sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.


CERTEAU, Michel. A escrita da história. Forense Universitária. Rio de Janeiro. 1982.
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Contraponto/Uerj. Rio de Janeiro. 1999.
ROSANVALLON, Pierre. Le moment Guizot. Gallimard. Paris. 1985.



3-Os desdobramentos dos acontecimentos revolucionários, os de 1793 em particular, provocaram uma interrogação fundamental a respeito do sentido da idéia de democracia vindo assim a deslocar o centro de gravidade da reflexão política. No começo do século XIX a questão crucial que toda uma parte dos autores “liberais” busca resolver é a das relações entre liberalismo e democracia. Seu objetivo é de compreender as condições nas quais o ideal democrático da participação na coisa pública se voltou, com ferocidade, contra as liberdades.  (Rosanvallon, 1985:14)

            O hiato revolucionário, eis o alvo de Pierre Rosanvallon na recuperação de uma determinada memória e imaginação política precipitada, não das barricadas mas dos esforços de seu desmonte – tarefa que somou esforços de todo um século dado que o hiato é mais sutil e trabalhoso do que uma espécie de lapso que se interpõe entre a Revolução e o futuro. A história política francesa que atende aos apelos do liberalismo político do século XVII se volta fundamentalmente para a resolução de problemas que a orientação dos escritos de pensadores como Rousseau e Montesquieu simplesmente não poderiam prever. Não me refiro, obviamente, a nenhum componente da escatologia secularizada e as tragédias narradas em suas entranhas. Estou apontando para o problema, nada banal, de que Rousseau e Montesquieu são, ao mesmo tempo pensadores e agentes políticos quando vivos; e nomes nos frontispícios de livros que circulam a despeito do que viessem a fazer, ou de onde estivessem e qual sua posição relativa aos eventos mobilizados em seu nome. Se ao lermos livros antigos temos um acesso facultado à comunicação com os mortos – doutrina da historiografia moderna em sua relação com toda sorte de documentos -, por outro lado escrever é entrar no mundo dos mortos sem, no entanto, morrer completamente. Se é que é possível morrer completamente, por escrito, rastro que antecipa a morte sem matar completamente e que, de uma forma ou de outra, parece deixar as coisas exatamente assim fazendo da vida uma espécie de rumor tão perpétuo quanto o registro:

            A poeira do tempo persiste. É bom respira-la, ir, voltar por via desses papéis, dossiês e registros. Eles não são mudos e tampouco tão mortos quanto parecem. Jamais toquei em nada sem que algo saísse, se revelasse... É a alma.”(Michelet, 1979:45)

            A poeira sobre os arquivos onde Michelet comungava com os Processos Verbais da Revolução e, com isso, seguia os traços e a alma daqueles que revelavam as faces e detalhes da erupção que recriava toda a história francesa produzindo uma clivagem definitiva – ou tanto quanto uma clivagem definitiva pudesse perdurar. O antigo e o moderno numa batalha em que nomes de frontispícios como Rousseau e Montesquieu passam a desempenhar um papel de focos de remissão, sempre ambivalente, próprias da orientação bibliográfica que parece ser, antes de mais nada, de caráter anímico. Joseph Jacotot é rousseauniano, por exemplo, mas em Émile não é possível encontrar nada que não seja a sugestão de premissas que legitimam o mestre ignorante por via de um espaço em aberto sem ter nele, todavia, nenhuma forma de figuração ou via institucional de implementação. Não é preciso dizer que o contrato social não produziu nenhum acordo conciliatório ou que o espírito das leis anima muito mais coisas do que simplesmente uma definição racional de ordem política sem no entanto apontar consigo as visas de fato institucional – dilema do pensamento utópico concernente à crise inaugurada pelo pensamento revolucionário que Rosanvallon mitiga ao chama-lo meramente de ceticismo iluminista.

            Pertence à natureza da crise que uma decisão esteja pendente mas ainda não tenha sido tomada. Também reside em sua natureza que a decisão a ser tomada permaneça em aberto. Portanto, a insegurança geral de uma situação crítica é atravessada pela certeza de que, sem que se saiba ao certo quando ou como, o fim do estado crítico se aproxima. A solução possível permanece incerta, mas o próprio fim, a transformação das circunstâncias vigentes – ameaçadora, temida ou desejada -, é certo. A crise invoca a pergunta ao futuro histórico.: (Koselleck, 1999:111)

            A história da modernização das instituições, e da própria instituição da noção de governo na Europa moderna produz um ambiente em que aquilo que se pode chamar de “religião” é diluído em no conteúdo moral, o que implica na aposta da religião natural e de uma certa equivalência entre as religiões – isto é, uma indiferença segura entre elas. Esta indiferença pode ser traçada em algumas alterações fundamentais que pautam o terreno em que se altera a percepção do que é religioso e sua conversão, mais uma vez relativa, à moral. Uma delas, devidamente destacada por Michel de Certeau (1982, 151:208) está naquilo e que ele chama de transformação da heresia em alteridade religiosa na qual as diferenças que culminam em proscrição territorial dos cultos públicos em igrejas territorializadas tem seu lugar de fato e de direito. Os elementos de perseguição com seu caráter propriamente inquisitorial, ainda que persistentes, não são codificados nos arcanos de Estado, o que significa dizer que as regras do jogo mudaram – assim como aquilo que de fato está em jogo. Isto porque a mudança de seu estatuto implica necessariamente na alteração do enquadramento das seitas heréticas segundo um ou outro princípio. Nisso, a determinação jesuíta de que sugere que alguma religiosidade é melhor do que nenhuma ecoa como uma dimensão utilitária fundamental na qual todas as religiões contém princípios úteis à sociedade, segundo Montesquieu na carta 86 das Lettres perses, que encontram eco na necessidade da religião, da parte de Voltaire na manutenção da melhor ordem política. O que parece ser o movimento relevante, aquele que converte a religião em moral e a moral é ela mesma transformada reside no valor utilitário-funcional da religião e em como ela poderia ser útil; e útil para quê.
            Este é um jogo de combinatória bastante complexa, algo interminável. A combinação imediatamente interessante é aquela que anota a extrapolação do foro íntimo como terreno do político, algo interditado de forma expressa pelo absolutismo em sua diversidade. O que Koselleck aponta ao recuperar este episódio em questão, privilegiando enormemente o comentário a Hobbes é a produção da dimensão em que é gestada a crise, não somente como ato revolucionário mas também como mecanismo crítico que faz com que a crítica se desdobre vindo a se dobrar sobre si mesma. Entendendo que o império da lei que o absolutismo elabora estabelece algumas das primeiras interdições definitivas ao poder eclesiástico[1] (o primeiro estado), o que se lê em Hobbes é uma distinção radical entre ordem política e convicção, esta vivendo sob o Império da liberdade. Desde que em segredo.

            Assim, o homem é partido em dois. Hobbes o divide em uma metade privada e outra pública: os atos e as ações são submetidas, sem exceção, à lei de Estado, mas a convicção é livre, “in secret free”. Daí em diante será possível ao indivíduo refugiar-se em sua convicção sem ser responsável. Na medida em que o indivíduo tomava parte no mundo da política, a consciência tornava-se apenas uma instância de controle do dever de obediência. A ordem soberana dispensava o indivíduo de qualquer responsabilidade. “A Lei é a Consciência pública; Consciências privadas... são apenas opiniões privadas”. Mas,  se o indivíduo se atribui competência em um domínio reservado ao Estado, ele deve mistificar-se para não ser obrigado a prestar contas. A divisão do homem em uma esfera privada e uma esfera pública é constitutiva da gênese do segredo. O Iluminismo irá sucessivamente ampliar o foro interior da convicção; qualquer pretensão que incorresse em um domínio do Estado permanecia forçosamente encoberta pelo véu do segredo. A dialética entre segredo e movimento iluminista, desmascaramento e mistificação, surge desde o início do Estado absolutista.” (Koselleck, 1999:37)

            O que é instaurado pela crise revolucionária é a abolição desta fronteira na medida em que os grupos secretos que se reuniam em volta de suas aspirações morais em associações as mais variadas atingiram à marca da conspiração generalizada na medida em que reunir-se para certos fins seria o equivalente a conspirar. E conspirar necessariamente implicaria numa forma de ameaça interna estabelecendo outros paradigmas do reconhecimento do inimigo que não fossem ex-fronteira numa lógica de englobamento de contrários, o que já foi, forçando numa relação de analogia, o exercício com relação aos cultos heréticos.  Neste sentido a Revolução não implica na extinção da instância conspiratória de foro íntimo, mas na generalização da conspiração para todas as regiões tributáveis e, com isso a produção de conhecimentos compatíveis com o exercício das formas de poder presentes.

            O saber histórico-filosófico e o programa político fazem parte do mesmo segredo. A iniciação ao arcanum da tomada indireta do poder [o objeto desta passagem é o Iluminismo alemão]  era, ao mesmo tempo, uma iniciação à filosofia da história. Os próprios iluminados são os “arquivos da natureza” em que o curso da história já está estabelecido. Como em Rousseau, reina o início da história um estado total de inocência; segue-se um período de dominação e opressão; finalmente, inicia-se a moral que Jesus já havia ensinado, retomado pelas sociedades secretas para superar a era do dualismo. Alto e baixo, inferior e exterior deixam de ser fenômenos históricos, pois com o desenvolvimento sucessivo da moral desaparece toda forma de autoridade e, assim, também o Estado. Para os iluminados, o curso da história é ao mesmo tempo – graças à sua iniciação – a realização do seu plano secreto, de acordo com o qual esperavam eliminar o Estado. O curso dirigido da ação secreta, que consistia em minar o Estado por dentro para eliminá-lo – isto é, a ação política – foi projetado em uma linha temporal do futuro, de modo que o cumprimento dos desígnios da história era, ao mesmo tempo, a garantia da vitória não violenta da moral, da liberdade e da igualdade, e, portanto, o cumprimento da missão política dos maçons.”(Koselleck, 1999:116)

            Como podemos ver, compreender o fenômeno revolucionário é um exercício muito mais complexo do que a promoção de leituras de tipo “herança maldita” à forma de Rosanvallon. Não porque não exista, mas por mobilizar muito mais do que alguma forma específica de ceticismo diante as formas simbólicas da tradição. O que está se inaugurando é um modo de relação e, com isso, um reposicionamento dos termos e uma conformação que dá uma certa unidade dos discursos oferecendo à Revolução o seu caráter propriamente mitológico no qual as convicções puderam, finalmente, sair do armário – especialmente na forma de poder indireto, como seria o caso de ferramentas como a filosofia da história (Koselleck, 1999:118). Entra em pauta a diferença entre Estado e sociedade, sociedade esta como equalizadora das demais diferenças como as de caráter religioso – prédicas da igualdade jurídica entre todos os cidadãos cujo fundamento é moral. Temos até agora, em mãos, dois dos principais termos da alegoria política revolucionária: liberté e égalité, nenhum deles exercido no seio do Estado que deve ser, na circunstância ótima de sua justificação, o seu garante ou tutor. Não mais soberano, portanto, o Estado é um meio de concretização de aspirações cuja relação com os cidadãos segue a lógica do mistério no qual não cabe nenhuma justificação plausível senão a tomada de decisões e a condução administrativa – eis o pós-revolucionário em sua versão prosaica.
            O que se faz então tendo em mente não somente a Revolução mas a partir da problematização dos excessos e crimes cometidos durante o Terror abrem guarda para o redimensionamento da vontade geral como futuro indiscernível da composição entre Estado e sociedade para a composição do preenchimento institucional por projetos que recusem a dissimulação que faz com que projetos políticos sejam tratados como filosofia da história. A herança crítica do Iluminismo – a crise – produziu um terreno no qual a política passa a operar com o horizonte da probabilidade matemática cuja generalização não se dá senão de forma tardia mas que tem seu ponto de partida nos projetos articulados na geração dos idéologues:

            O esforço dos ideólogos para fundar a política e a moral cientificamente desdobra-se em três direções. A primeira é a “matemática social”. A expressão é de Condorcet em seu Tableau general de la Science qui a pour objet l’application du calcul aux sciences Morales et politiques. Ao fundar a ciência do provável ou ciência da decisão tinha como objetivo instituir uma disciplina que englobaria por sua vez a análise social e a matemática. A inspiração é, naturalmente, parente daquela Arithmétique politique tradicional que fora retomada inegavelmente no começo da Revolução por via da publicação dos trabalhos de Lagrange e de Lavoisier.”(Rosanvallon, 1985:21-22)

            As outras duas dimensões as quais Rosanvallon menciona são a fisiologia social, cuja referencia fundamental é a figura de Cabanis e, obviamente, a economia política, disciplina vigente desde o exercício dos fisiocratas. A primeira criação tem como objetivo a constante de observações relativas à dimensão moral, sinal diacrítico de humanidade cuja ciência se ampara na fisiologia, na análise das idéias (daí ideologues) e na moral. Nestes termos, especialmente a partir de 1814 – fim do Império de Napoleão – este tipo de projeto político se amarra no que Rosanvallon chama de cultura de oposição liberal que clama, ao mesmo tempo por uma cultura de governo que desenvolva do ponto de vista técnico aquilo que seguira como um salto no vazio do futuro interpretado pelo arcano da vontade geral. Em determinado círculo, imediatamente relevante para o tema e questão, se faz “necessário terminar a Revolução, construir um governo representativo estável e estabelecer um governo garante das liberdades fundadas na e pela Razão.” (Rosanvallon, 1985:26). O alvo das investigações de Rosanvallon é uma espécie de liberalismo reformado pelos eventos revolucionários nos quais as ações deliberadas também recaíram sob suspeição e que, diante disso, faz com que a religião que já determinada a uma função moral de utilidade tenha seu denominador comum igualmente reformado. A moral como modo integra a imaginação de meio, no caso, de governo. Daí a pertinência dos projetos relativos à Instrução Pública; também a pertinência de figuras como a de François Guizot e o destino das religiões durante e após a Revolução. Porque ele mesmo, Guizot, condutor da reforma da instrução pública francesa nos anos 1830, é calvinista.


[1] Ao discutir as dimensões em que a religião é transformada em forma de politização e folclorização, Michel de Certeau (1985) recupera episódios em que a ética cristã é considerada já destruída ou metamorfoseada em controle político. A querela do jansenismo situa este problema ao contrapor a mediação estatal com a mediação religiosa procurando estabelecer a melhor clivagem entre uma e outra. Do agostinianismo radical jansenista – e aqui, convém notar, ”agostinianismo” denota tanto uma nota que é tanto teológica quanto política – a única mediação possível é a da coroa, uma vez que a mediação religiosa pertence a Jesus Cristo, e somente a ele, questionando fortemente a autoridade papal e seu papel no pastoreio das almas. Nisso, é a autonomia da vida pública que entra em questão privatizando eventos como os de ordem mística dissociando a vida cristã das práticas civis: “Este tipo de combinação já esboça uma organização que se generaliza no século XVIII. Pode-se dizer também que a reflexão das Luzes exuma os postulados dela extraindo as suas consequências teóricas. Certamente isto não mais acontece sob a forma belicosa que a politização da moral havia adquirido entre os apologetas da “razão de Estado” sob Richelieu. Seu lugar, entretanto, permanece o mesmo: uma “razão” política de práticas articuladas  entre elas. Mas ele não é mais feito apenas pelos juristas ou clientes do rei; é constituído durante os anos decisivos de 1660-1680. O Estado se torna o centro poderoso da administração nacional, a grande empresa de racionalização econômica, financeira e estatística. “Pertence quase todo ao domínio do voluntário, do deliberado”: é o arco da nova aliança entre a razão (o Logos) e o fazer (as práticas que fazem a história). O século XVIII é “por excelência o século da política, logo, o século do Estado.”(Certeau, 1985:173:174). Convém ressaltar que a deliberação não está atrelada à decidir por convicção moral, mas por adequação a uma estrutura de decisão própria ao Estado como instância deliberativa. Ainda que hajam agentes religiosos, age-se fora da religião inclusive, progressivamente, do ponto de vista litúrgico.

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