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domingo, 12 de julho de 2015

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre as ruínas e o fantasma do religioso.


3 – França -Os desdobramentos dos acontecimentos revolucionários, os de 1793 em particular, provocaram uma interrogação fundamental a respeito do sentido da idéia de democracia vindo assim a deslocar o centro de gravidade da reflexão política. No começo do século XIX a questão crucial que toda uma parte dos autores “liberais” busca resolver é a das relações entre liberalismo e democracia. Seu objetivo é de compreender as condições nas quais o ideal democrático da participação na coisa pública se voltou, com ferocidade, contra as liberdades.  (Rosanvallon, 1985:14)

            O hiato revolucionário, eis o alvo de Rosanvallon na recuperação de uma determinada memória e imaginação políticsa então precipitada, não das barricadas, mas dos esforços de seu desmonte. Esta tarefa, saliento, somou esforços de todo um século dado que o hiato é mais sutil e trabalhoso do que uma espécie de lapso que se interpõe entre a Revolução e o futuro. A história política francesa que atende aos apelos do liberalismo político do século XVII se volta fundamentalmente para a resolução de problemas que a orientação dos escritos de pensadores como Rousseau e Montesquieu simplesmente não poderiam prever. Não me refiro, obviamente, a nenhum componente da escatologia secularizada e as tragédias narradas em suas entranhas. Estou apontando para o problema, nada banal, de que Rousseau e Montesquieu são, ao mesmo tempo, pensadores e agentes políticos quando vivos; são nomes nos frontispícios de livros que circulam a despeito do que viessem a fazer, ou de onde estivessem e qual sua posição relativa aos eventos mobilizados em seu nome. Se ao lermos livros antigos temos um acesso facultado à comunicação com os mortos – doutrina da historiografia moderna em sua relação com toda sorte de documentos -, por outro lado escrever é entrar no mundo dos mortos sem, no entanto, morrer completamente. Se é que é possível morrer completamente, por escrito, rastro que antecipa a morte sem matar e que, de uma forma ou de outra, parece deixar as coisas exatamente como estão fazendo da vida uma espécie de rumor tão perpétuo quanto será o seu registro:

            A poeira do tempo persiste. É bom respira-la, ir, voltar por via desses papéis, dossiês e registros. Eles não são mudos e tampouco tão mortos quanto parecem. Jamais toquei em nada sem que algo saísse, se revelasse... É a alma.”(Michelet, 1979:45)

            A poeira sobre os arquivos era onde Michelet comungava com os Processos Verbais da Revolução e, com isso, seguia os traços e a alma daqueles que revelavam as faces e detalhes da erupção que recriava toda a história francesa produzindo uma clivagem definitiva – ou tanto quanto uma clivagem definitiva pudesse perdurar. O antigo e o moderno numa batalha em que nomes de frontispícios como Rousseau e Montesquieu passam a desempenhar um papel de focos de remissão, sempre ambivalente, próprias da orientação bibliográfica que parece ser, antes de mais nada, de caráter anímico de sua própria difusão. Joseph Jacotot é rousseauniano. Mas em Émile não é possível encontrar nada que não seja a sugestão de premissas que legitimam o mestre ignorante por via de um espaço em aberto sem ter nele nenhuma forma de figuração ou via institucional, e muito menos a técnica de implementação da educação natural. Não é preciso dizer que o contrato social, em si, não produziu nenhum acordo conciliatório ou que o espírito das leis anima muito mais coisas do que simplesmente uma definição racional dos sistemas políticos sem no entanto servir de constituição para país algum. Este componente próprio do dilema do pensamento utópico é concernente à crise inaugurada pelo pensamento revolucionário que Rosanvallon, em remissão constante à obra de Reinhart Koselleck, mitiga ao chama-lo meramente de ceticismo iluminista.

            Pertence à natureza da crise que uma decisão esteja pendente mas ainda não tenha sido tomada. Também reside em sua natureza que a decisão a ser tomada permaneça em aberto. Portanto, a insegurança geral de uma situação crítica é atravessada pela certeza de que, sem que se saiba ao certo quando ou como, o fim do estado crítico se aproxima. A solução possível permanece incerta, mas o próprio fim, a transformação das circunstâncias vigentes – ameaçadora, temida ou desejada -, é certo. A crise invoca a pergunta ao futuro histórico. (Koselleck, 1999:111)

            A história da modernização das instituições, e da própria instituição da noção de governo na Europa moderna, produz um ambiente em que aquilo que se pode chamar de “religião” é diluído [1]no conteúdo moral, na esfera dos costumes e da convicção ética, o que implica na aposta da religião natural e de uma certa equivalência entre as religiões – isto é, uma indiferença segura entre elas. Os elementos de perseguição com seu caráter propriamente inquisitorial, ainda que persistentes, não estão mais codificados nos arcanos de Estado, o que significa dizer que as regras do jogo mudaram – assim como aquilo que de fato está em jogo. Isto por que a mudança de seu estatuto implica necessariamente na alteração do enquadramento das seitas heréticas segundo um ou outro princípio. Nisso, a determinação jesuíta que sugere que alguma religiosidade é melhor do que nenhuma ecoa como uma dimensão utilitária fundamental na qual todas as religiões contém princípios úteis à sociedade, segundo Montesquieu na carta 86 das Lettres perses, que encontram eco na necessidade da religião, da parte de Voltaire, o cimento da melhor ordem política – qualquer religião. [2]O que parece ser o movimento relevante, aquele que converte a religião em moral sendo a moral ela mesma transformada, reside no valor utilitário-funcional da religião e em como ela poderia ser útil; e útil para quê.
            Este é um jogo de combinatória bastante complexa, algo interminável. A combinação imediatamente interessante é aquela que anota a extrapolação do foro íntimo como terreno do político, algo interditado de forma expressa pelo regime absolutista que produzira o primeiro divórcio litigioso entre religião e política da França católica. O que Koselleck aponta ao recuperar este episódio em questão, privilegiando enormemente o comentário a Hobbes, é a produção da dimensão em que é gestada a crise, não somente como ato revolucionário mas, também, como mecanismo crítico que faz com que a crítica se desdobre vindo também a dobrar-se sobre si mesma. Entendendo que o império da lei que o absolutismo elabora estabelece algumas das primeiras interdições definitivas ao poder eclesiástico[3] (o primeiro Estado), o que se lê em Hobbes é uma distinção radical entre ordem política e o domínio da convicção, este vivendo sob o Império da liberdade, desde que em segredo.

            Assim, o homem é partido em dois. Hobbes o divide em uma metade privada e outra pública: os atos e as ações são submetidas, sem exceção, à lei de Estado, mas a convicção é livre, “in secret free”. Daí em diante será possível ao indivíduo refugiar-se em sua convicção sem ser responsável. Na medida em que o indivíduo tomava parte no mundo da política, a consciência tornava-se apenas uma instância de controle do dever de obediência. A ordem soberana dispensava o indivíduo de qualquer responsabilidade. “A Lei é a Consciência pública; Consciências privadas... são apenas opiniões privadas”. Mas,  se o indivíduo se atribui competência em um domínio reservado ao Estado, ele deve mistificar-se para não ser obrigado a prestar contas. A divisão do homem em uma esfera privada e uma esfera pública é constitutiva da gênese do segredo. O Iluminismo irá sucessivamente ampliar o foro interior da convicção; qualquer pretensão que incorresse em um domínio do Estado permanecia forçosamente encoberta pelo véu do segredo. A dialética entre segredo e movimento iluminista, desmascaramento e mistificação, surge desde o início do Estado absolutista.” (Koselleck, 1999:37)

            O que é instaurado pela crise revolucionária é a abolição desta fronteira na medida em que os grupos secretos que se reuniam em volta de suas aspirações morais em associações as mais variadas atingiram à marca da conspiração generalizada na medida em que reunir-se para certos fins seria o equivalente a conspirar. E conspirar necessariamente implicaria numa forma de ameaça interna estabelecendo outros paradigmas do reconhecimento do inimigo que não fossem ex-fronteira numa lógica de englobamento de contrários, este que já fora exatamente o exercício com relação aos cultos heréticos.  Neste sentido a Revolução não implica na extinção da instância conspiratória de foro íntimo, mas na generalização da conspiração para todas as regiões tributáveis e, com isso a produção de conhecimentos compatíveis com o exercício das formas de poder presentes.

            O saber histórico-filosófico e o programa político fazem parte do mesmo segredo. A iniciação ao arcanum da tomada indireta do poder [o objeto desta frase é o Iluminismo alemão]  era, ao mesmo tempo, uma iniciação à filosofia da história. Os próprios iluminados são os “arquivos da natureza” em que o curso da história já está estabelecido. Como em Rousseau, reina o início da história um estado total de inocência; segue-se um período de dominação e opressão; finalmente, inicia-se a moral que Jesus já havia ensinado, retomado pelas sociedades secretas para superar a era do dualismo. Alto e baixo, inferior e exterior deixam de ser fenômenos históricos, pois com o desenvolvimento sucessivo da moral desaparece toda forma de autoridade e, assim, também o Estado. Para os iluminados, o curso da história é ao mesmo tempo – graças à sua iniciação – a realização do seu plano secreto, de acordo com o qual esperavam eliminar o Estado. O curso dirigido da ação secreta, que consistia em minar o Estado por dentro para eliminá-lo – isto é, a ação política – foi projetado em uma linha temporal do futuro, de modo que o cumprimento dos desígnios da história era, ao mesmo tempo, a garantia da vitória não violenta da moral, da liberdade e da igualdade, e, portanto, o cumprimento da missão política dos maçons.”(Koselleck, 1999:116)

            Como podemos ver, compreender o fenômeno revolucionário é um exercício muito mais complexo do que a promoção de leituras de tipo “herança maldita” à forma de Rosanvallon. Não porque tal herança, a longa produção de uma Reforma do Estado, não exista, mas por mobilizar muito mais do que alguma forma específica de ceticismo diante das formas simbólicas tradicionais. O que está se inaugurando é um modo, uma escala de relação e, com isso, um reposicionamento dos termos e uma conformação que dá uma certa unidade dos discursos que oferecem à Revolução o seu caráter propriamente mitológico onde as convicções puderam, finalmente, sair do armário – especialmente na forma de poder indireto, como seria o caso de ferramentas como a filosofia da história (Koselleck, 1999:118). Entra em pauta a diferença entre Estado e sociedade, sociedade esta como equalizadora das demais diferenças como as de caráter religioso predicado nos termos da igualdade jurídica entre todos os cidadãos, cujo fundamento é moral. Temos até agora, em mãos, dois dos principais termos da alegoria política revolucionária: liberté e égalité, nenhum deles exercido no seio do Estado que deve ser, na circunstância ótima de sua justificação, o seu garante ou tutor. Não mais soberano, portanto, o Estado é um meio de concretização de aspirações cuja relação com os cidadãos segue a lógica do mistério no qual não cabe nenhuma justificação plausível senão a tomada de decisões e a condução administrativa – eis o pós-revolucionário em sua versão prosaica.
            O que se faz então tendo em mente é não somente a Revolução mas, a partir da problematização dos excessos e crimes cometidos durante o Terror, o redimensionamento da vontade geral como futuro indiscernível da composição entre Estado e sociedade por via de seu preenchimento institucional que recusasse a dissimulação desta nova aliança, enquadrando tais projetos políticos na gramática da filosofia da história. A herança crítica do Iluminismo – a crise – produziu um terreno no qual a política passa a operar como horizonte da probabilidade matemática cuja generalização não se dá senão de forma tardia, mas que tem seu ponto de partida nos projetos articulados na geração dos idéologues:

            O esforço dos ideólogos para fundar a política e a moral cientificamente desdobra-se em três direções. A primeira é a “matemática social”. A expressão é de Condorcet em seu Tableau général de la Science qui a pour objet l’application du calcul aux sciences Morales et politiques. Ao fundar a ciência do provável ou ciência da decisão, tinha como objetivo instituir uma disciplina que englobaria, por sua vez, a análise social e a matemática. A inspiração é, naturalmente, parente daquela Arithmétique politique tradicional que fora retomada inegavelmente no começo da Revolução por via da publicação dos trabalhos de Lagrange e de Lavoisier.”(Rosanvallon, 1985:21-22)

            As outras duas dimensões que Rosanvallon menciona são a fisiologia social, cuja referência fundamental é a figura de Cabanis e, obviamente, a economia política, disciplina vigente desde o exercício dos fisiocratas do Antigo Regime. A primeira criação tem como objetivo a constante de observações relativas à dimensão moral, sinal diacrítico de humanidade cuja ciência se ampara na fisiologia, na análise das idéias (daí ideologues) e na moral. Nestes termos, especialmente a partir de 1814 – fim do Império de Napoleão – este tipo de projeto político se amarra no que Rosanvallon chama de cultura de oposição liberal que clama por uma cultura de governo que desenvolva, do ponto de vista técnico, aquilo que seguira como um salto no vazio do futuro interpretado pelo arcano da vontade geral rousseauniana. Em determinado círculo, imediatamente relevante para o tema e questão, se faz “necessário terminar a Revolução, construir um governo representativo estável e estabelecer um governo garante das liberdades fundadas na e pela Razão.” (Rosanvallon, 1985:26). O alvo das investigações de Rosanvallon é uma espécie de liberalismo reformado pelos eventos revolucionários nos quais as ações deliberadas também recaíram sob suspeição. Diante disso, fazem com que a religião que, já designada para exercer uma função moral, tenha seu denominador comum igualmente reformado e como tal, sob o signo da suspeição. A moral como modo de relação de escalas variáveis integra a imaginação de meio de condução de um governo. Daí a pertinência dos projetos relativos à Instrução Pública; também a pertinência de figuras como a de François Guizot e o destino das religiões durante e após a Revolução. Porque ele mesmo, Guizot, condutor da reforma da instrução pública francesa nos anos 1830, é calvinista[4].


[1] Como já vimos, esta indiferença pode ser traçada em algumas alterações fundamentais que pautam o terreno da mudança de percepção do que é religioso e sua conversão, mais uma vez, à moral. Uma delas, devidamente destacada por Michel de Certeau (1982, 151:208) está naquilo e que ele chama de transformação da heresia em alteridade religiosa na qual as diferenças que outrora culminavam em proscrição territorial dos cultos públicos em igrejas territorializadas passa a ter seu lugar de fato e de direito.
[2] Este tipo de afirmação equivale dizer que uma religião é, por fim, uma religião qualquer, o que é uma forma de inversão da teologia política em busca da negação de sua possibilidade exatamente ao dispor a equivalência entre todas as matrizes teológicas. Resta saber se esta negação, liberal e iluminista, equivale a uma teologia política negativa. Nos casos de Montesquieu e Voltaire, arrisco dizer que sim, no sentido e que religião é aquilo que se manifesta em todas as religiões sem ser nenhuma delas. No entanto, sugerir este tipo de solução não permite compreender como determinadas clivagens são vividas. A dimensão negativa dos objetos modernos, os mesmos que preside a alvorada da modernidade religiosa, recebe a atençãoo de Johannes Fabian, que aqui, merece atenção: “Em geral, os philophes, a quem reconhecemos em muitos aspectos como os nossos antepassados imediatos, alcançaram somente um tipo de modernidade negativa. Nas palavras de Carl Becker: “Suas negações, e não suas afirmações, nos permitem tratá-los como almas gêmeas” – The heavenly city of the Eithteenth-Century Philosophers (1963:30). Ou, como exprime Gusdorf, esses pensadores substituíram o mito cristão de Bossuet pelo “mito-história da razão” que, em grande parte, continuou a utilizar mecanismos de períodos anteriores. Se alguém deseja mostrar como o Tempo se tornou secularizado do século XVIII em diante, deve se concentrar na transformaçãoo da mensagem da “história universal, em vez de nos elementos de seus códigos. Este último exibe uma notável continuidade em relação a períodos anteriores, até os cânones greco-romanos das artes da memória e retórica. A transformação da mensagem tinha que ser operada sobre aquilo que identificamos como a especificidade da “universalidade” cristã. A mudança também tinha que ocorrer no nível da intenção ou “julgamento” político. Foi nesse nível que os philosophes precisaram sobrepujar Bossuet, que “nunca se mostrou relutante em julgar todo o passado à luz do evento mais importante de todos os tempos: a breve passagem do homem-deus Jesus por uma vida terrena”- Introdução de Discourse on Universal History, (1976:xxvi)” (Fabian, 2013:43).
[3] Ao discutir as dimensões em que a religião é transformada em forma de politização e folclorização, Michel de Certeau (1985) recupera episódios em que a ética cristã é considerada já destruída ou metamorfoseada em controle político. A querela do jansenismo situa este problema ao contrapor a mediação estatal com a mediação religiosa procurando estabelecer a melhor clivagem entre uma e outra. Do agostinianismo radical jansenista – e aqui, convém notar, ”agostinianismo” é tanto teológico quanto político – a única mediação possível é a da coroa, uma vez que a mediação religiosa pertence a Jesus Cristo, e somente a ele, questionando a autoridade papal e seu papel no pastoreio das almas. Nisso, é a autonomia da vida pública que entra em questão privatizando eventos como os de ordem mística e dissociando a vida cristã das práticas civis: “Este tipo de combinação já esboça uma organização que se generaliza no século XVIII. Pode-se dizer também que a reflexão das Luzes exuma os postulados dela extraindo as suas consequências teóricas. Certamente isto não mais acontece sob a forma belicosa que a politização da moral havia adquirido entre os apologetas da “razão de Estado” sob Richelieu. Seu lugar, entretanto, permanece o mesmo: uma “razão” política de práticas articuladas  entre elas. Mas ele não é mais feito apenas pelos juristas ou clientes do rei; é constituído durante os anos decisivos de 1660-1680. O Estado se torna o centro poderoso da administração nacional, a grande empresa de racionalização econômica, financeira e estatística. “Pertence quase todo ao domínio do voluntário, do deliberado”: é o arco da nova aliança entre a razão (o Logos) e o fazer (as práticas que fazem a história). O século XVIII é “por excelência o século da política, logo, o século do Estado.”(Certeau, 1985:173:174). Convém ressaltar que a deliberação não está atrelada ao ato de decidir por convicção moral, mas por adequação a uma estrutura de decisão própria ao Estado como instância deliberativa. Ainda que hajam agentes religiosos, age-se fora da religião inclusive, progressivamente, do ponto de vista litúrgico.
[4]Les protestants (on entendra désormais par ce terme les calvinistes) n’ont pas d’existence légale en France depuis l’édit de Fointainebleau de 1685, qui révoquait l’édit de Nantes. Encore, l’édit de 1685 reconnaissait-il, à defaut de la liberté de culte, la liberté de croyence personelle aux réformés, mais leurs enfants devaient être élevés dans le catholicisme, et la déclaration du 8 mars 1715 considère que le « long séjour en France » des anciens réformés « était une preuve suffisante qu’ils avaient embrassé la religion catholique ». On ne connaît donc plus de protestants, mais seulement des « nouveaux convertis » » (Cousin et al., 1989 :47).  Guizot não é, contudo, o pioneiro como um protestante figurando na política ministerial na França. Este papel cabe a Jacques Necker que, de 1776 a 1781 e, então, 1788 foi diretor geral de finanças. Mas, a nota é importante, não foi jamais ministro de Estado uma vez que estes cargos estavam vetados para a ocupação de quadros protestantes.

sábado, 3 de janeiro de 2015

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro. Contraponto. 2006. 

ROSANVALLON, Pierre. L’État en France de 1789 à nos jours. Seuil. Paris 1990. 

15- Há um tríptico a ser respeitado com relação ao regime de prognósticos em disputa. Do sistema de adivinhações pelo vôo dos pássaros à curva regular dos platôs estatísticos, uma terceira dimensão faz parte a cena dos prognósticos. Afinal, o tempo futuro também pertence à escatologia, terreno no qual a Revolução francesa se fará, à luz da reflexão de Reinhart Koselleck (2006), herdeira da Reforma luterana – afinal, grande parte de seu repertório diz respeito a uma reforma de Estado sem precedentes. Assim, da mesma forma que a Reforma luterana traz consigo sinais do fim do mundo condensados em um futuro abreviado, num fim por vir cujo desdobramento seria o próprio sentido da história humana, a Revolução culmina como determinação de um novo tempo – o que aproxima o evento a uma espécie de condição mítica abordada tanto por Lévi-Strauss, François Furet e Hayden White.

Em 10 de maior de 1793, em seu famoso discurso sobre a Constituição revolucionaria Robespierre declara: “é chegada a hora de conclamar cada um para seu verdadeiro destino. O progresso da razão humana preparou esta grande Revolução, e vós sois aqueles sobre os quais recai o especial dever de acelerá-la”. A providencial fraseologia de Robespierre não é capaz de dissimular o horizonte que expectativa alterou-se em relação à situação inicial. Para Lutero, a abreviação do tempo é um sinal visível da vontade divina de permitir que sobrevenha o Juízo Final, o fim do mundo. Para Robespierre, a aceleração do tempo é uma tarefa do homem, que deverá introduzir os tempos da liberdade e da felicidade, o futuro dourado. Ambas as posições, assim como o fato de que a Revolução derivou da Reforma, marcam o início e o fim do período de tempo aqui considerado.” (Koselleck, 2006:25)

Tanto a Reforma quanto a Revolução oferecem diferentes fraturas temporais com relação às quais servem como meios de aceleração – seja por via da história da salvação (heilgeschichte), seja por via da história política -, diferenças essas que reconstituem formas de temporalização diferentes que entram em causa na longa reforma do Estado absolutista – no caso francês, de Louis XIII a Louis XIV (cujo entremeio conta com Richelieu e Mazarin). Dispor lado a lado Robespierre e Lutero é dispor o prognóstico e o profético face a face. Assim:

O prognóstico produz o tempo que o engendra e em direção ao qual ele se projeta, ao passo que  profecia apocalíptica destrói o tempo, de cujo fim ela se alimenta. Os eventos, vistos da perspectiva da profecia, são apenas símbolos daquilo que já é conhecido. Se os vaticínios de um profeta não foram cumpridos, isso não significa que ele tenha se enganado. Por seu caráter variável, as profecias podem ser prolongadas a qualquer momento. Mais ainda: a cada previsão falhada, aumenta a certeza de sua realização vindoura. Um prognóstico falho, por outro lado, não pode ser repetido nem mesmo como erro, pois permanece preso a seus pressupostos iniciais.” (Koselleck, 2006:32)

O alvorecer progressivo da administração pública, a que estabelece critérios da organização social como forma de planejamento da vida em comum, visa dispor do refinamento dos meios de produção de prognósticos, não somente relativos ao método em si como na continuidade incessante da observação de temas e variáveis consideradas estratégicas. Obviamente que este modo de temporalização produz um efeito em particular:

O prognóstico racional contenta-se com a previsão das possibilidades no âmbito dos acontecimentos temporais e mundanos, mas por isso mesmo produz um excesso de configurações estilizadas das formas de controle temporal e político. No prognóstico, o tempo se reflete de maneira sempre surpreendente; a constante similitude das previsões escatológicas é diluída pela qualidade sempre inédita de um tempo que escapa de si mesmo, capturado de modo prognóstico. Dessa forma, do ponto de vista da estrutura temporal, o prognóstico pode ser entendido como um fator de integração do Estado, que ultrapassa, assim, o mundo que lhe foi legado, com um futuro concebido de maneira limitada.”(Koselleck, 2006:33)

O prognóstico como tempo capturado pelo planejamento orçamentário do Estado serve como exemplo que o próprio Pierre Rosanvallon ancora na historiografia de Koselleck, de forma a oferecer uma entrada privilegiada para o problema da secularização, aqui lido na chave da sobrevivência cultural. Ele disserta sobre a transparência financeira na qual o grande problema é exatamente a contra-produtividade do segredo exatamente porque não consegue traduzir com clareza sistemática o sistema de decisões orçamentárias de Estado. Entendendo que das alterações determinantes do processo revolucionário de 1879 em diante se encontra a instauração de um governo representativo em que diversas partes operam no seio do poder soberano – a soberania se dilui em sistema de decisões -, ainda que não interfira imediatamente no domínio das intervenções de Estado, oferece uma nova forma para o mesmo[1]. Afinal, para que seja possível algo como a votação de um orçamento, é preciso não somente um orçamento estabelecido pautado em uma determinada concepção de riqueza. É preciso que o orçamento esteja articulado em um determinado modelo de prognóstico que capturem o tempo futuro a título provisório, mas de forma inescapavelmente sistemático. O Estado absolutista, centralizador que é, se consolida também por meio da expulsão dos símbolos proféticos da estrutura de decisão que são signos de decisões tomadas em segredo ou no seio de uma outra ordem que não nas instâncias da política em um sistema representativo:

O orçamento votado sob a forma de uma lei de finanças se transformou no espelho criptografado das atividades do Estado, vindo a extinguir uma longa tradição de desordem e segredo. Constrangidos pelo Estado – “é impossível, agora, que haja um ministro das Finanças desonesto”, disse Villèle, em 1826 -, simboliza o advento de um Estado fiscal regular. Instauração de uma regularidade “técnica” que se dobra em uma regularidade “política” por via da publicidade das cifras, fazendo do orçamento um elemento central do debate público. Para além do círculo estreito dos parlamentares, a discussão a respeito da lei de finanças na Câmara suscita comentários e interrogações por todo o país. O orçamento é comentado pelos jornais, dando lugar à circulação de uma enormidade de brochuras e libelos que traduzem uma reapropriação do Estado pela sociedade.” (Rosanvallon, 1990:35).


[1] «Parler d’intérêt public, c’est, dans le langage classique, parler de l’intérêt de l’Êtat, l’Êtat existant comme sujet propre, séparé distinct de la société civile. La notion d’intérêt général de tous les hommes renvoie au contraire à une abstraction, qui est le support de l’idée de nation. L’État ne peut plus être représenté dans ce cadre que comme immergé dans cette nation, il n’a plus d’existence autonome. Sa dépendance se manifeste d’abord économiquement, puisq’«un souverain n’a qu’autant que ses sujets en possèdent ». Il y a donc une confusion qui s’établit entre le suverain et la nation : « Le Roi et le peuple ne sont qu’une seule et même chose, quelque fondé qu’ait été jusqu’ici l’usage sur une maxime toute contraire. » L’État séparé repose sur la subordination qui se définit pratiquement, comme distance et rapport inégalitaire ; l’État immergé est au contraire fondé théoriquement sur la confusion et l’égalité des intérêts. » (Rosanvallon, 1990 :29). As citações internas à nota são de Pierre Le Pesant de Boisguilbert.

sábado, 20 de dezembro de 2014

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.


 
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix (1996) Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (vol. 2), São Paulo, 34. 

TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. Les empêcheurs de penser en rond/Seuil. Paris. 2001.



11-  Passemos a considerar os meios de propagação e então teremos que considerar o corpo humano como, ele mesmo, um ambiente, um meio, segundo reza a reflexão acerca da fisiologia de Claude Bernard. Assim, se no que tange o problema da economia moral em que a discussão a respeito da função social das esferas da vida, como a religião, se pauta em grande medida sobre a relação entre o indivíduo moral e a organização social que se impõe ao mesmo indivíduo em uma malha coercitiva. As considerações a respeito dos meios de propagação comunicativa da imitação social, como a proposta por Tarde,  tem como objeto o borramento das fronteiras  em questão, a saber, entre o social e o individual e, por conseguinte, fazendo da sociedade uma caixa de ressonância que atinge escalas infinitesimalmente pequenos e infinitesimalmente grandes. Ainda que mobilizado por meio de forças psíquicas sem as quais nenhum argumento poderia fazer sentido, a discussão acerca da economia moral tem um fator determinante que marca a exterioridade da sociedade a qual, na versão sonambúlica de Gabriel Tarde, encontramos uma variação temática enorme a respeito sobre qual é o continente e qual seria o conteúdo impedindo a estabilidade de qualquer forma de exterioridade. Na verdade, muito pelo contrário, só o que está dentro importa.
            É importante ressaltar não haver na epiderme das relações qualquer fronteira em que o Estado-nação seja, na medida da doutrina sobre os dois corpos do rei, um análogo perfeito do corpo tal como inventara a criação fisiocrata. O que importa é compreender como a ressonância se dá, por quais meios, com qual intensidade e extensão, não importando a priori a imposição das zonas limítrofes do território, como aqueles que demarcariam a existência da Nigrícia como zona bárbara para além do Mediterrâneo. Tarde parte da premissa de que o social é parte constituinte das repetições ondulatórias daquilo que é vital e, não podendo agir por meios exclusivamente sociais (relativos à ordem moral da morfologia dos agrupamentos e seus direitos constituídos), opera segundo a materialidade que lhe é própria sem com isso induzir a nenhuma forma de materialismo. Um mesmo terremoto cujo epicentro seja o mar Mediterrâneo ondula tanto na face africana quanto na face européia da sua costa, ainda que de forma desigual.
           
            Creio me conformar, (...) ao método científico mais rigoroso ao buscar esclarecer o complexo pelo simples, a combinação pelo elemento e a explicar o liame social misturado e complicado, segundo nós o conhecemos, por via do ambiente social mais puro e reduzido à mais simples expressão a qual, por instrução do sociólogo é realizada com sucesso no estado sonambúlico.” (Tarde, 2001:136)

            E mais adiante:

            Suponha um homem que, subtraído hipoteticamente de toda influência extra-social, em contato direto com os objetos naturais, em meio às obsessões espontâneas dos seus diversos sentidos sem travar comunicação senão com seus semelhantes  ou, então, como somente um dos seus semelhantes, para simplificar a questão. Não seria então recomendável estudar justamente este sujeito de escolha, por experiência e observação, em suas características verdadeiramente essenciais quanto às relações sociais, desembaraçado assim de toda e qualquer influência das ordens física e naturais próprias a lhe complicarem? Mas o hipnotismo e o sonambulismo não são eles precisamente a realização desta hipótese?”(Tarde, 2001:136-137)

            Nem anormal, tampouco condição limite. Na verdade, mais uma variação do tema “idéias sugeridas que se crêem espontâneas” uma vez que a sociedade propaga a ilusão de repetição em um mecanismo similar, ou mesmo idêntico àquele estabelecido pelo magnetismo animal – não tratando aqui o conceito de ilusão com o de mentira, o que talvez possa ser melhor descrito pelo conceito redundante de fazer-fazer (Deleuze & Guattari, 1996) que é, notemos bem, uma repetição ele mesmo e que não denuncia senão o tipo de movimento próprio ao que se passa, por exemplo, no exercício da intimidação. Eis a situação na qual o intimidado  escapa de si mesmo de forma a ser manipulável e maleável pela ação de outrem ainda que tente resistir que é, de qualquer forma, assaz similar ao estado sonambúlico; e à imitação da linguagem primitiva que não faz outra coisa senão se repetir, o que é próprio do domínio da estatística, por sinal.

domingo, 14 de dezembro de 2014

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.

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REICHLER, Claude. L’age libertin. Minuit. Paris. 1987.

STRATHERN , Marilyn. Fora de Contexto: as ficções persuasivas da antropologia in O efeito etnográfico. Cosac & Naify. São Paulo. 2014.

TYLOR, Edward Burnett. Primitive Culture: researches into the development f mythology, philosophy, religion, language, art and custom. John Murray. Londres. 1873 [1871]


9- Claude Reichler, historiador e crítico que redigiu L’age libertin, publicado pela Minuit em 1987 faz uma censura severíssima ao exercício que pretendia fazer e que, todavia, o fiz. Esta longa exposição a respeito do estabelecimento do conceito de fetiche por Charles De Brosses se trata, no final das contas, de um desdobramento da citação elogiosa que Tylor emprega em seu Primitve Culture, no capítulo sobre linguagem emocional e imitativa. Num lapso chego a sugerir que há algo de libertino no argumento de Tylor. Ora,

Après Sade, après la Révolution, il n’y a plus de libertins ; avant les philosophes padouans, avant Calvin, il n’y en a pas encore. Mais, à l’intérieur des limites étroites de ces quelque deux siècles, quelle dispersion, que ensemencement de champs divers, quelle multitude de manifestations ! A ma connaissance, aucune hypotèse n’a pas encore été proposée, qui permettrait d’expliquer la brève durée historique et la prolifération des témoignages dans la socio-culture. » (Reichler, 1987 :08)

Esta seria, portanto, a hipótese do livro que defende haver uma antropologia libertina radical que não fora transmitida para além do processo revolucionário e que qualquer reminiscência libertina não se daria senão pela forma de ruínas; ou, digamos, sobrevivência. Acho que teremos que nos contentar com isto ou, mais do que qualquer outra coisa, sentir algum alívio por Tylor ser de alguma forma uma prova viva de seu próprio argumento. Se eu for seguir com a trilha que nos levaria à sua antropologia libertina, não o faremos senão na forma de uma trilha falsa ou então em quem comete um erro de atribuição torcendo para com isso ajudar a preservar alguma coisa. Mas me pergunto se ao fazer o exercício de considerar algum grau de libertinagem em Tylor, cometeria algum tipo de abuso real. Vejamos:

Para a antropologia libertina o homem é, essencial e historicamente, um sujeito de representações. Submetido à todas as intimidações e intimações dos poderes exercidos sobre ele: religiosos, políticos, culturais e morais. O pensamento libertino é uma filosofia prática que, ao definir o humano tem como meta agir sobre ele. Se o homem é um sujeito impedido de usufruir seu desejo o que ele pretende é que se possa libera-lo das representações que o alienam. Antes de 1623 os libertinos exprimem enfaticamente este objetivo; e em torno de duzentos anos mais tarde Sade, por meio de suas narrativas e especulações filosóficas, repreende literalmente o diagnóstico e os objetivos, ainda que as fontes da obstinação da filosofia libertina se façam presentes. A história da libertinagem é a história deste pensamento de libertação tomada a partir da realidade do corpo e dos liames sociais. Confrontados com o recrudescimento político e religioso sob Richelieu no controle do Estado e dos indivíduos, na manipulação dos símbolos e representações, os libertinos tiveram que se constranger a se libertar sob a máscara da submissão. Sabidamente castigados, sua reivindicação parece se perder; e de fato, ela es infiltra se esgueirando pelo subsolo e se apodera de grandes espaços de vida.”(Reichler, 1987:09)

Não tenho nenhuma pretensão, aqui, em provar ou defender a tese de que Tylor é libertino. Na verdade, convém ainda mais que ele seja, como o diria o mesmo Reichler, um pseudo-libertino que traga de volta à vida traços particulares do pensamento e prática libertinas que, por alguma razão, deixaram de vigorar de pleno direito. Ora, se formos levar em conta que o momento auge libertino se erige em confronto com as marcas mais agressivas do absolutismo monárquico que é, para além de qualquer coisa, a teologia política transformada em Estado em vias de modernização, é de se esperar que o cataclismo revolucionário tenha varrido não somente as instituições fundamentais de uma certa cristandade no poder, mas também as peças que se moviam em movimento contrário. Se existem libertinos após a revolução, e Tylor é um deles, os mesmos os são na condição de médiuns; difusores que falam com a poeira dos arquivos. Mesmo que se diga que o triunfo revolucionário coloca a libertinagem, ou a imoralidade, no poder – a alternação depende da acusação -, é algo ingênuo pensar que a mudança na estrutura das relações afeta somente um dos termos. Quanta diferença existe entre as duas atitudes: o libertino que dissimula publicamente o golpe que pretende dar e que para falar sobre o seu desejo, o traduz na linguagem do poder eclesiástico-temporal; o evolucionista que silencia o argumento teológico em público e traduz a vida do espírito na linguagem sensualista reduzindo a linguagem eclesiástico-temporal à ordem das funções orgânicas só pode ser, portanto, libertino em parte ou, de uma outra forma, uma sobrevivência da libertinagem.
Mas as sobrevivências culturais tem um objeto específico, dado que se remetem às superstições que são, igualmente, alvo das investigações de De Brosses, este libertino de pleno direito. Não convém, e não é o objetivo destas notas, dizer que a moral libertina seja necessariamente uma superstição. Contudo, o espectro do conceito de sobrevivência cultural se remete a permanência de fórmulas de ação simbólica que, remetidas aos hábitos que recebem a designação de tipo direct symbol, não tem valor prático algum que não seja a própria repetição da fórmula – acusação que recai sobre os ombros das ciências ocultas do século XIX, por exemplo. Se as superstições são falhas na associação de idéias, como lidar então com as sobrevivências que são, no mais das vezes obstruções ocorridas no seio de civilizações no que concerne a história das idéias?

The principal key to the understanding of Occult Science is to consider I as based on the Association od Ideas, a faculty which lies at the very foundation of human reason, but in no small degree of human unreason also. Man, as yet in a low intellectual condition, having come to associate in thought those things which he found by experience to be connected in fact, proceeded erroneously to invert this action, and to conclude that association in thought must involve similar connexion in reality. He thus attempted to discover, to foretell, and to cause events by means of processes which we can now see to have only an ideal significance.” (1873:104)

A mancha semântica do associacionismo é marcante aqui, na qual a discussão industrialista se encontra com a moral libertina na qual a correta associação entre idéias tem respaldo na mais adequada associação entre pessoas, criando um espelhamento produtivo entre organização social  e sistema de representações a respeito da vida social e da natureza. Proceder de forma equivocada implica em não associar as idéias com os fatos, entendendo que os fatos tem uma certa natureza que não se restringem à escala e dimensão da sensação produzida por um  dado evento. Recusar os procedimentos de investigação empírica é o equivalente a pedir asilo na terra do fetichismo pela insistência na prática de toda sorte de superstições.
Há no argumento de Tylor, assim como em todo o debate a respeito das superstições com relação ao qual os libertinos foram vanguarda no século XVII, uma problematização dedicada das artes divinatórias – o mesmo tipo de arte que fez com que Agostinho de Hipona, em favor do livre arbítrio, veio modular o presente intuitivo em 3 modos em favor da atenção como forma de antecipação. O trecho que pretendo ressaltar nos leva, obviamente a um argumento de tipo “vôo das andorinhas” que convém discutir com maior vagar pois uma antropologia da difusão das formas que presa não somente a produção de objetos (industrialismo) e o teatro das representações (fetichismo) como critérios de objetividade não pode se furtar de certos desdobramentos em que, por exemplo, Tylor encarne uma sobrevivência libertina ou que faça, por sua vez, da atividade antropológica uma forma de difusão cultural. Para além de uma discussão sobre os dados fora de contexto co-extensiva a Frazer, por exemplo (Strathern, 2014) os signos de tempos futuros carregam consigo a exata problematização em que determinação e probabilidade entram em conflito como agências temporalizantes. No caso em especial, das artes divinatórias, o ponto em questão é a idéia de que signos indiciários dizem respeito a um evento futuro e não meramente presente.
Se há fumaça, há fogo. Se na relação indiciária o que entra em questão é a contiguidade entre sinal e objeto, a crítica ao fetichismo como fórmula do mal-entendido, ou de um mau hábito de pensamento, está em extrapolar uma relação de contiguidade a toda uma cadeia causal maior e mais sutil. Este erro faz com que todos os que o cometam estejam, digamos, na infância da razão o que significa que a racionalidade e a irracionalidade são ambas potências de casa ato de juízo e que, com a finalidade do seu melhor desenvolvimento – Primitive Culture advoga em favor de uma antropologia do desenvolvimento – devem ser orientados segundo a ordem do método, a uma espécie de administração tutelar:

The Maori may give a sample of the character of its rules: they hold it unlucky in an owl hoots during a consultation, but a council of war is encouraged by prospect of victory when a hawk flies overhead; a flight of birds to the right of the war-sacrifice is propitious if the villages of the tribe are in the quarter, but if the omen is in the enemy direction, the war will be given up.”(Tylor, 1873:108)

O vôo do falcão é índice de um certo futuro emitidos desde o presente àquele que testemunha, transmitido desde alhures. A crítica que a antropologia contemporânea poderia fazer a esta passagem, e a todas as demais, culminaria em super-inflar o problema do contexto, fazendo com que os requisitos de uma teoria do conhecimento baseado no conceito de representação como duplo das séries empíricas apreendidas pelos órgãos dos sentidos e organizadas conceitualmente sofram de hipertrofia. Dito de outra forma, Tylor estaria agindo como os primitivos que ele classifica como tal ao isolar toda uma relação possivelmente complexa entre os maori e as corujas, considerando-a um erro de atribuição reduzindo causalidade às relações de caráter indiciário. Assim, relações de caça, orientação meteorológica, espacial que seguramente compreendem um complexo de relações entre corujas e maori – e o contrário – não estariam sendo considerados. Grande parte do esforço etnográfico comprometido com a temática do realismo da descrição etnográfica persiste na tarefa, para todos os efeitos ética, em descrever com vistas em dizer e comprovar que o primitivo vitoriano – algo semelhante ao religioso dos libertinos – não existe. Contudo, o primitivo é algo mais difícil de capturar porque ele sempre tende a ser alguma outra coisa.

domingo, 30 de novembro de 2014

MÔNADA, díade, tríade, tétrade: números inteiros.

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Era somente um. Numeral. Ponto. Não que seja coisa simples, digo, algo próximo de um número inteiro. Próximo, porque nunca foi algo que eu pudesse olhar no espelho e garantir, mesmo que fosse no espelho que eu já considerei enorme, na porta do armário do quarto de mamãe. De qualquer forma, cresci com esta marca que, até onde sei, sempre foi mais ou menos comum. Minha primeira visita em um parque de diversões a interdição do prosseguimento do movimento da fila para entrar na montanha-russa sempre vinha com a instrução de que nem mais uma criança entraria e que teríamos que esperar pela próxima leva. Muitas vezes fui sozinho, outras fiquei para trás enquanto meus amigos se davam as mãos, dois a dois, gritando o que outra vezes gritei com eles – a mais longa e alta vogal que eu pudesse encontrar garganta adentro. Com gosto. Não somente eu mas

Cada
Um
De
Nós.

            Hoje eu concordo o número da frase com algum receio de estar errando. Poucas vezes tive a impressão de que de alguma forma vivi como mais de um, em algum mecanismo de acoplamento marginal que engata o enunciado num caldo só, devidamente temperado pela circunstância. Não que se deva confiar em coisas como “a memória” ou mesmo “a primeira vez em que percebi isso”. Nem um, nem outro farão nada por mim ou por esta prosa sobre números inteiros. Não tem nada a dize sobre este que é um assunto meramente geométrico e, desconfio que o papel que se pode atribuir, ou mesmo usufruir nestes dois termos em nada tem a ver com um garante narrativo ou qualquer outra coisa que possa ser dita. Enfim, dizemos para manter a banca da casa e fazer com que haja movimento, mas no limite não são importantes, nem a memória faz, nem a primeira vez em que percebi isso. O que importa é que nós só fez inteiramente sentido quando meu irmão e eu resolvemos roubar o pequeno supermercado que existiu no galpão ainda existente a pouco mais de meio quarteirão de onde ainda moro. Fugir e, principalmente, ser pego. Diria então, “eis o momento em que pude perceber que éramos nós”, mas não é nada disso. O que é efetivo é que hoje sinto que este é um “nós” plausível, especialmente na instância da fuga que até hoje persiste dado que não só mascamos todas as gomas de mascar como redundamos em manter o castigo que se abateria sobre nós à distância. Em qualquer combinatória, vale dizer, seríamos nós. Eu pego e ele não, a delação possível e, então, o medo da delação. Nós dois pegos.  4 alternativas e em todas elas, nós. Nós dois. Que digam algo sobre a paixão, o sexo, a amizade como produtor desta unidade dual. Que interfiram recusando o resto desta prosa, não me incomodaria em nada porque a paixão é o momento da fuga, eterna enquanto dura. Enquanto houver o furor da existência ardente da contraparte, e for paixão, o sentimento é aquele que atravessa o corpo de alguém que, em trânsito em provável fuga de seu país, chegando em um hotel no estrangeiro com os olhos arregalados e respiração ligeiramente ofegante o atendente pergunta, sorridente, se está fugindo e incapaz de compreender a mais sutil ironia, esvaziado do senso de humor. Foi pego mesmo que por um segundo; pegaram seu comparsa; desbarataram a operação – vi meu cúmplice (ah, a cumplicidade dos casais) sendo preso ao assistir a televisão e logo percebi que seria e minha vez, logo em seguida e estaríamos, nós dois, presos. Nós dois, não importam quantos. Nós é dois. Eles, três. Foi assim que me cercaram e agora, escrevo da prisão, à huis clos.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.



LAGRÉE, Michel . Religião e tecnologia: a bênção de Prometeu. EdUSC. Bauru. 2002.
TAUSSIG, Michael. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem: um ensaio sobre o terror e a cura. Paz e Terra. São Paulo. 1993.
TYLOR, Edward Burnett. Primitive Culture: researches into the development of mythology, philosophy, religion, language, art and custom. John Murray. Londres. 1873 [1871]



2- Numa outra ponta, já no final do século XIX, no outro lado do canal da Mancha, uma pesquisa que mais adiante virá a se oferecer para a antropologia social como um cânone de um passado trágico. “The enquiry as to the relation of savagery to barbarism and semi-civilization is almost entirely in pre-historic or extra-historic regions. This is of course an unfavourable condition, and must be frankly accepted.” (Tylor, 1873:35). Uma pesquisa em que conceitos fundamentais, cultura e civilização, são tomados como sinônimos relativos – isto é, sinônimos quando um e outro se relacionam somente entre si numa remissão selvagem. Não quero avançar ainda mais sem levar em conta, assim como o faz a historiografia de Michel Lagrée (2002), de que se trata de um pensamento conduzido pela imagem da industrialização, imagem esta que pergunta sobre a selvageria do e no industrialismo. Se falamos sobre o selvagem do industrialismo, nos remetemos à imanência selvagem, ao selvagem implícito nas ações de industriais e seus ideais de forma similar aos selvagens da colonização na dialética apontada por Michael Taussig (1993) – no universo em que a última fronteira são os selvagens, só a selvageria se impõe fazendo da violência, igualmente selvagem, uma relação de vínculo e, ao mesmo tempo, de indistinção. Assim, há algo de selvagem no seio do industrialismo em que a exploração do trabalho é, seguramente, uma das suas dimensões mais visíveis.
            Se falamos sobre a selvageria no industrialismo, então o tópico é o da identificação numa tábula classificatória em que o caráter da ação é propriamente simbólico e, portanto, transcendental dizendo respeito aos métodos de observação que fazem o selvagem figurar na codificação das teorias industriais, dentre as quais a antropologia social. Que se diga que nem toda antropologia moderna é industrial e que as trilhas abertas por Tylor não são necessariamente formas de uso comum de evolucionismo. Ainda assim, em Primitive Culture encontramos o vocabulário comum às teorias do desenvolvimento e do progresso onde reside de fato sua reflexão sobre a industrialização que é, vale lembrar, um modo da ação humana que tange discussões complexas sobre a organização social em suas mais diversas faces. Sua generalização, e a antropologia de Tylor não é outra coisa, tem efeitos tão interessantes quanto o teve a noção de verdade revelada – isto é, visto do ponto de vista industrialista.
            A evocação da verdade revelada, e com ela todo o universo religioso politicamente relevante em meio ao jogo da planificação da vida em comum da economia política, conduzem a leitura dos escritos de Tylor para a cena do desalojamento do religioso, de sua condição futura de locatário e de como a reflexão industrial o trata como um meio para um devir que deveio. O futuro se faz presente em cada gesto, não sendo o futuro da perfeição da Civitate Dei antecipada pela Igreja Romana mas o futuro da sociedade perféctil da Civitate Homini cuja força se encontra canalizada pelos dutos de energia à vapor. A história já sofre, aqui, as tentações da termodinâmica. Neste ambiente em especial convém perguntar se é possível tratar o industrialismo antropológico como mais uma das respostas ao absolutismo teológico e ao juízo sintético histórico que responde pelo conceito de “secularização”. Particularmente se colocarmos, como o faz Tylor, as lentes que enxergam a história por movimentos de difusão cultural e o drama das sobrevivências que, com relação à modernidade têm especial valor na discussão sobre formas jurídicas com relação às quais convém perguntar se são meio ou forma de vida; e se no contexto adaptativo mais radical que põe as formas de vida em risco de extinção, se convém narrarmos a seleção natural por via da mecânica clássica ou se há margem para algum dispositivo com a forma de uma evolução criadora que o neo-lammarckismo hoje chama de epigenética.
            Antes de mais nada convém avançar com certo comedimento, porque há muita velocidade na antropologia de Tylor. Os deslocamentos geográficos e históricos se dão a serviço de uma colagem sem preocupações relativas à etiqueta, diplomacia ou liturgia – de cargo ou de sacramento. O mesmo se dá com a sinonímia entre civilização e cultura, que é imediata e ligeira; o pré-histórico e o extra-histórico se apresentam como indiferentes entre si determinando terem o mesmo significado – no que faz surgir a primeira dificuldade. Isto porque os conceitos mobilizados por Tylor não têm significado preciso. Sua definição se dará por regiões, que é o que fará par com o conceito enquanto significante, dado que são remissíveis a formas de vida. Quando ainda no primeiro capítulo de Primitive Culture Tylor desabilita a antropologia racista ao buscar a refutação da fundamentação poligenista de seus pressupostos, o mesmo Tylor faz uma remissão secreta a Claude Bernard, em nome da classificação dos estágios culturais – que, de uma forma pervertida é a transformação, mesmo que não intencional (diria um leitor de Karl Löwith) da teologia de Joachim dei Fiori em uma teoria, não do futuro, mas do presente. A fisiologia corre nas veias do industrialismo na medida em que, para o melhor entendimento da distribuição global da humanidade , será preciso “dissecar detalhadamente e então classificar” (1973:07) em grupos que correspondam à espécie como são os utensílios, o artesanato, os mitos e tudo o mais que seja fruto da atividade humana, esta espécie industriosa.

            What this task is like, may be almost perfectly illustrated by comparing these details of culture with the species of plants and animals studied by the naturalist. To the ethnographer, the bow and arrow is a species, the habit of flattening children’s skull is a species, the practice of reckoning numbers by tens is a species. The geographical distribution of these things, and their transmission from region to region, have to be studied as the naturalist studies the geography of his botanical and zoological species.” (1873:07)

            Há aqui, antes de qualquer outra coisa, o eco da proliferação das teses sobre a especificação. Torna-se muito difícil, na verdade, saber o que é uma espécie e, todavia, os artefatos humanos devem ser convertidos neste utensílio classificatório e sua classificação responde à conformação geográfica produtiva na qual a cultura parece corresponder a uma certa infra-estrutura de produção e, ao mesmo tempo, no produto ele mesmo. O significado é fundamentalmente o indício de sua sobrevivência em meios mais ou menos hostis – o modo de compreensão da relação com as demais formas de vida com as quais compete, principalmente, por subsistência (uma variação do tema do connatus).
            No entanto, vemos que o etnógrafo deve reconhecer nos artefatos os traços de uma forma de vida, o que faz do reconhecimento de formas culturais um componente anímico do pensamento expresso em índices reconhecíveis. É o etnógrafo que vamos reconhecer, tramando na prosa de Tylor (e não pela prosa dele) o encontro entre o selvagem imanente e o transcendental, o que permite refletir melhor sobre o industrialismo como aceleração produzido por regiões de indiferença. Assim, para que uma teoria da cultura aos modos da antropologia do progresso da espécie humana seja posta em questão é preciso reconhecer que tanto faz o conceito ter tal ou qual significado. O que importa para o esquema  é a especificidade da forma de vida em seus traços constitutivos, a forma pela qual pode ser reconhecida e que a conduz à sua própria generalidade. Mas, e aqui arrisco dizer sem o devido exame, não é qualquer conceito cujo significado é indiferente, mas somente os conceitos fundamentais, como civilização e cultura mostrando, metodologicamente, um exercício contrateológico no qual o fundamento não está na palavra proferida, mas nas extensões que ela produz