante, colocando a paixão de São João da Cruz mais próximo do campo da Reforma do que na Contra-Reforma, particularmente por causa da figuração dos excessos da fé compreendidos como excesso doutrinal em contraposição à autonomia institucional, tema que pauta grande parte da querela do jansenismo contra os jesuítas.
            A primeira edição dos escritos de São João da Cruz tem ela mesma uma história longa que começa a ser tramada ainda em 1602 quando Thomas de Jesus recebe a autorização para definir o corpo a ser editado. Em 1603 Doria, teresiano, recusa a incorporação do Cántico no corpo da obra. Adiante, o padre Alonso de Jesus se torna o geral da ordem, cancelando todos os trabalhos ao redor dos escritos de São João da Cruz, em 1607, o que só fio retomado em 1613 já por Diego de Jesus. É expresso por Diego o desejo de, na edição, realizar uma aproximação com os originais então demasiado afastados e devidamente esquartejados pela doutrina diretora. A aproximação será parcial, não somente pelo conteúdo místico, mas pela organização da mística, que vai muito além do mero controle eclesiástico, vale dizer. Isso porque parte do trabalho de Diego de Jesus é redigir algo que tornará a escrita mística legível, elegendo um código viável como meio de decodificação daquilo que, de outra forma, é inacessível e que deve seguir sendo assim. O método e uma redação caucionária, e não terapêutica. Ao fazê-lo, deve constituir uma província antes inexistente e determinar os elementos da linguagem mística, a mesma com relação a qual deve produzir a decodificação, ainda que parcial de tudo aquilo que é outra coisa e que, como tal receberá um outro nome desde o começo, nos artigos de fé e mística (op.cit.: 179-183).

            “Une coupure circonscrit le discours qui se construit, et le sépare d’un monde déjà épelé. La nomination invente une terre nouvelle, à la manière des récits de voyage ou mieux, comme le fit Adam une première fois : « Il donna des noms (ses noms) à toutes choses – Appellavitque Adam nominnibus suis cuncta… ». Au commencement de la langue mystique, il y a des mots d’auteur qui répètent le geste adamique. » (op.cit. :185)

            Aquele que estabelece a ciência da mística volta à mesma situação de Michel de Certeau que, ao escrever La Fable Mystique diz escrever um livro impossível. Mas, como disse a respeito do mesmo de Certeau, o exercício erudito não está em recuperar o passado existente na figura – como o seria num exercício de história positiva - , mas de deixar o mesmo passado sair da sala secreta aonde ele se esconde vindo a participar daquilo que, até que se prove o contrário, ele mesmo conspirara em favor – o presente do enunciado cuja marca maior é o de um passado que não pode falar por si mesmo. E aos poucos cercamos o que pode ser o idiota, não sem antes nos reservarmos ao direito de algumas surpresas importantes. Por exemplo: saberia o idiota fingir a idiotia que lhe é própria? Sabe ele fingir a dor que deveras sente?
            O que importa saber aqui é que a mística e o místico, um não pode mais ser sem o outro. O autor se perde como fonte autônoma e vindo a ser a forma pela qual pode circular, revigorando sutilmente a noção de dádiva que se deixa levar pelo momento[1]. Não que não seja possível distinguir Diego de Jesus e São João da Cruz, um do outro. Na verdade, todo o esforço da mística está em distinguir o douto do místico, atentando para uma zona limítrofe sempre difícil de policiar, que é a que determina a transformação de uma heterodoxia em heresia. Ao invés de uma teologia positiva que fará recurso dos estudos da patrística e a ordem da igreja primitiva – exercício que caracteriza a precipitação do jansenismo -, é uma teologia negativa que se precipita dos trabalhos no Monte Carmelo, que literalmente destrincha as palavras  constituindo uma produção analítica propriamente dita, isto é, por quebras sucessivas da unidade maior em unidades menos.
            Diego de Jesus anuncia, no trecho selecionado por de Certeau, que deve lidar com os signos de excesso, tal como São Paulo conclama o excesso de caridade de Jesus e o excesso de amor aos Mandamentos de Deus da parte dos fiéis. Signos que dizem coisas demais e que demandam orientação introdutória que estabeleça alguns critério de separação. Como, por exemplo, daquilo que dizem os filósofos e os teólogos com relação ao que diz o místico, todos distintos por suas tarefas.

            “De l’ “anéantissement”, le Philosophe et le Théologien scolastique diront que c’est manquer du tout d’être, en sorte qu’il ne reste de l’être ni existence, ni forme, ni union, ni matière, qui est le premier sujet qui dure toujours ès générations et corruptions, là où la mystique dira l’ « anéantissement » de l’âme est une sainte négligence et abandon de soi-même, tel que ni par souvenir, ni par affection, ni par pensée, elle ne se soucie de soi ni de créature, afin de se pouvoir transformer entièrement en Dieu».  (Diego de Jesus, apud Certeau, 1982, 190)

            O comentário, a análise do texto místico atenta para o tipo de deslocamento que a linguagem excessiva produz, na qual tudo não é senão unidade e todas as coisas se movem podendo trocar de lugar, não à esmo, mas com velocidade incompatível com o nome das coisas. Perde-se o controle da coisa significada, e sempre algo mais está em questão. Na verdade, sempre muito mais. Assim,  a ciência mística não se constitui ao criar um corpo linguístico coerente (isto é, um sistema científico), mas ao definir operações legítimas (isto é, formalização de práticas) (op.cit., 196). Não é algo em si que ela mira, mas uma determinada relação prontificada pela linguagem com aquilo que é, vale repetir, a Unidade. Nisso a palavra mística avizinha e identifica aquilo que é distante e dessemelhante, promovendo relações indescritíveis, mas indispensáveis para a anunciação da conciliação com a existência. São tantas coisas dispostas neste jogo de similitudes selvagens que mesmo o místico corre o risco de se assemelhar com ele mesmo.



[1] Ainda que um sistema de dádiva seja um desafio analítico diante do qual eu não poderia simplesmente tomar um desvio e rumar para outra paisagem, é igualmente importante que se atente para o momento em que a dádiva se dá, momento este que estabelece demandas formais não necessariamente diretamente coerentes com o conjunto de premissas a partir da quais se pode definir o sistema dadivoso. Este talvez seja uma das diferenças mais importantes naquilo que o debate sobre dádiva resguarda, assim como aquilo que introduzem, por sua vez, tanto Bronislaw Malinowski quanto Marcel Mauss, isto é,  sistema desde o sistema na perspectiva maussiana, e o sistema desde o momento da troca trobriandesa.