segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.



LAGRÉE, Michel . Religião e tecnologia: a bênção de Prometeu. EdUSC. Bauru. 2002.
TAUSSIG, Michael. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem: um ensaio sobre o terror e a cura. Paz e Terra. São Paulo. 1993.
TYLOR, Edward Burnett. Primitive Culture: researches into the development of mythology, philosophy, religion, language, art and custom. John Murray. Londres. 1873 [1871]



2- Numa outra ponta, já no final do século XIX, no outro lado do canal da Mancha, uma pesquisa que mais adiante virá a se oferecer para a antropologia social como um cânone de um passado trágico. “The enquiry as to the relation of savagery to barbarism and semi-civilization is almost entirely in pre-historic or extra-historic regions. This is of course an unfavourable condition, and must be frankly accepted.” (Tylor, 1873:35). Uma pesquisa em que conceitos fundamentais, cultura e civilização, são tomados como sinônimos relativos – isto é, sinônimos quando um e outro se relacionam somente entre si numa remissão selvagem. Não quero avançar ainda mais sem levar em conta, assim como o faz a historiografia de Michel Lagrée (2002), de que se trata de um pensamento conduzido pela imagem da industrialização, imagem esta que pergunta sobre a selvageria do e no industrialismo. Se falamos sobre o selvagem do industrialismo, nos remetemos à imanência selvagem, ao selvagem implícito nas ações de industriais e seus ideais de forma similar aos selvagens da colonização na dialética apontada por Michael Taussig (1993) – no universo em que a última fronteira são os selvagens, só a selvageria se impõe fazendo da violência, igualmente selvagem, uma relação de vínculo e, ao mesmo tempo, de indistinção. Assim, há algo de selvagem no seio do industrialismo em que a exploração do trabalho é, seguramente, uma das suas dimensões mais visíveis.
            Se falamos sobre a selvageria no industrialismo, então o tópico é o da identificação numa tábula classificatória em que o caráter da ação é propriamente simbólico e, portanto, transcendental dizendo respeito aos métodos de observação que fazem o selvagem figurar na codificação das teorias industriais, dentre as quais a antropologia social. Que se diga que nem toda antropologia moderna é industrial e que as trilhas abertas por Tylor não são necessariamente formas de uso comum de evolucionismo. Ainda assim, em Primitive Culture encontramos o vocabulário comum às teorias do desenvolvimento e do progresso onde reside de fato sua reflexão sobre a industrialização que é, vale lembrar, um modo da ação humana que tange discussões complexas sobre a organização social em suas mais diversas faces. Sua generalização, e a antropologia de Tylor não é outra coisa, tem efeitos tão interessantes quanto o teve a noção de verdade revelada – isto é, visto do ponto de vista industrialista.
            A evocação da verdade revelada, e com ela todo o universo religioso politicamente relevante em meio ao jogo da planificação da vida em comum da economia política, conduzem a leitura dos escritos de Tylor para a cena do desalojamento do religioso, de sua condição futura de locatário e de como a reflexão industrial o trata como um meio para um devir que deveio. O futuro se faz presente em cada gesto, não sendo o futuro da perfeição da Civitate Dei antecipada pela Igreja Romana mas o futuro da sociedade perféctil da Civitate Homini cuja força se encontra canalizada pelos dutos de energia à vapor. A história já sofre, aqui, as tentações da termodinâmica. Neste ambiente em especial convém perguntar se é possível tratar o industrialismo antropológico como mais uma das respostas ao absolutismo teológico e ao juízo sintético histórico que responde pelo conceito de “secularização”. Particularmente se colocarmos, como o faz Tylor, as lentes que enxergam a história por movimentos de difusão cultural e o drama das sobrevivências que, com relação à modernidade têm especial valor na discussão sobre formas jurídicas com relação às quais convém perguntar se são meio ou forma de vida; e se no contexto adaptativo mais radical que põe as formas de vida em risco de extinção, se convém narrarmos a seleção natural por via da mecânica clássica ou se há margem para algum dispositivo com a forma de uma evolução criadora que o neo-lammarckismo hoje chama de epigenética.
            Antes de mais nada convém avançar com certo comedimento, porque há muita velocidade na antropologia de Tylor. Os deslocamentos geográficos e históricos se dão a serviço de uma colagem sem preocupações relativas à etiqueta, diplomacia ou liturgia – de cargo ou de sacramento. O mesmo se dá com a sinonímia entre civilização e cultura, que é imediata e ligeira; o pré-histórico e o extra-histórico se apresentam como indiferentes entre si determinando terem o mesmo significado – no que faz surgir a primeira dificuldade. Isto porque os conceitos mobilizados por Tylor não têm significado preciso. Sua definição se dará por regiões, que é o que fará par com o conceito enquanto significante, dado que são remissíveis a formas de vida. Quando ainda no primeiro capítulo de Primitive Culture Tylor desabilita a antropologia racista ao buscar a refutação da fundamentação poligenista de seus pressupostos, o mesmo Tylor faz uma remissão secreta a Claude Bernard, em nome da classificação dos estágios culturais – que, de uma forma pervertida é a transformação, mesmo que não intencional (diria um leitor de Karl Löwith) da teologia de Joachim dei Fiori em uma teoria, não do futuro, mas do presente. A fisiologia corre nas veias do industrialismo na medida em que, para o melhor entendimento da distribuição global da humanidade , será preciso “dissecar detalhadamente e então classificar” (1973:07) em grupos que correspondam à espécie como são os utensílios, o artesanato, os mitos e tudo o mais que seja fruto da atividade humana, esta espécie industriosa.

            What this task is like, may be almost perfectly illustrated by comparing these details of culture with the species of plants and animals studied by the naturalist. To the ethnographer, the bow and arrow is a species, the habit of flattening children’s skull is a species, the practice of reckoning numbers by tens is a species. The geographical distribution of these things, and their transmission from region to region, have to be studied as the naturalist studies the geography of his botanical and zoological species.” (1873:07)

            Há aqui, antes de qualquer outra coisa, o eco da proliferação das teses sobre a especificação. Torna-se muito difícil, na verdade, saber o que é uma espécie e, todavia, os artefatos humanos devem ser convertidos neste utensílio classificatório e sua classificação responde à conformação geográfica produtiva na qual a cultura parece corresponder a uma certa infra-estrutura de produção e, ao mesmo tempo, no produto ele mesmo. O significado é fundamentalmente o indício de sua sobrevivência em meios mais ou menos hostis – o modo de compreensão da relação com as demais formas de vida com as quais compete, principalmente, por subsistência (uma variação do tema do connatus).
            No entanto, vemos que o etnógrafo deve reconhecer nos artefatos os traços de uma forma de vida, o que faz do reconhecimento de formas culturais um componente anímico do pensamento expresso em índices reconhecíveis. É o etnógrafo que vamos reconhecer, tramando na prosa de Tylor (e não pela prosa dele) o encontro entre o selvagem imanente e o transcendental, o que permite refletir melhor sobre o industrialismo como aceleração produzido por regiões de indiferença. Assim, para que uma teoria da cultura aos modos da antropologia do progresso da espécie humana seja posta em questão é preciso reconhecer que tanto faz o conceito ter tal ou qual significado. O que importa para o esquema  é a especificidade da forma de vida em seus traços constitutivos, a forma pela qual pode ser reconhecida e que a conduz à sua própria generalidade. Mas, e aqui arrisco dizer sem o devido exame, não é qualquer conceito cujo significado é indiferente, mas somente os conceitos fundamentais, como civilização e cultura mostrando, metodologicamente, um exercício contrateológico no qual o fundamento não está na palavra proferida, mas nas extensões que ela produz

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