domingo, 14 de dezembro de 2014

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.

-->
-->
REICHLER, Claude. L’age libertin. Minuit. Paris. 1987.

STRATHERN , Marilyn. Fora de Contexto: as ficções persuasivas da antropologia in O efeito etnográfico. Cosac & Naify. São Paulo. 2014.

TYLOR, Edward Burnett. Primitive Culture: researches into the development f mythology, philosophy, religion, language, art and custom. John Murray. Londres. 1873 [1871]


9- Claude Reichler, historiador e crítico que redigiu L’age libertin, publicado pela Minuit em 1987 faz uma censura severíssima ao exercício que pretendia fazer e que, todavia, o fiz. Esta longa exposição a respeito do estabelecimento do conceito de fetiche por Charles De Brosses se trata, no final das contas, de um desdobramento da citação elogiosa que Tylor emprega em seu Primitve Culture, no capítulo sobre linguagem emocional e imitativa. Num lapso chego a sugerir que há algo de libertino no argumento de Tylor. Ora,

Après Sade, après la Révolution, il n’y a plus de libertins ; avant les philosophes padouans, avant Calvin, il n’y en a pas encore. Mais, à l’intérieur des limites étroites de ces quelque deux siècles, quelle dispersion, que ensemencement de champs divers, quelle multitude de manifestations ! A ma connaissance, aucune hypotèse n’a pas encore été proposée, qui permettrait d’expliquer la brève durée historique et la prolifération des témoignages dans la socio-culture. » (Reichler, 1987 :08)

Esta seria, portanto, a hipótese do livro que defende haver uma antropologia libertina radical que não fora transmitida para além do processo revolucionário e que qualquer reminiscência libertina não se daria senão pela forma de ruínas; ou, digamos, sobrevivência. Acho que teremos que nos contentar com isto ou, mais do que qualquer outra coisa, sentir algum alívio por Tylor ser de alguma forma uma prova viva de seu próprio argumento. Se eu for seguir com a trilha que nos levaria à sua antropologia libertina, não o faremos senão na forma de uma trilha falsa ou então em quem comete um erro de atribuição torcendo para com isso ajudar a preservar alguma coisa. Mas me pergunto se ao fazer o exercício de considerar algum grau de libertinagem em Tylor, cometeria algum tipo de abuso real. Vejamos:

Para a antropologia libertina o homem é, essencial e historicamente, um sujeito de representações. Submetido à todas as intimidações e intimações dos poderes exercidos sobre ele: religiosos, políticos, culturais e morais. O pensamento libertino é uma filosofia prática que, ao definir o humano tem como meta agir sobre ele. Se o homem é um sujeito impedido de usufruir seu desejo o que ele pretende é que se possa libera-lo das representações que o alienam. Antes de 1623 os libertinos exprimem enfaticamente este objetivo; e em torno de duzentos anos mais tarde Sade, por meio de suas narrativas e especulações filosóficas, repreende literalmente o diagnóstico e os objetivos, ainda que as fontes da obstinação da filosofia libertina se façam presentes. A história da libertinagem é a história deste pensamento de libertação tomada a partir da realidade do corpo e dos liames sociais. Confrontados com o recrudescimento político e religioso sob Richelieu no controle do Estado e dos indivíduos, na manipulação dos símbolos e representações, os libertinos tiveram que se constranger a se libertar sob a máscara da submissão. Sabidamente castigados, sua reivindicação parece se perder; e de fato, ela es infiltra se esgueirando pelo subsolo e se apodera de grandes espaços de vida.”(Reichler, 1987:09)

Não tenho nenhuma pretensão, aqui, em provar ou defender a tese de que Tylor é libertino. Na verdade, convém ainda mais que ele seja, como o diria o mesmo Reichler, um pseudo-libertino que traga de volta à vida traços particulares do pensamento e prática libertinas que, por alguma razão, deixaram de vigorar de pleno direito. Ora, se formos levar em conta que o momento auge libertino se erige em confronto com as marcas mais agressivas do absolutismo monárquico que é, para além de qualquer coisa, a teologia política transformada em Estado em vias de modernização, é de se esperar que o cataclismo revolucionário tenha varrido não somente as instituições fundamentais de uma certa cristandade no poder, mas também as peças que se moviam em movimento contrário. Se existem libertinos após a revolução, e Tylor é um deles, os mesmos os são na condição de médiuns; difusores que falam com a poeira dos arquivos. Mesmo que se diga que o triunfo revolucionário coloca a libertinagem, ou a imoralidade, no poder – a alternação depende da acusação -, é algo ingênuo pensar que a mudança na estrutura das relações afeta somente um dos termos. Quanta diferença existe entre as duas atitudes: o libertino que dissimula publicamente o golpe que pretende dar e que para falar sobre o seu desejo, o traduz na linguagem do poder eclesiástico-temporal; o evolucionista que silencia o argumento teológico em público e traduz a vida do espírito na linguagem sensualista reduzindo a linguagem eclesiástico-temporal à ordem das funções orgânicas só pode ser, portanto, libertino em parte ou, de uma outra forma, uma sobrevivência da libertinagem.
Mas as sobrevivências culturais tem um objeto específico, dado que se remetem às superstições que são, igualmente, alvo das investigações de De Brosses, este libertino de pleno direito. Não convém, e não é o objetivo destas notas, dizer que a moral libertina seja necessariamente uma superstição. Contudo, o espectro do conceito de sobrevivência cultural se remete a permanência de fórmulas de ação simbólica que, remetidas aos hábitos que recebem a designação de tipo direct symbol, não tem valor prático algum que não seja a própria repetição da fórmula – acusação que recai sobre os ombros das ciências ocultas do século XIX, por exemplo. Se as superstições são falhas na associação de idéias, como lidar então com as sobrevivências que são, no mais das vezes obstruções ocorridas no seio de civilizações no que concerne a história das idéias?

The principal key to the understanding of Occult Science is to consider I as based on the Association od Ideas, a faculty which lies at the very foundation of human reason, but in no small degree of human unreason also. Man, as yet in a low intellectual condition, having come to associate in thought those things which he found by experience to be connected in fact, proceeded erroneously to invert this action, and to conclude that association in thought must involve similar connexion in reality. He thus attempted to discover, to foretell, and to cause events by means of processes which we can now see to have only an ideal significance.” (1873:104)

A mancha semântica do associacionismo é marcante aqui, na qual a discussão industrialista se encontra com a moral libertina na qual a correta associação entre idéias tem respaldo na mais adequada associação entre pessoas, criando um espelhamento produtivo entre organização social  e sistema de representações a respeito da vida social e da natureza. Proceder de forma equivocada implica em não associar as idéias com os fatos, entendendo que os fatos tem uma certa natureza que não se restringem à escala e dimensão da sensação produzida por um  dado evento. Recusar os procedimentos de investigação empírica é o equivalente a pedir asilo na terra do fetichismo pela insistência na prática de toda sorte de superstições.
Há no argumento de Tylor, assim como em todo o debate a respeito das superstições com relação ao qual os libertinos foram vanguarda no século XVII, uma problematização dedicada das artes divinatórias – o mesmo tipo de arte que fez com que Agostinho de Hipona, em favor do livre arbítrio, veio modular o presente intuitivo em 3 modos em favor da atenção como forma de antecipação. O trecho que pretendo ressaltar nos leva, obviamente a um argumento de tipo “vôo das andorinhas” que convém discutir com maior vagar pois uma antropologia da difusão das formas que presa não somente a produção de objetos (industrialismo) e o teatro das representações (fetichismo) como critérios de objetividade não pode se furtar de certos desdobramentos em que, por exemplo, Tylor encarne uma sobrevivência libertina ou que faça, por sua vez, da atividade antropológica uma forma de difusão cultural. Para além de uma discussão sobre os dados fora de contexto co-extensiva a Frazer, por exemplo (Strathern, 2014) os signos de tempos futuros carregam consigo a exata problematização em que determinação e probabilidade entram em conflito como agências temporalizantes. No caso em especial, das artes divinatórias, o ponto em questão é a idéia de que signos indiciários dizem respeito a um evento futuro e não meramente presente.
Se há fumaça, há fogo. Se na relação indiciária o que entra em questão é a contiguidade entre sinal e objeto, a crítica ao fetichismo como fórmula do mal-entendido, ou de um mau hábito de pensamento, está em extrapolar uma relação de contiguidade a toda uma cadeia causal maior e mais sutil. Este erro faz com que todos os que o cometam estejam, digamos, na infância da razão o que significa que a racionalidade e a irracionalidade são ambas potências de casa ato de juízo e que, com a finalidade do seu melhor desenvolvimento – Primitive Culture advoga em favor de uma antropologia do desenvolvimento – devem ser orientados segundo a ordem do método, a uma espécie de administração tutelar:

The Maori may give a sample of the character of its rules: they hold it unlucky in an owl hoots during a consultation, but a council of war is encouraged by prospect of victory when a hawk flies overhead; a flight of birds to the right of the war-sacrifice is propitious if the villages of the tribe are in the quarter, but if the omen is in the enemy direction, the war will be given up.”(Tylor, 1873:108)

O vôo do falcão é índice de um certo futuro emitidos desde o presente àquele que testemunha, transmitido desde alhures. A crítica que a antropologia contemporânea poderia fazer a esta passagem, e a todas as demais, culminaria em super-inflar o problema do contexto, fazendo com que os requisitos de uma teoria do conhecimento baseado no conceito de representação como duplo das séries empíricas apreendidas pelos órgãos dos sentidos e organizadas conceitualmente sofram de hipertrofia. Dito de outra forma, Tylor estaria agindo como os primitivos que ele classifica como tal ao isolar toda uma relação possivelmente complexa entre os maori e as corujas, considerando-a um erro de atribuição reduzindo causalidade às relações de caráter indiciário. Assim, relações de caça, orientação meteorológica, espacial que seguramente compreendem um complexo de relações entre corujas e maori – e o contrário – não estariam sendo considerados. Grande parte do esforço etnográfico comprometido com a temática do realismo da descrição etnográfica persiste na tarefa, para todos os efeitos ética, em descrever com vistas em dizer e comprovar que o primitivo vitoriano – algo semelhante ao religioso dos libertinos – não existe. Contudo, o primitivo é algo mais difícil de capturar porque ele sempre tende a ser alguma outra coisa.

Nenhum comentário: