REICHLER, Claude. L’age
libertin. Minuit. Paris. 1987.
STRATHERN , Marilyn. Fora de Contexto: as ficções persuasivas da antropologia in O efeito etnográfico. Cosac & Naify. São Paulo. 2014.
TYLOR, Edward Burnett. Primitive Culture: researches into the development f mythology, philosophy, religion, language, art and custom. John Murray. Londres. 1873 [1871]
9- Claude
Reichler, historiador e crítico que redigiu L’age
libertin, publicado pela Minuit em 1987 faz uma censura severíssima ao
exercício que pretendia fazer e que, todavia, o fiz. Esta longa exposição a
respeito do estabelecimento do conceito de fetiche por Charles De Brosses se
trata, no final das contas, de um desdobramento da citação elogiosa que Tylor
emprega em seu Primitve Culture, no
capítulo sobre linguagem emocional e imitativa. Num lapso chego a sugerir que
há algo de libertino no argumento de Tylor. Ora,
“Après Sade, après la Révolution, il n’y a
plus de libertins ; avant les philosophes padouans, avant Calvin, il n’y
en a pas encore. Mais, à l’intérieur des limites étroites de ces quelque deux
siècles, quelle dispersion, que ensemencement de champs divers, quelle
multitude de manifestations ! A ma connaissance, aucune hypotèse n’a pas
encore été proposée, qui permettrait d’expliquer la brève durée historique et
la prolifération des témoignages dans la socio-culture. » (Reichler, 1987 :08)
Esta seria, portanto, a hipótese do livro
que defende haver uma antropologia libertina radical que não fora transmitida
para além do processo revolucionário e que qualquer reminiscência libertina não
se daria senão pela forma de ruínas; ou, digamos, sobrevivência. Acho que
teremos que nos contentar com isto ou, mais do que qualquer outra coisa, sentir
algum alívio por Tylor ser de alguma forma uma prova viva de seu próprio
argumento. Se eu for seguir com a trilha que nos levaria à sua antropologia
libertina, não o faremos senão na forma de uma trilha falsa ou então em quem
comete um erro de atribuição torcendo para com isso ajudar a preservar alguma
coisa. Mas me pergunto se ao fazer o exercício de considerar algum grau de
libertinagem em Tylor, cometeria algum tipo de abuso real. Vejamos:
“Para
a antropologia libertina o homem é, essencial e historicamente, um sujeito de
representações. Submetido à todas as intimidações e intimações dos poderes
exercidos sobre ele: religiosos, políticos, culturais e morais. O pensamento
libertino é uma filosofia prática que, ao definir o humano tem como meta agir
sobre ele. Se o homem é um sujeito impedido de usufruir seu desejo o que ele
pretende é que se possa libera-lo
das representações que o alienam. Antes de 1623 os libertinos exprimem
enfaticamente este objetivo; e em torno de duzentos anos mais tarde Sade, por
meio de suas narrativas e especulações filosóficas, repreende literalmente o
diagnóstico e os objetivos, ainda que as fontes da obstinação da filosofia
libertina se façam presentes. A história da libertinagem é a história deste
pensamento de libertação tomada a partir da realidade do corpo e dos liames
sociais. Confrontados com o recrudescimento político e religioso sob Richelieu
no controle do Estado e dos indivíduos, na manipulação dos símbolos e
representações, os libertinos tiveram que se constranger a se libertar sob a
máscara da submissão. Sabidamente castigados, sua reivindicação parece se
perder; e de fato, ela es infiltra se esgueirando pelo subsolo e se apodera de
grandes espaços de vida.”(Reichler, 1987:09)
Não tenho nenhuma pretensão, aqui, em
provar ou defender a tese de que Tylor é libertino. Na verdade, convém ainda
mais que ele seja, como o diria o mesmo Reichler, um pseudo-libertino que traga
de volta à vida traços particulares do pensamento e prática libertinas que, por
alguma razão, deixaram de vigorar de pleno direito. Ora, se formos levar em
conta que o momento auge libertino se erige em confronto com as marcas mais
agressivas do absolutismo monárquico que é, para além de qualquer coisa, a
teologia política transformada em Estado em vias de modernização, é de se
esperar que o cataclismo revolucionário tenha varrido não somente as
instituições fundamentais de uma certa cristandade no poder, mas também as
peças que se moviam em movimento contrário. Se existem libertinos após a
revolução, e Tylor é um deles, os mesmos os são na condição de médiuns;
difusores que falam com a poeira dos arquivos. Mesmo que se diga que o triunfo
revolucionário coloca a libertinagem, ou a imoralidade, no poder – a alternação
depende da acusação -, é algo ingênuo pensar que a mudança na estrutura das
relações afeta somente um dos termos. Quanta diferença existe entre as duas
atitudes: o libertino que dissimula publicamente o golpe que pretende dar e que
para falar sobre o seu desejo, o traduz na linguagem do poder eclesiástico-temporal;
o evolucionista que silencia o argumento teológico em público e traduz a vida
do espírito na linguagem sensualista reduzindo a linguagem
eclesiástico-temporal à ordem das funções orgânicas só pode ser, portanto,
libertino em parte ou, de uma outra forma, uma sobrevivência da libertinagem.
Mas as sobrevivências culturais tem um
objeto específico, dado que se remetem às superstições que são, igualmente,
alvo das investigações de De Brosses, este libertino de pleno direito. Não
convém, e não é o objetivo destas notas, dizer que a moral libertina seja
necessariamente uma superstição. Contudo, o espectro do conceito de
sobrevivência cultural se remete a permanência de fórmulas de ação simbólica
que, remetidas aos hábitos que recebem a designação de tipo direct symbol, não tem valor prático
algum que não seja a própria repetição da fórmula – acusação que recai sobre os
ombros das ciências ocultas do século XIX, por exemplo. Se as superstições são
falhas na associação de idéias, como lidar então com as sobrevivências que são,
no mais das vezes obstruções ocorridas no seio de civilizações no que concerne
a história das idéias?
“The principal key to the
understanding of Occult Science is to consider I as based on the Association od
Ideas, a faculty which lies at the very foundation of human reason, but in no
small degree of human unreason also. Man, as yet in a low intellectual
condition, having come to associate in thought those things which he found by
experience to be connected in fact, proceeded erroneously to invert this
action, and to conclude that association in thought must involve similar
connexion in reality. He thus attempted to discover, to foretell, and to cause
events by means of processes which we can now see to have only an ideal
significance.” (1873:104)
A mancha semântica do associacionismo é
marcante aqui, na qual a discussão industrialista se encontra com a moral
libertina na qual a correta associação entre idéias tem respaldo na mais
adequada associação entre pessoas, criando um espelhamento produtivo entre
organização social e sistema de
representações a respeito da vida social e da natureza. Proceder de forma
equivocada implica em não associar as idéias com os fatos, entendendo que os
fatos tem uma certa natureza que não se restringem à escala e dimensão da
sensação produzida por um dado evento.
Recusar os procedimentos de investigação empírica é o equivalente a pedir asilo
na terra do fetichismo pela insistência na prática de toda sorte de
superstições.
Há no argumento de Tylor, assim como em
todo o debate a respeito das superstições com relação ao qual os libertinos
foram vanguarda no século XVII, uma problematização dedicada das artes
divinatórias – o mesmo tipo de arte que fez com que Agostinho de Hipona, em
favor do livre arbítrio, veio modular o presente intuitivo em 3 modos em favor
da atenção como forma de antecipação. O trecho que pretendo ressaltar nos leva,
obviamente a um argumento de tipo “vôo
das andorinhas” que convém discutir com maior vagar pois uma antropologia
da difusão das formas que presa não somente a produção de objetos (industrialismo)
e o teatro das representações (fetichismo) como critérios de objetividade não
pode se furtar de certos desdobramentos em que, por exemplo, Tylor encarne uma
sobrevivência libertina ou que faça, por sua vez, da atividade antropológica
uma forma de difusão cultural. Para além de uma discussão sobre os dados fora
de contexto co-extensiva a Frazer, por exemplo (Strathern, 2014) os signos de
tempos futuros carregam consigo a exata problematização em que determinação e
probabilidade entram em conflito como agências temporalizantes. No caso em
especial, das artes divinatórias, o ponto em questão é a idéia de que signos
indiciários dizem respeito a um evento futuro e não meramente presente.
Se há fumaça, há fogo. Se na relação
indiciária o que entra em questão é a contiguidade entre sinal e objeto, a
crítica ao fetichismo como fórmula do mal-entendido, ou de um mau hábito de
pensamento, está em extrapolar uma relação de contiguidade a toda uma cadeia
causal maior e mais sutil. Este erro faz com que todos os que o cometam
estejam, digamos, na infância da razão o que significa que a racionalidade e a
irracionalidade são ambas potências de casa ato de juízo e que, com a
finalidade do seu melhor desenvolvimento – Primitive
Culture advoga em favor de uma antropologia do desenvolvimento – devem ser
orientados segundo a ordem do método, a uma espécie de administração tutelar:
“The Maori may give a sample of
the character of its rules: they hold it unlucky in an owl hoots during a
consultation, but a council of war is encouraged by prospect of victory when a
hawk flies overhead; a flight of birds to the right of the war-sacrifice is
propitious if the villages of the tribe are in the quarter, but if the omen is
in the enemy direction, the war will be given up.”(Tylor, 1873:108)
O vôo do falcão é índice de um certo
futuro emitidos desde o presente àquele que testemunha, transmitido desde
alhures. A crítica que a antropologia contemporânea poderia fazer a esta
passagem, e a todas as demais, culminaria em super-inflar o problema do
contexto, fazendo com que os requisitos de uma teoria do conhecimento baseado
no conceito de representação como duplo das séries empíricas apreendidas pelos
órgãos dos sentidos e organizadas conceitualmente sofram de hipertrofia. Dito
de outra forma, Tylor estaria agindo como os primitivos que ele classifica como
tal ao isolar toda uma relação possivelmente complexa entre os maori e as
corujas, considerando-a um erro de atribuição reduzindo causalidade às relações
de caráter indiciário. Assim, relações de caça, orientação meteorológica,
espacial que seguramente compreendem um complexo de relações entre corujas e
maori – e o contrário – não estariam sendo considerados. Grande parte do
esforço etnográfico comprometido com a temática do realismo da descrição
etnográfica persiste na tarefa, para todos os efeitos ética, em descrever com
vistas em dizer e comprovar que o primitivo vitoriano – algo semelhante ao
religioso dos libertinos – não existe. Contudo, o primitivo é algo mais difícil
de capturar porque ele sempre tende a ser alguma outra coisa.
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