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sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.


CERTEAU, Michel. A escrita da história. Forense Universitária. Rio de Janeiro. 1982.
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Contraponto/Uerj. Rio de Janeiro. 1999.
ROSANVALLON, Pierre. Le moment Guizot. Gallimard. Paris. 1985.



3-Os desdobramentos dos acontecimentos revolucionários, os de 1793 em particular, provocaram uma interrogação fundamental a respeito do sentido da idéia de democracia vindo assim a deslocar o centro de gravidade da reflexão política. No começo do século XIX a questão crucial que toda uma parte dos autores “liberais” busca resolver é a das relações entre liberalismo e democracia. Seu objetivo é de compreender as condições nas quais o ideal democrático da participação na coisa pública se voltou, com ferocidade, contra as liberdades.  (Rosanvallon, 1985:14)

            O hiato revolucionário, eis o alvo de Pierre Rosanvallon na recuperação de uma determinada memória e imaginação política precipitada, não das barricadas mas dos esforços de seu desmonte – tarefa que somou esforços de todo um século dado que o hiato é mais sutil e trabalhoso do que uma espécie de lapso que se interpõe entre a Revolução e o futuro. A história política francesa que atende aos apelos do liberalismo político do século XVII se volta fundamentalmente para a resolução de problemas que a orientação dos escritos de pensadores como Rousseau e Montesquieu simplesmente não poderiam prever. Não me refiro, obviamente, a nenhum componente da escatologia secularizada e as tragédias narradas em suas entranhas. Estou apontando para o problema, nada banal, de que Rousseau e Montesquieu são, ao mesmo tempo pensadores e agentes políticos quando vivos; e nomes nos frontispícios de livros que circulam a despeito do que viessem a fazer, ou de onde estivessem e qual sua posição relativa aos eventos mobilizados em seu nome. Se ao lermos livros antigos temos um acesso facultado à comunicação com os mortos – doutrina da historiografia moderna em sua relação com toda sorte de documentos -, por outro lado escrever é entrar no mundo dos mortos sem, no entanto, morrer completamente. Se é que é possível morrer completamente, por escrito, rastro que antecipa a morte sem matar completamente e que, de uma forma ou de outra, parece deixar as coisas exatamente assim fazendo da vida uma espécie de rumor tão perpétuo quanto o registro:

            A poeira do tempo persiste. É bom respira-la, ir, voltar por via desses papéis, dossiês e registros. Eles não são mudos e tampouco tão mortos quanto parecem. Jamais toquei em nada sem que algo saísse, se revelasse... É a alma.”(Michelet, 1979:45)

            A poeira sobre os arquivos onde Michelet comungava com os Processos Verbais da Revolução e, com isso, seguia os traços e a alma daqueles que revelavam as faces e detalhes da erupção que recriava toda a história francesa produzindo uma clivagem definitiva – ou tanto quanto uma clivagem definitiva pudesse perdurar. O antigo e o moderno numa batalha em que nomes de frontispícios como Rousseau e Montesquieu passam a desempenhar um papel de focos de remissão, sempre ambivalente, próprias da orientação bibliográfica que parece ser, antes de mais nada, de caráter anímico. Joseph Jacotot é rousseauniano, por exemplo, mas em Émile não é possível encontrar nada que não seja a sugestão de premissas que legitimam o mestre ignorante por via de um espaço em aberto sem ter nele, todavia, nenhuma forma de figuração ou via institucional de implementação. Não é preciso dizer que o contrato social não produziu nenhum acordo conciliatório ou que o espírito das leis anima muito mais coisas do que simplesmente uma definição racional de ordem política sem no entanto apontar consigo as visas de fato institucional – dilema do pensamento utópico concernente à crise inaugurada pelo pensamento revolucionário que Rosanvallon mitiga ao chama-lo meramente de ceticismo iluminista.

            Pertence à natureza da crise que uma decisão esteja pendente mas ainda não tenha sido tomada. Também reside em sua natureza que a decisão a ser tomada permaneça em aberto. Portanto, a insegurança geral de uma situação crítica é atravessada pela certeza de que, sem que se saiba ao certo quando ou como, o fim do estado crítico se aproxima. A solução possível permanece incerta, mas o próprio fim, a transformação das circunstâncias vigentes – ameaçadora, temida ou desejada -, é certo. A crise invoca a pergunta ao futuro histórico.: (Koselleck, 1999:111)

            A história da modernização das instituições, e da própria instituição da noção de governo na Europa moderna produz um ambiente em que aquilo que se pode chamar de “religião” é diluído em no conteúdo moral, o que implica na aposta da religião natural e de uma certa equivalência entre as religiões – isto é, uma indiferença segura entre elas. Esta indiferença pode ser traçada em algumas alterações fundamentais que pautam o terreno em que se altera a percepção do que é religioso e sua conversão, mais uma vez relativa, à moral. Uma delas, devidamente destacada por Michel de Certeau (1982, 151:208) está naquilo e que ele chama de transformação da heresia em alteridade religiosa na qual as diferenças que culminam em proscrição territorial dos cultos públicos em igrejas territorializadas tem seu lugar de fato e de direito. Os elementos de perseguição com seu caráter propriamente inquisitorial, ainda que persistentes, não são codificados nos arcanos de Estado, o que significa dizer que as regras do jogo mudaram – assim como aquilo que de fato está em jogo. Isto porque a mudança de seu estatuto implica necessariamente na alteração do enquadramento das seitas heréticas segundo um ou outro princípio. Nisso, a determinação jesuíta de que sugere que alguma religiosidade é melhor do que nenhuma ecoa como uma dimensão utilitária fundamental na qual todas as religiões contém princípios úteis à sociedade, segundo Montesquieu na carta 86 das Lettres perses, que encontram eco na necessidade da religião, da parte de Voltaire na manutenção da melhor ordem política. O que parece ser o movimento relevante, aquele que converte a religião em moral e a moral é ela mesma transformada reside no valor utilitário-funcional da religião e em como ela poderia ser útil; e útil para quê.
            Este é um jogo de combinatória bastante complexa, algo interminável. A combinação imediatamente interessante é aquela que anota a extrapolação do foro íntimo como terreno do político, algo interditado de forma expressa pelo absolutismo em sua diversidade. O que Koselleck aponta ao recuperar este episódio em questão, privilegiando enormemente o comentário a Hobbes é a produção da dimensão em que é gestada a crise, não somente como ato revolucionário mas também como mecanismo crítico que faz com que a crítica se desdobre vindo a se dobrar sobre si mesma. Entendendo que o império da lei que o absolutismo elabora estabelece algumas das primeiras interdições definitivas ao poder eclesiástico[1] (o primeiro estado), o que se lê em Hobbes é uma distinção radical entre ordem política e convicção, esta vivendo sob o Império da liberdade. Desde que em segredo.

            Assim, o homem é partido em dois. Hobbes o divide em uma metade privada e outra pública: os atos e as ações são submetidas, sem exceção, à lei de Estado, mas a convicção é livre, “in secret free”. Daí em diante será possível ao indivíduo refugiar-se em sua convicção sem ser responsável. Na medida em que o indivíduo tomava parte no mundo da política, a consciência tornava-se apenas uma instância de controle do dever de obediência. A ordem soberana dispensava o indivíduo de qualquer responsabilidade. “A Lei é a Consciência pública; Consciências privadas... são apenas opiniões privadas”. Mas,  se o indivíduo se atribui competência em um domínio reservado ao Estado, ele deve mistificar-se para não ser obrigado a prestar contas. A divisão do homem em uma esfera privada e uma esfera pública é constitutiva da gênese do segredo. O Iluminismo irá sucessivamente ampliar o foro interior da convicção; qualquer pretensão que incorresse em um domínio do Estado permanecia forçosamente encoberta pelo véu do segredo. A dialética entre segredo e movimento iluminista, desmascaramento e mistificação, surge desde o início do Estado absolutista.” (Koselleck, 1999:37)

            O que é instaurado pela crise revolucionária é a abolição desta fronteira na medida em que os grupos secretos que se reuniam em volta de suas aspirações morais em associações as mais variadas atingiram à marca da conspiração generalizada na medida em que reunir-se para certos fins seria o equivalente a conspirar. E conspirar necessariamente implicaria numa forma de ameaça interna estabelecendo outros paradigmas do reconhecimento do inimigo que não fossem ex-fronteira numa lógica de englobamento de contrários, o que já foi, forçando numa relação de analogia, o exercício com relação aos cultos heréticos.  Neste sentido a Revolução não implica na extinção da instância conspiratória de foro íntimo, mas na generalização da conspiração para todas as regiões tributáveis e, com isso a produção de conhecimentos compatíveis com o exercício das formas de poder presentes.

            O saber histórico-filosófico e o programa político fazem parte do mesmo segredo. A iniciação ao arcanum da tomada indireta do poder [o objeto desta passagem é o Iluminismo alemão]  era, ao mesmo tempo, uma iniciação à filosofia da história. Os próprios iluminados são os “arquivos da natureza” em que o curso da história já está estabelecido. Como em Rousseau, reina o início da história um estado total de inocência; segue-se um período de dominação e opressão; finalmente, inicia-se a moral que Jesus já havia ensinado, retomado pelas sociedades secretas para superar a era do dualismo. Alto e baixo, inferior e exterior deixam de ser fenômenos históricos, pois com o desenvolvimento sucessivo da moral desaparece toda forma de autoridade e, assim, também o Estado. Para os iluminados, o curso da história é ao mesmo tempo – graças à sua iniciação – a realização do seu plano secreto, de acordo com o qual esperavam eliminar o Estado. O curso dirigido da ação secreta, que consistia em minar o Estado por dentro para eliminá-lo – isto é, a ação política – foi projetado em uma linha temporal do futuro, de modo que o cumprimento dos desígnios da história era, ao mesmo tempo, a garantia da vitória não violenta da moral, da liberdade e da igualdade, e, portanto, o cumprimento da missão política dos maçons.”(Koselleck, 1999:116)

            Como podemos ver, compreender o fenômeno revolucionário é um exercício muito mais complexo do que a promoção de leituras de tipo “herança maldita” à forma de Rosanvallon. Não porque não exista, mas por mobilizar muito mais do que alguma forma específica de ceticismo diante as formas simbólicas da tradição. O que está se inaugurando é um modo de relação e, com isso, um reposicionamento dos termos e uma conformação que dá uma certa unidade dos discursos oferecendo à Revolução o seu caráter propriamente mitológico no qual as convicções puderam, finalmente, sair do armário – especialmente na forma de poder indireto, como seria o caso de ferramentas como a filosofia da história (Koselleck, 1999:118). Entra em pauta a diferença entre Estado e sociedade, sociedade esta como equalizadora das demais diferenças como as de caráter religioso – prédicas da igualdade jurídica entre todos os cidadãos cujo fundamento é moral. Temos até agora, em mãos, dois dos principais termos da alegoria política revolucionária: liberté e égalité, nenhum deles exercido no seio do Estado que deve ser, na circunstância ótima de sua justificação, o seu garante ou tutor. Não mais soberano, portanto, o Estado é um meio de concretização de aspirações cuja relação com os cidadãos segue a lógica do mistério no qual não cabe nenhuma justificação plausível senão a tomada de decisões e a condução administrativa – eis o pós-revolucionário em sua versão prosaica.
            O que se faz então tendo em mente não somente a Revolução mas a partir da problematização dos excessos e crimes cometidos durante o Terror abrem guarda para o redimensionamento da vontade geral como futuro indiscernível da composição entre Estado e sociedade para a composição do preenchimento institucional por projetos que recusem a dissimulação que faz com que projetos políticos sejam tratados como filosofia da história. A herança crítica do Iluminismo – a crise – produziu um terreno no qual a política passa a operar com o horizonte da probabilidade matemática cuja generalização não se dá senão de forma tardia mas que tem seu ponto de partida nos projetos articulados na geração dos idéologues:

            O esforço dos ideólogos para fundar a política e a moral cientificamente desdobra-se em três direções. A primeira é a “matemática social”. A expressão é de Condorcet em seu Tableau general de la Science qui a pour objet l’application du calcul aux sciences Morales et politiques. Ao fundar a ciência do provável ou ciência da decisão tinha como objetivo instituir uma disciplina que englobaria por sua vez a análise social e a matemática. A inspiração é, naturalmente, parente daquela Arithmétique politique tradicional que fora retomada inegavelmente no começo da Revolução por via da publicação dos trabalhos de Lagrange e de Lavoisier.”(Rosanvallon, 1985:21-22)

            As outras duas dimensões as quais Rosanvallon menciona são a fisiologia social, cuja referencia fundamental é a figura de Cabanis e, obviamente, a economia política, disciplina vigente desde o exercício dos fisiocratas. A primeira criação tem como objetivo a constante de observações relativas à dimensão moral, sinal diacrítico de humanidade cuja ciência se ampara na fisiologia, na análise das idéias (daí ideologues) e na moral. Nestes termos, especialmente a partir de 1814 – fim do Império de Napoleão – este tipo de projeto político se amarra no que Rosanvallon chama de cultura de oposição liberal que clama, ao mesmo tempo por uma cultura de governo que desenvolva do ponto de vista técnico aquilo que seguira como um salto no vazio do futuro interpretado pelo arcano da vontade geral. Em determinado círculo, imediatamente relevante para o tema e questão, se faz “necessário terminar a Revolução, construir um governo representativo estável e estabelecer um governo garante das liberdades fundadas na e pela Razão.” (Rosanvallon, 1985:26). O alvo das investigações de Rosanvallon é uma espécie de liberalismo reformado pelos eventos revolucionários nos quais as ações deliberadas também recaíram sob suspeição e que, diante disso, faz com que a religião que já determinada a uma função moral de utilidade tenha seu denominador comum igualmente reformado. A moral como modo integra a imaginação de meio, no caso, de governo. Daí a pertinência dos projetos relativos à Instrução Pública; também a pertinência de figuras como a de François Guizot e o destino das religiões durante e após a Revolução. Porque ele mesmo, Guizot, condutor da reforma da instrução pública francesa nos anos 1830, é calvinista.


[1] Ao discutir as dimensões em que a religião é transformada em forma de politização e folclorização, Michel de Certeau (1985) recupera episódios em que a ética cristã é considerada já destruída ou metamorfoseada em controle político. A querela do jansenismo situa este problema ao contrapor a mediação estatal com a mediação religiosa procurando estabelecer a melhor clivagem entre uma e outra. Do agostinianismo radical jansenista – e aqui, convém notar, ”agostinianismo” denota tanto uma nota que é tanto teológica quanto política – a única mediação possível é a da coroa, uma vez que a mediação religiosa pertence a Jesus Cristo, e somente a ele, questionando fortemente a autoridade papal e seu papel no pastoreio das almas. Nisso, é a autonomia da vida pública que entra em questão privatizando eventos como os de ordem mística dissociando a vida cristã das práticas civis: “Este tipo de combinação já esboça uma organização que se generaliza no século XVIII. Pode-se dizer também que a reflexão das Luzes exuma os postulados dela extraindo as suas consequências teóricas. Certamente isto não mais acontece sob a forma belicosa que a politização da moral havia adquirido entre os apologetas da “razão de Estado” sob Richelieu. Seu lugar, entretanto, permanece o mesmo: uma “razão” política de práticas articuladas  entre elas. Mas ele não é mais feito apenas pelos juristas ou clientes do rei; é constituído durante os anos decisivos de 1660-1680. O Estado se torna o centro poderoso da administração nacional, a grande empresa de racionalização econômica, financeira e estatística. “Pertence quase todo ao domínio do voluntário, do deliberado”: é o arco da nova aliança entre a razão (o Logos) e o fazer (as práticas que fazem a história). O século XVIII é “por excelência o século da política, logo, o século do Estado.”(Certeau, 1985:173:174). Convém ressaltar que a deliberação não está atrelada à decidir por convicção moral, mas por adequação a uma estrutura de decisão própria ao Estado como instância deliberativa. Ainda que hajam agentes religiosos, age-se fora da religião inclusive, progressivamente, do ponto de vista litúrgico.

domingo, 17 de agosto de 2014

O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.

 AGAMBEN, Giorgio. O sacramento da linguagem: arqueologia do juramento. UFMG. Belo Horizonte. 2011. 

DURKHEIM, Émile. Lições de sociologia. Martins Fontes. São Paulo. 2002.
FRAZER, James George. The golden bough: the magic art (2/13 vol.). Macmillan. 1990 [1913].
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Cosac & Naify. São Paulo. 2003 [1950].


6-  Esta não é uma discussão muito presente no debate antropológico, sobre o acontecimento. O que acontece é algo que, por razões muito importantes e precisas, se retirou imediatamente do horizonte teórico para que cedesse espeço para as variações temáticas das representações coletivas que tem como fundamento básico o projeto de sociologia política de Durkheim. Afinal, o que é uma representação coletiva senão a semiótica das corporações que ele tão bem defendeu em A divisão do trabalho social e nos cursos que oferecia na Sorbonne a partir de 1890? E o que são as corporações senão mediadores da mediação entre a população civil e o Estado? E o que é isto senão um léxico jurídico que se interpõe ao acontecimento da vida diária? O reflexo disto, e do elogio da laicidade francesa,  se encontra no exercício da sociologia que se concentra no esforço radical e proclamado de isolar a mística do Estado, fazendo da República o reino deste mundo. É assim que a sua defesa do individualismo como forma indiscutivelmente melhor de organização da sociedade de massas culmina numa elaboração particular em que é difícil discernir sua sociologia de um projeto de Estado e de planificação da vida coletiva:

A verdade é que o Estado não é por si mesmo um antagonista do indivíduo. O individualismo só é possível por meio dele, embora ele só possa servir à sua realização em condições determinadas. Pode-se dizer que é ele que constitui a função essencial. Foi ele que subtraiu a criança à dependência patriarcal, à tirania doméstica, foi ele que livrou o cidadão dos grupos feudais, mais tarde comunais, foi  ele que livrou o operário e o patrão da tirania corporativa, e, se ele exerce sua atividade com muita violência, ela só é viciada, em suma, porque se limita a ser puramente destrutiva. Eis o que justifica a extensão cada vez maior de suas atribuições. Essa concepção do Estado é, portanto, individualista, sem todavia confinar o Estado à administração de uma justiça totalmente negativa; reconhece-lhe o direito e o dever de desempenhar um papel dos mais extensos em todas as esferas da vida coletiva, sem ser místico.” (Durkheim, 2002:89)

Existe na sociologia francesa, esta que se dedica à estrutura social como forma planificada da vida coletiva dedicada fundamentalmente à reprodução das condições de vida – connatus sociológico- , a dificuldade bastante conhecida de se reportar ao acontecimento. Por muito tempo, creio que de forma profundamente equivocada, a tensão se projetava na polaridade entre indivíduo e sociedade, como se a questão fosse fundamentalmente interna à ordem jurídica dos povos, em especial os povos modernos. No entanto, toda a sociologia francesa em questão não é outra coisa senão um elogio ao indivíduo e ao individualismo, ainda que seja um elogio feito de forma blasé articulado na expressão c’est pas mal. Um elogio contudo que se articula no plano das representações do indivíduo, e não na individuação como acontecimento. Eis aí a enorme diferença da seleção de trechos escolhidos por Frazer com relação aos selecionados por Hubert & Mauss e a forma pela qual editam a vida primitiva.
A teoria geral da magia que encontramos no ensaio de Hubert & Mauss é uma teoria dos contextos da magia em que mesmo sendo ela um desafio, é um desafio à organização social e portanto, também sujeita ao tipo de acordo coletivo de tipo contrato, o mesmo que o direito negativo tem com o ato criminoso e aquele que o perpetra. Assim, o tipo criminoso acompanha o ato; mágico é tanto uma pessoa quanto um ato. É uma teoria dos papéis sociais no exercício de suas funções, um enorme investimento no universo do officium (Mauss, 2003). No caos do universo primitivo de onde são sacadas as mais diversas formas da origem dos costumes que são conectadas como fontes filogenéticas do comportamento humano, não é de se surpreender que mesmo aqueles empenhados com todas as suas força em investigar o universo antropológico desde as zonas de indistinção aguda entre tipos de fenômenos – discriminados com a força da laicização revolucionária francesa em que a religião é, antes de tudo, o selvagem da organização social humana -; mesmo estes entendem que direito e religião margeiam um ao outro sendo, igualmente, um o caso limite do outro. É aqui então que o recurso plácido das “distinções analíticas” entre, por exemplo, “direito” e “religião”, “religião” e “sociedade” e “magia” e “religião” correspondem uma edição do primitivo, ainda que não de qualquer primitivo. Do primitivo ao lado. É assim que Louis Gernet disserta sobre pre-droit como fase originária do direito pagão e Paolo Prodi fala sobre um instinto primordial que leva à separação futura da religião com relação à política (Agamben, 2011:24).

O caso de Mauss constitui um bom exemplo para mostrar como a pressuposição do conjunto sacral age decididamente, embora venha a ser, pelo menos  em parte, neutralizada pela atenção especial dada aos fenômenos que define seu método. A Esquisse de uma teoria geral da magia, de 1902, começa com uma tentativa de distinguir fenômenos mágicos frente à religião, ao direito e à técnica, com os quais muitas vezes tinham sido confundidos. No entanto, a análise de Mauss se depara todas as vezes com fenômenos (por exemplo, os ritos juríico-religiosos que contêm uma imprecação, como a devotio) que não é possível atribuir a uma única esfera. Assim, Mauss é levado a transformar a oposição dicotômica religião-magia numa oposição polar, traçando dessa maneira um campo, definido pelos dois extremos do sacrifício e do malefício, e que apresenta, necessariamente, umbrais de indecidibilidade. É sobre estes umbrais que ele concentra o seu trabalho. O resultado, conforme observou Dumézil, é que já não haverá para ele fatos mágicos, por um lado, e fatos religiosos, por outro; aliás, “o seu objetivo principal consistiu em ressaltar a complexidade de todos os fenômenos e a tendência da maior parte dos mesmos de irem além de qualquer definição, por se situarem simultaneamente em níveis diversos” (Dumézil, Idées romaines).” (Agamben, 2011:25-26)

O que Agamben não nota é que este além da definição positiva é, antes de mais nada, a esfera da infração e da violação de interditos que clivam a diferença entre sacrifício e malefício. E então a relação genealógica que se utiliza do tempo profundo não é tão relevante quanto é a relação pragmática com aquilo que Hubert & Mauss compreendem como a relação entre tradição, classificação e organização social. Na definição da magia, na segunda parte do Esquisse vemos como este movimento se dá em que a magia é classificada como tal segundo determinações específicas. Assim, mágico é o indivíduo que efetua mágicas; representações mágicas são ideias e crenças que correspondem à magia; os ritos são, por fim, os atos. Sendo magia algo da esfera da tradição – o que nos joga imediatamente para eventos que do ponto de vista filogenético e evolutivo, se deram pelo menos antes do Antigo Regime -, são operações passivas de repetição, então as representações mágicas nutrem da seguinte relação com as técnicas de magia:

Nas técnicas, o efeito é concebido como produzido mecanicamente. Sabe-se que ele resulta diretamente da coordenação dos gestos, dos instrumentos e dos agentes físicos. Vemo-lo seguir imediatamente a causa; os produtos são homogêneos aos meios; o disparo faz partir o dardo e o cozimento se faz com fogo. A existência mesma das artes depende da percepção contínua dessa mesma homogeneidade das causas e dos efeitos. Quando uma técnica é ao mesmo tempo mágica e técnica, a parte mágica é que escapa a essa definição. Assim, numa prática médica, os encantamentos, as observâncias rituais ou astrológicas são mágicas; é aí que jazem as forças ocultas, os espíritos, e que reina todo um mundo de ideias que faz que os movimentos, os espíritos, e que reina todo um mundo de ideias que faz os movimentos, os gestos rituais, sejam reputados detentores de uma eficácia muito especial, diferente de sua eficácia mecânica.”(Mauss, 2003:57)

Percebe-se que, em primeiro lugar, há a distinção entre o técnico e o mágico, se é para seguirmos o exemplo. Mas aqui, bem ao modo calvinista de definir administração da eucaristia, o mágico corresponde ao plano do simbólico e que, como tal, acontece como se fosse uma outra coisa. É a classificação dos atos na correspondência com o universo simbólico que lhe dá significado. E aqui, quase escrevi sentido. Preferi guardar o termo para que seja usado em momento propício em que esta passagem citada de Hubert & Mauss seja confrontada. Mas não no que diz respeito ao simbólico cujo calvinismo tanto influenciam as mais diversas de pesquisas modernas sobre religião – sugestivamente, talvez não a Frazer. O que está em questão é o mecaniscismo subjacente em que as relações entre causas e efeitos determinam a anterioridade e a posterioridade, assim como o princípio que legisla a respeito do que acontece fazendo da lei um antecedente tanto lógico quanto cronológico de qualquer coisa que aconteça. Física social.

quarta-feira, 5 de março de 2014

AInda não: crônica crônica de carnaval.


          Foi então que pisei fora de casa. Não dei a menor bola para os helicópteros sobrevoando a avenida Santa Isabel e mesmo ao som das primeiras explosões. Pirotecnia, ambos, da Polícia Militar e de foliões que sempre usam da sorte para explodir latinhas e assustar transeuntes. Afinal, aqui é terra em que se comemoram natais com fogos de artifício. Muitos, ainda que sem o acompanhamento de gritos desesperados perfazendo a melodia “filhos-da-puta” que, por fim, moveram-me do sofá. Que pese o fato de eu não estranhar mais sobrevoos de helicópteros policiais e de conviver com gente que explode coisas por diversão, como eu mesmo fiz na adolescência. A
tensão dos gritos estava alguns tons acima do desconforto habitual de morar em Barão Geraldo, Campinas.
            Esta que é uma ilha num mar de abjeção urbana, é ela mesma uma abjeção. Só é uma ilha porque perdura sua forma intangível de ser a Terra do Nunca que abriga a Unicamp, em que Nunca segue presidindo todas as atividades.  A mesma Terra do Nunca  com facções diversas de Meninos Perdidos que mal e porcamente povoam as ruas. Na verdade, não, porque voam não tocando o chão, overdose de toques de fada Sininho. Esta mesma ilha está pipocada de violações aos hábitos civis banais. Há um toque de recolher implícito que faz das ruas um ambiente deserto às 21 horas, toque este acompanhado pelas ruas escuras de uma iluminação tenebrosa que permitia às fantasias de vampiro de outrora, quando eu explodia coisas, a mais palpável verossimilhança. Quando adolescente, temido por quem cruzasse na rua – ainda que este fosse, em geral, ninguém. Minha mãe sempre temerosa, calculava o pranto na possibilidade de um acontecimento infeliz e, no entanto, nunca.
            Quando pisei fora de casa na madrugada de uma terça-feira de carnaval, ano de 2014, fomos invadidos pela força alheia. Vi carros atravessados na rua que me viu sair dos cueiros, não à forma irresponsável das oficinas mecânicas de interromperem a calçada irregular, mas nos contornos do desespero coletivo. Choro, raiva, trânsito interrompido. Tosse seca, algumas doloridas e outras tantas fingidas com o ofício daquele que não perde a oportunidade de participar da História. As fantasias já não importavam mais pois, assim se via, todos estavam nus. Todos? Olhei sobre o ombro direito. Parecia um milagre. Um acontecimento. Trinta sombras de escudo em riste e bastões intercalados com canudos de soltar projéteis. Andavam acuados por um enorme vazio em que as ruas, já depois das 21 horas, travestiam. Seguiam rumo à Av. J.B. de Oliveira, saindo da outra avenida, Santa Isabel, a mesma frequentemente visitada pelo som dos helicópteros em rasante. As trinta sombras, com ombreiras ovaladas, partes de corpo em brilho fosco do negrume das peças aconteciam ao som de bombas e marcha. O silêncio vinha de outra parte, era o samba quem havia calado.
            Do portão de casa até a Praça do Côco é uma caminhada de levar a avó. Coisa pouca para chegar em um terreno em que o que se dá, basicamente, são reuniões de fazer nada, o epicentro descontraído da Terra do Nunca. Uma ilha em uma ilha, o golpe parece ter atingido o pâncreas do eterno esconderijo produzindo tão e simplesmente a bile que sobra do cansaço do corpo após o envenenamento recreativo dos dias de carnaval. Os gritos de desespero e ofensa só faziam crescer na exata medida em que não somente o samba fora silenciado, mas colocado em uma escala negativa do canto roubado. Mais uma bomba de gás. Acompanho as sombras desde atrás, com uma distância saudável, a saúde de quem caminha olhando a nuca alheia. Viro a esquina da rua de casa, à esquerda, e sigo até a Praça do Côco, onde o derradeiro ambulante desmonta a parafernália devidamente esbaforido e revoltado. Porque não estava acontecendo nada que não fosse samba, foi assim que ouvi da boca dele, e que tudo o que se deu foram gás e balas de borracha. Um ou outro fantasma, vindo de outros momentos deste evento máximo, o primeiro, repetiam a ladainha que se assume ares de voz maldita, aquela que diz ter visto não saber o que aconteceu. Não importa por onde a história começa, não há quem afirme saber de onde veio o golpe.
            Foi o suficiente para me distrair - o que deveria ter servido de sinal, para eu não me enganar, não levar em conta a possibilidade de estar no mesmo evento em que eu pude contar 30 sombras. Naquilo que deveria ter sido o caos e o medo, parar e conversar com quem tinha muito o que perder em simplesmente correr. E distraído, perceber carro, equipamentos e mercadoria que serviram de âncora para uma dúzia de pessoas que persistiam em ficar na mesma praça que abandonariam minutos depois. Mas não havia mais ninguém além daqueles que, nas contas decisivas, eram os derradeiros. E no entanto, as sombras seguiam no exercício. Passos marcados e, logo mais, o som de sua própria verve percussiva. Bastões sorvendo os escudos da cadência interrompida para uma multidão ausente, dispersa sem nunca ter se aglomerado. Um curto ensaio musical chegando à zona de dispersão, 5 viaturas da força especial aguardando pacientemente sua ala sombria que agira no mais seguro anonimato da noite desabitada. Uma curta comemoração e então o preto fosco das peças duras cede ao tecido cinza de homens que partiam sem praticar o ofício policial de averiguar, investigar, reconhecer. Saíram de costas para dar a impressão de que estavam chegando, sem luz, sem som, sem sombra.
            Passei a madrugada em claro, contando e levantando detalhes, divulgando a boa nova de que não éramos mais a Terra do Nunca e que tínhamos quebrado com a maldição das facções. Os Garotos Perdidos poderiam voltar para casa. Mas diz a informação do ministro do alcaide que não, que nada, que nunca. Como antes. Os calos nos pés reforçados por minha sandália ruim são, por fim, uma história interrompida e já é tarde demais para reaprender a voar.
             Mas o que aconteceu?, poderia me perguntar o leitor. Com alguma tristeza sou obrigado a reconhecer que não aconteceu nada. Ainda não.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

La diabolie: o negativo da história social da verdade


REICHLER, Claude. La diabolie. la séduction, la renardie, l’écriture. Minuit. Paris.
1979.
_____________________. L’Age Libertin. Minuit. Paris. 1987.
SHAPIN, Steven. A social history of truth : civility and science in seventeenth-
century England. University of Chicago Press. Chicago/London. 1994.


4-

            « Le libertin honnête doit savoir préserver l’autonomie de son for intérieur tout livrant son MOI social aux effets du dialogisme, et découvrir l’autre dans ses retranchements. » (Claude Reichler, L’Age Libertin)

            Posso jurar dizer a verdade. Bradar com todas as minhas forças, inclusive aquelas que em nada tem a ver com os músculos que me permitem falar. O juramento não altera o estatuto do problema de que dizer a verdade é uma aporia e que jurar não muda seu estatuto salvo como expressamente aceito. Jurar pertence ao campo performático em que o que é dito não descreve coisa alguma e que, portanto, não está sujeito a verificação e, por isso, tampouco ao falseamento. Posso não dar crédito a quem jura e isso em nada tem a ver com o que se disse – “eu juro” – mas sim com outra gama de relações. E isto não permite que eu possa voltar à primeira expressão com maior ou menor felicidade.  Eu disse a verdade” também não acrescenta a qualquer descrição informação alguma quando digo; “a língua pirahã opera sem quantificadores”, ou “não existe avaliação estatística válida que opere somente com duas variáveis”, ou mesmo “o livro está sobre a mesa”.
            Assim sendo, a ênfase e o juramento só atestam minha convicção e minha disposição em atestar comprometimento com o que eu disse sem que tenha aprimorado qualquer elemento rumo a uma maior especificação quanto ao evento ou objeto descrito. De uma certa forma a sentença original segue no escuro ou, na melhor das hipóteses, sob a luz disponível. Há quem diga que responder a uma sucessão de proposições válidas expostas de forma, e na ordem adequadas poderia oferecer algum grau de correspondência algo satisfatória. Ao mesmo tempo há aqueles para quem o juramento terá bastado. Ainda assim, há um componente delicado que implicará numa economia política do discurso pois, se por um lado aceitar o juramento pode soar ingênuo, por outro lado aceitar a mera existência de algo como “pirahãs”, “estatística e variáveis” e “um livro sobre a mesa”- o livro, ainda que conhecido, pode ser uma sorte de gavagai – atesta igualmente confiança. As sentenças que correm risco de serem aceitas como verdadeiras são aquelas em que é possível depositar confiança, dar crédito no sentido rigoroso do termo, servirão para uma troca futura, seja para utilizar numa segunda demonstração, seja para cobrar a palavra ou a ausência da mesma, de quem quer que tenha jurado. E é neste nível de elaboração em que estamos. Importa tanto que uma sentença seja verdadeira quanto ela possa circular enquanto tal.
            Este, quero crer, é o pano de fundo para uma reflexão que se permite ser uma história social da verdade em que a justiça a uma determinada sentença é feita na medida em que uma determinada ordem social se compromete com a boa vida futura.

            Social order would be impossible unless on were morally enjoined “to stand one’s world in all promises and bargains”. The foundations of justice was faithfulness, “which consists in being constantly firm to your word, and conscious performance of all compacts and bargains”. To be sure, the obligations to keep a promise was not absolute; for example, if keeping it was likely to injure an individual or society, one might have no legitimate commitment. And persons “overawed by fear” or otherwise unfree when they made a promise were not deemed to have entered into a moral commitment. Yet, like other Greek or Roman social theorists, Cicero understood that social order utterly depended upon trust being rightly reposed in morally bound truth-tellers and promise-keepers. Liars and dissimulators threatened the moral fabric of society: they were “knaves” and their actions were “attended with dishonor.”(Shapin, 1994:09)
           
            Lembrando que a dissimulação e a mentira só são uma vez que identificados como tal – o que demanda haver algum método – é preciso retornar então que enquanto forem tratadas como verdade, circularão como tal. E é este o território da diabolia de Claude Reichler no qual o contrato, o acordo é reduzido à mera sucessão de palavras da parte de alguém que, como num juramento em falso que faz sem comprometimento interno, subjetivo, com o que foi dito; não juramento falso, mas juramento EM falso. Falar a verdade, ser reconhecido como tal, caminhar como um cidadão. Ao sugerir que uma sociedade é uma certa forma de distribuição dos saberes, do conhecimento implícito do mundo, e que a sociedade opera como uma certa técnica da razão (me valendo da leitura de Giannotti a respeito de Durkheim), falar a verdade implica num modo de participação e pertencimento em uma sociedade específica. Não como determinar imediatamente se estamos falando de uma determinada sociedade é nacional ou, de outra forma, uma associação de pesquisadores do cavalo-marinho. A verdade, a despeito da arquitetura soberba d’A Metafísica de Aristóteles pode ser somente um vocábulo, um atestado e, por isso, uma moeda de troca.
           
            Georg Simmel recognized that truth-telling was “of the most far-reaching significance for relations among men”, and that social systems varied enormously in their tolerance for lying and distrust. Very simple societies were said to be relatively tolerant of untruthfulness, whereas deceit and distrust worked lethal effects on highly differentiated and interdependent modern societies. Modern life, Simmel said, “is a ‘credit economy’ in a much broader sense than a strictly economic sense.” (Shapin, op.cit.:14-15)

            Que não se perca o desenho de vista. Compreender a verdade como moeda de troca e, por isso, implicando-a  numa economia política do discurso – como descrito por Bruno Latour em Science en Action, ou Laboratory Life (com Steve Woolgar), ou em Histories of Scientific Observation, editado por Lorraine Daston e Elisabeth Lunbeck – é imperativo tomar nota quanto ao sistema de distribuição, isto é, compreender a rede que o movimenta assim como os dispositivos concernentes ao modo de pôr e tirar de circulação o que é atestadamente verdadeiro ou, respectivamente, notadamente falso. Isto leva-nos ao problema de não somente quanto ao saber-saber, mas também como obstruir e garantir a obstrução de indesejáveis – o que opera nas variações da censura e da etiqueta. Opera também, e isto não é menos importante, em uma determinada logística. Esta mesma logística implica não somente na circulação de discursos, mas de pessoas, coisas e, quando possível, animais, todos sujeitos à edição e, quando mais grave, censura e até mesmo excomunhão, como a de Jacque Lacan diante da Sociedade Psicanalítica Francesa. Isto porque, assim como variam a censura e a etiqueta, variam os relatos que serão, de alguma forma, postos em graus de confiabilidade – o que seria de “ trust” sem  doubt”?  e de “doubt” sem a crítica, isto é, um método de certificação a posteriori baseada, obviamente, em um sistema a priori?
           
            Reports may vary because individuals are differently situated, in space and time (e.g., you were not present when the phenomena were on display), because observational conditions vary (e.g. cloud cover obscured your sight of the comet), or because others may be observing from different forms depending upon the face which one looks).  One observer or the other may lack a requisite aid to perception (a telescope or one sufficient quality), or may, in extreme cases, be suffering a delusionary or hallucinatory condition.”(Shapin, op.cit.:31-32)

            E a condição alucinante é o primeiro passo para chegarmos a versões algo mais suaves do problema, para as quais convém chamarmos de interpretações.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Da experiência interior como política da escrita: parte dois


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BATAILLE, Georges. L’expérience intérieur. Gallimard. Paris. 2012 [1954].
______________________. Théorie de la religion. Gallimard. Paris. 2011. 
RANCIÈRE,  Jacques. Políticas da escrita. Editora 34. Rio de Janeiro. (1995)
_______________________. A noite dos proletários: arquivos do sonho operário. Companhia das Letras. São Paulo. 1988.


II-

            O percurso da emancipação operária não segue uma linha reta mesmo quando a trajetória se utiliza de casos individuais exemplares. Não que seja exatamente uma exceção, ainda que possa ser entendido como algo peculiar. O que é possível narrar são coisas feitas aos pedaços, como leitura interrompida porque extinguiu o feixe de luz, elétrica ou combustível; porque alguém lê no fim do dia o sono corta os olhos desse dentro desligando a vontade do seu suporte orgânico culminando no sono; ou simplesmente porque as coisas se dão integralmente em partes. Não estou falando de um impedimento real como algum tipo de censura premeditada mas de outra forma de circulação de edição de textos escritos, apresentados de forma decididamente heterodoxa com relação aos padrões savants. Rancière conta muitos casos, dado que é o arquivo operário que ele apresenta, e os casos são editados em cortes tão abruptos quanto o exercício de leitura apresentado no capítulo A Nova Babilônia.
            Estamos às voltas com as fantasias infantis de fuga e é a formação literária de Charles Pénnekère que chama a atenção. São seus devaneios que abrem a série de histórias dedicadas mais à deambulação operária do que às brincadeiras diversas traçando nos vôos mais irresponsáveis o desejo de aprender – até então compreendido como o negativo da ignorância. Isto porque foi por não saber responder à mãe quanto a paginação de uma determinada lenda, a de La Chapelle de saint Léonard que sua obsessão por constituir para si uma biblioteca se fez. Mas que se entenda que o universo do então pequeno morador da região compreendida entre Glacière e Saint-Marcel, em Paris. Nada de volumes inteiros que compreendam um argumento ou uma narrativa do começo ao fim. Nem mesmo uma história. A biblioteca fora, dados os recursos existentes, uma complexa coleção elaborada folha-a-folha – “aquelas tiradas das embalagens de alimentos consumidos no dia-a-dia” (Rancière, 1988:59). Abrimos aspas, tanto Rancière quanto eu, a Charles Pénnekère:

            Ficou combinado que minha mãe me guardaria os sacos que serviam para embrulhar os cereais que ela comprava. Ah! com que entusiasmo, voltando para casa, à noite, eu explorava esses tesouros dados como restos de discursos, como fragmentos de anais! E com que irritação chegava ao final da página rasgada sem prosseguir a narrativa, que nunca continuava na entrega seguinte que minha mãe me fazia e forma de sacos ou canudos, embora lhe tivesse recomendado para trazer as lentilhas sempre do mesmo comerciante.”(1988:op.cit.)

            E Rancière encerra aí a citação. Logo em seguida uma outra personagem nos é apresentada, Jeanne Deroin, costureira de roupas íntimas engalfinhada com os esforços mais elencados do que descritos na luta para se cercar dos “tesouros da ciência”. Tão rapidamente, o corte como a passagem acelerada de um dia para outro a segunda citação traz outra história parcial e Rancière se converte numa mão metodológica, a mesma de Charles Pénnekère que lhe trouxe lentilhas. O saco com qual carregava os grãos narrava toda uma outra história da qual nos desviamos pela obrigação imposta fisicamente pelo texto e sua ausência repentina.
            A narrativa implícita é dificultosa, dado que responde à inquisição sartreana sobre o que fazemos o que fizeram conosco. Se a temática das ruínas atravessa o tempo do materialismo compondo uma constelação[1] dispersa, esta mesma constelação narra a história moderna a partir do que resta dos outros, a forma presente do passado narrado à forma de uma história do futuro, um futuro que é hoje. As ruínas, sejam simbólicas ou restos empoeirados duramente cortejados por turistas contam a história da depredação do tempo e dos homens ao mesmo tempo em que revela pontos de acesso à fundação de toda arquitetônica, os cálculos e predileções que numa engenharia precisa, deixam a alma de pé. Mas se para a sabedoria que lê de capa à contracapa as ruínas são fruto dos eventos do século, para os leitores da Paris noturna do século XIX o que circula são as ruínas de um tempo de curtíssima duração que toma forma em páginas rotas cedidas gratuitamente para uma função secundária, a contenção de punhados de lentilha, um saco de papel que se transforma numa história interminável porque demasiado breve.
            A inversão da figuração do tempo histórico de tal ou qual duração é o fruto de um plano par arruinar a geração de equívocos sobre o povo guerreiro para o qual muito se fez esforço em converter o proletariado; o povo. Bravo e colossal e então determinado, para o seu próprio bem, à resistir à tudo e seguir sem medo em uma variação delicada das sagas sacrificiais. Os arquivos operários dos quais Rancière se nutre, o que se mostra nesta coleção de páginas rotas é que a busca determinada pelo devaneio operário-poeta de ilustração onívora que não se importa se o texto fora estabelecido por Ernest Renan ou se foi simplesmente jogado fora aos pedaços como papel de embrulho o põe na posição de alguém que pode querer assumir outro papel que não o da resistência. Até porque, neste caso a dor é na carne.

            Que a oficina possa ser pior do que a prisão, eis aí uma opinião que justifica, sem dúvida, todos esses discursos e histórias que moralistas, clérigos e leigos destinam à juventude popular, para descrever a dignidade quase burguesa daquele que tem um bom ofício e a miséria que conduz os pequenos entregadores e vendedores de fósforos, de papel de carta e outros pequenos negócios da ponte Saint-Eustache ao abandono e à vergonha das prisões.”(1988:62)

            Que seja o roubo a rota desviante do massacre diário do trabalho. A prisão ao invés da tortura de entregar a vida vendo no futuro um destino ainda mais fugaz que a história esquartejada com cheiro de lentilha. Ou será que não?

            Será simplesmente a natureza doentia do marceneiro poeta que o faz contradizer o que aprendemos em tantas fontes: o prazer do artesão ou do operário qualificado em ter nas mãos ou diante dos olhos o produto do seu trabalho inteligente – prazer perturbado apenas pela dor de ver tal obra escapar dele par ir engordar o tesouro dos exploradores?”(op.cit.:62)

            Resta então adentrar no mundo em que se come mal, em que o dia demora demasiadamente para terminar e que adia o aparecimento do patrão até o momento derradeiro, momento em que ele faz algo que não a imaginação torpe a respeito da espera ociosa do explorador.

            No mundo às avessas que toma pelo seu reino, o senhor é antes de mais nada um barulho de passos que afasta a alma do sonho da Terra Prometida para devolvê-la ao cativeiro. Ele incomoda porque impede de sonhar tranquilamente com os prazeres dessa boa organização onde ele não tem mais lugar. (op.cit.:69)

            E então irrompe a economia cenobítica aonde, creio, será possível passear pelas figuras da idiotia proletária de anos difíceis como os de sempre.


[1] Que conta com o ideologue Constantin Volney, o exuberante suicida Walter Benjamim e o ontologista da comédia humana Giorgio Agamben, sem deixar de lado as reflexões sobre as ruínas futuras ou planificadas do nazismo de Paul Virilio (Guerra e cinema).

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Da experiência como política da escrita





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BATAILLE, Georges. L’expérience intérieur. Gallimard. Paris. 2012 [1954].
______________________. Théorie de la religion. Gallimard. Paris. 2011. 
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RANCIÈRE,  Jacques. Políticas da escrita. Editora 34. Rio de Janeiro.



I-
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Bataille condena a noção de projeto, sumariamente, exatamente porque tudo o que viver produz é sua condenação explícita e eficaz. Não uma condenação de caráter jurídico, vale dizer, mas a que aponta para a danificação de uma determinada estrutura, que seja, de concreto armado que seja possível chamar de edifício. As vigas algo corroídas desde a base, rachaduras que indicam que onde reinava a unidade monolítica sobrarão pedaços desarticulados e menores que mal contarão a história do futuro que poderia ter sido. O projeto é condenado na medida em que não ofereça morada ao submeter ao habitante risco ainda maior que na vida selvagem dado que a probabilidade de ruína joga contra ele – e nada mais selvagem do que a probabilidade jogando contra. E é contra a arquitetônica, contra o grundsatz, contra o projeto a partir de um livro fortemente antipático que não aceitará a companhia estabilizadora que uma igreja qualquer. Nem mesmo a experiência mística é imediatamente bem-vinda dado que a desestabilização que promove poderá assumir a figura ou narrativa de revelação que ao mesmo tempo em que funda a relação fundamenta o discurso futuro sobre o futuro – é a fundamentação que Bataille coloca em questão. A experiência relata, não a mística ciência doutrinaria, mas o interior que até então incomunicável é posto em comunhão. O meramente idiota que falava na confusão do balbucio se presta à comunicação infantil que aponta para tudo e ri; meramente idiota, termo irredutível que resistirá à servidão dogmática porque não compreende os termos a definirem o discurso futuro sobre o futuro.
            Do lado filosófico a intenção é a de “acabar com a divisão analítica das operações e assim, escapar da sensação de vazio das questões inteligentes”. Do lado religioso, em que pesem a autoridade e os valores tradicionais – de forma alguma primeiros com relação à experiência interior – o esforço é o de fazer recuar a inteligência até o domínio que lhe parecia estrangeiro, exatamente o da experiência interior. De outra forma o livro não é senão uma introdução ao oral, a palavra que morre no momento seguinte.

            Comme une insensée merveilleuse, la mort ouvrait sans cesse ou fermait les portes du possible. Dans ce dédale, je pouvais à volonté me perdre, me donner au ravissement, mais à volonté je pouvais discerner les voies, ménages à la démarche intellectuelle un passage précis. L’analyse du rire m’avait ouvert un champ de coïncidences entre les données d’une connaissance émotionnelle commune et rigoureuse et celles de la connaissance discursive. Les contenus se perdant les uns dans les autres des diverses formes de dépense (rire, héroïsme, extase, sacrifice, poésie, érotisme ou autres) définissaient d’eux-mêmes une loi de communication réglant les jeux de l’isolement et de la perte des êtres. La possibilité d’unir en un point précis deux sortes de connaissances jusqu’ici ou étrangères l’une à l’autre ou confondues grossièrement donnait à cette ontologie sa consistance inespérée : tout entier le mouvement de la pensée se perdaient, mais tout entier se retrouvait, en un point où rit la foule unanime. » (2012 :11)

            O método da redação, intermitente e fortemente digressivo, visa dissimular o discurso à forma da comédia que fará deste livro um livro que parodia um livro e reduz o humano à ação humana, ao erro – ao equívoco que é percorrer e em fazer o que há para fazer, algo peculiarmente reincidente na precipitação do sentido na versão pragmática de felicidade. Isto porque o idiota, aquele que é sujeito às mais agressivas idiossincrasias, só pode dizer algo que se assemelha a um discurso não sendo possível levar a sério, ao mesmo tempo, o idiota e o seu discurso. Ao eleger a experiência interior como o centro de tudo o que conta é o idiota e não a mística que se professa a seu respeito – o idiota que se é; não mais o enunciado sobre o vento, mas o vento; o hálito confuso da boca de quem lambe o chão em busca de restos, migalhas de pão no monastério. Bataille é particularmente enfático quanto ao exercício da impotência na qual “si –mesmo” não é “o sujeito se isolando do mundo” sem condições de aceder à coisa-em-si mas sim “lugar de comunicação, de fusão do sujeito e do objeto” – forma de ateologia negativa em que sujeito e objeto serão o que não está lá onde há comunicação.
            Mas é isto uma política da escrita? Na verdade não imagino que a coisa possa sequer ser posta em outros termos, em especial  imaginando a trajetória anti-fascista do proponente. Mas o que seria uma política da escrita – e a volta do parafuso, para defini-la como tal eu deveria aceitar a autoridade de Jacques Rancière? Questões à parte que compõem o quadro o que é definitivamente relevante é a escrita como produção de comunidade – restando saber qual a comunidade em questão. De forma indisfarçável será preciso ler e, com algum esforço, procurar o idiota em Rancière.