segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.


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8 (segundo intervalo libertino)- A tensão entre Vico e De Brosses sugerida, que reencena algo que se dá no seio da obra de Francis Bacon, tem um segundo momento, igualmente proveitoso para a introdução do problema para o qual me dedico. Diz respeito ao deslizamento semântico entre o feito e o fato. Seguindo a orientação que o presidente De Brosses sugere, fetiche é um termo forjado por nossos comerciantes do Senegal a partir da palavra portuguesa fetisso, isto é, coisa mágica, encantada, divina ou oriundo dos oráculos; da raíz fatum, fanum, fari (op.cit.:15), exaltando que se trata, antes de tudo de algo feito, fabricado, postiço e que tem na ação humana a imputação de sentido. Isto significa que os poderes atribuídos ao fetiche (o fetiche é causa de algo) é fruto antes da imaginação do que da correta observação da natureza – como a natureza das pedras, como veremos. O fetiche é então o primeiro objeto que uma dada nação se presta a consagrar cerimonialmente. O primeiro exatamente por se reduzir a uma elaboração mais confortável, produzido de maneira infantil. Uma vez consagrado, o objeto participa de um circuito de prestações cuja idolatria não faria justiça sequer a dimensão do homem deificado.
Tal como De Brosses sugere, a relação entre a revelação e o sobrenatural nada mais é do que preguiçosa. Satisfaz-se com a primeira analogia que a mente examina, e a ciência não pode tolerar hábitos indolentes, pondo em evidência a ética protestante que vai além da iconoclastia ao valorizar o exame detalhado como uma forma de conduta constante no exercício da observação. Em Vico o “fato” enquanto decorrente da ação humana como coisa feita, ou fetiche - termo que não dá as caras em Ciência Nova[1] - em nada contradiz o que se impõe como conhecimento racionalmente válido. Pois as formas geométricas, que são igualmente produtos do espírito humano, são a via pelas quais as relações entre as coisas são feitas com o máximo de rigor, o mesmo tipo de rigor que Galileu teria encontrado no livro da natureza que se escreve por símbolos geométricos (Daston:1995; Galileu:1999, Popper, 1985). Eis o espírito que estuda a geometria com a finalidade de conhecer o mundo na condição que é própria à humanidade. Como o processo se dá por via da linguagem não pode, e nem deve impedir que a linguagem mesma aconteça segundo seus próprios desígnios, especialmente os de caráter onomástico, fruto que são da Providência. Não à toa o projeto de Vico recebe a alcunha de economia poética. Que o fato reportado seja feito, imaginado, criado pela ação humana, nisso não há contradição uma vez que é a condição para qualquer coisa que se ponha como horizonte do conhecimento humano.
É contra este tipo de itinerário intelectual que De Brosses se debruça. Entre o enigma e o usual, De Brosses é adepto do tipo de terapia da linguagem que encontramos em argumentos savants como nos Elementos de Filosofia de D’Alembert. Se um termo, uma palavra faz menção tanto ao trivial quanto ao Divino, é no trivial que reside sua verdade, dado que nada há no mundo senão o mundo. Todo e qualquer excedente do trivial é abuso de sentido e contradiz a produção de todas as ideias, que partem do elementar para o complexo e elevado. É neste tipo de exercício em que cada passo se dá num território sem atrito, dado que meramente fantasioso, que as populações bárbaras e seus comentaristas usuais se perdem, perdendo com isso sua especificidade produzindo a indiferença própria às relações selvagens. O mundo maravilhoso é, por fim, meramente trivial quando olhado com método que é, também, sua forma de colonização que, de outra forma não é senão a franja dos processos de normalização dos espaços de relação pela ampliação dos espaços de mera natureza que são, por isso, sujeitos à administração humana. Este movimento, contudo, é fruto de um esforço que, quando datado o momento de redação de Du culte de dieux fétiches usufruía de farta bibliografia e vulgarização, produzindo ecos em instâncias fundamentais da constituição de espaços modernos de instituição, o que produz um eco interessante entre a elaboração das instituições modernas com a normalização da atividade científica de uma forma geral. Com isso quero dizer que o longo debate sobre ciências normais protagonizado pela historiografia de Lorraine Daston e seus parceiros (Daston & Park, 2001; Daston & Galison, 2007) chama a atenção para o complexo disciplinar que constitui a atividade científica moderna segundo seu exercício pragmático que institui um território que impõe aos participantes outra sorte de regras e, ao mesmo tempo reconhece outra forma de objetividade que não a que inaugurara o exercício especulativo mesmo que seja, como no exemplo de De Brosses, com a finalidade de justificar a colonização das paisagens selvagens – o que oferece um retrospecto empírico frutífero para a tensão imanente ao binômio espaços estriados/ espaços lisos de Deleuze & Guattari (1996). O cientista que começa a observar deve, no final de seu exercício, ter rompido com o senso-comum de sua formação. Com isso, ele muda de hábitos produzindo um discurso de especialista, podendo assim participar de uma comunidade e, portanto, de uma forma de comunicação[2].
           
Em meados do século XIX, objetividade como coisa era tão nova quanto a objetividade como palavra. Ao começar em meados do século XIX os homens de ciência começaram a ficar abertamente incomodados com o novo obstáculo para o conhecimento: eles mesmos. Seu medo era que seu self subjetivo estivesse prestes a petrificar, idealizar e, no pior dos casos, regularizar observações somente para encaixá-las nas expectativas: ver o que se desejaria ver.”(Daston & Galison, 2007:34)

Esta obsessão do século XIX possui nome, um conceito para um problema anterior, a saber, os dilemas da observação. Num trabalho que se dedica às publicações de atlas científicos, como é o caso de Daston & Galison (2007), o dilema do recolhimento do espécime que fizesse as vezes de exemplar ou mesmo arquetípico diante das enormes variações de uma dada espécie; e também a fixação do que seria uma determinada espécie animal; todos são exemplos determinantes para atividade da observação e investigação da ordem natural das espécies. O hiato entre os séculos XVII e XIX apontam para uma mudança importante no que diz respeito aos métodos que afetam, como não poderia deixar de ser, também a fortuna iconográfica. A subjetividade que caracteriza o artista romântico, sua capacidade e distinção no trato com as letras, a beleza com que impingia a figura do espécime desenhado, tudo isso já fez parte da arte de observação que, em seu primeiro momento acadêmico fez parte das atividades das Belas Artes, incorporadas ao grau universitário somente durante o período renascentista.
Ora, se atentarmos para o que De Brosses chama a atenção veremos que se trata exatamente de sua participação neste mesmo movimento de negação das afecções mais propriamente subjetivas, ou do espírito, para fins de manutenção da condução do raciocínio por via do método.  Trata-se de advogar em favor de severíssimas mudanças de hábito de forma a atingir, pouco a pouco, em algum grau, a impessoalidade. Este movimento se torna particularmente visível quando contrastamos um determinado estado de arte do século XVIII com o que se move em fins do século XIX:

Por exemplo, em 1866, a Accadémie des Sciences enalteceu as fotografias panorâmicas dos Alpes produzidas pelo geólogo Aimé Civiale por sua “representação fiel dos acidentes” da superfície da terra que, em arte seriam deploráveis mas os quais “bem ao contrário, deveriam ser [o objetivo] para aonde tende a reprodução científica de objetos.” O self científico do século dezenove fora percebido por seus contemporâneos como diametralmente oposto ao do self artístico, assim como as imagens científicas eram constantemente contrastadas com as de caráter científico.”(Daston & Galison, op.cit.:37).

Se de um lado o contraste relativo à produção de imagens se dá entre as artes e as ciências que em outro momento já estiveram na mesma situação nos graus universitários, o que dizer da relação análoga entre as ciências diante do pensamento dogmático? Se no século XIX é a subjetividade que parece sofrer com os golpes do método, ou ao menos é quem ameaça a atividade científica, contra o quê o ceticismo mitigado e distribuído como atitude inferencial que se contrapõe à teologia e à fé dogmática se contrapunha? A historiografia na qual me baseio não vacila em declarar: é o sobrenatural que deve ser anulado como ambiente fenomenológico. É este o percurso sugerido no balanço entre o sobrenatural, o preterntural e o natural como regiões que se prestam a acolher não somente eventos que lhe sejam pertinentes mas também, populações.
Como é de se esperar de uma paisagem conceitual que ordena coisas, pessoas e animais, e é o caso das ciências que dependem de taxinomias, os grupos de fenômenos são compostos por casos-limite e fronteiras. No caso deste balanço tripartite, há um grupo fronteiriço e é a partir dele que convém retomar a primeira seção do trabalho de De Brosses, aquela que propõe uma imagem de selvageria como residente da longínqua Nigrícia. Se há o natural que de forma grosseira aponta para o regular e para o ordinário – há quem diga mundano; há quem diga o exato oposto, e aí está uma questão; se o natural é regular e ordinário, o sobrenatural aponta para algo que acontece como exceção que pode culminar no sublime. Assim, o preternatural serve de entremeio, ainda extraordinário, cuja significação é imprecisa: três sóis no céu, gêmeos siameses, um pequeno peixe que consegue parar um navio, a eterna antipatia entre os lobos e as ovelhas (ou entre cães e gatos). A praeter naturam  não exclui a possibilidade de ser, no limite, um evento inscrito nas possibilidades da natureza em um aspecto que ainda é oculto. Por seu caráter excepcional, atendem também pela alcunha de “maravilhas”(wonder).
Vale notar que neste entreposto entre ciência e religião opera um regime de equivalências importante. Como vimos o natural, como o absolutamente regular, o que em parte diz respeito à configuração de um debate abrangente sobre o espaço homogêneo, posto em voga especialmente por Giordano Bruno e Galileu Galilei, cada um a sua forma. Com isto, é possível recuperar uma seguinte distinção: o natural é regular da mesma forma em que o sagrado pode ser compreendido, nos termos de Mircea Eliade, como a fundação do mundo que cria um centro na extensão homogênea e infinita do espaço (1992:22). Oponho assim o natural ao sagrado pela oposição análoga entre o homogêneo e o heterogêneo que, em termos rigorosamente iluministas se remete ao mesmo espaço, que é aonde se dá o movimento e onde se discriminam os corpos; assim não saímos do terreno de De Brosses que tem uma tendência expansionista indisfarçável.
Ora, se o natural é o terreno da regularidade, não é difícil entender que as ciências e as artes defendidas por De Brosses operam fundamentalmente como uma operação profana que tem como objetivo encontrar regularidades nas formas mais adversas de exceção. Cabe ao philosophe encontrar nas crenças mais absurdas a chave que lhe ilumina, a forma pela qual, no erro encontra a razão. É preciso levar até o bárbaro a luz daquilo que ele mesmo porta sem saber. O custo disso é a eliminação do sobrenatural por via de uma cuidadosa colonização do preternatural.
O detalhe do primeiro passo dado por De Brosses, e compõe o complexo comparativo que sugerem estados experimentais comuns espécie humana, é que seu argumento não trata de nenhum tipo de difusão – ainda que possa haver. O culto de deuses fetiches toma em muitas situações, nomes por empréstimo, como veremos. Mas ainda que a contiguidade geográfica imponha ao argumento uma série de restrições para a especulação, há uma hipótese de fundo que afirma uma condição geral, a de que toda religião começa com o fetichismo – assim como a linguagem acontece a partir de uma associação elementar. A primeira seção do discurso de 1759 não é outra coisa senão uma longa lista de fetichistas que conta com a presença de, dentre outros, iroqueses, haitianos, brasileiros, sírios, apalaches, espanhóis, cubanos, gregos, lapões, ilinois etc. Neste complexo comparativo, De Brosses oferece um pano de fundo com reatalhos da Religião dos Selvagens que é, como é possível deduzir, uma religião a despeito dos religiosos; uma denominação a despeito dos denominados. E, tal como analisada, a maior proximidade com a natureza selvagem não lhes propicia qualquer vantagem na história do pensamento que, por consequência significaria desvantagens na história das instituições humanas:

La Religion des Sauvages, dit un Missionaire, ne consiste que dans quelques superstitions dont se berce leur credulité. Comme leur connoissance se borne à celle des bêtes et aux besoins naturels de la vie, leur culte ‘a pas non plus d’autres objets. Leurs Charlatans leur donnent à entendre qu’il y a une espèce de Génie ou de Manitou qui gouverne toutes choses, qui est le maître de la vie et de la mort, mais ce Génie ou ce Manitou n’est qu’un oiseau, un animal ou sa peau, ou quelque objet semblable, qu’on expose à la veneration dans des cabanes, et auquel on sacrifique d’autres animaux.”(1988:33).

A maior proximidade não sugere outra coisa senão maior rapidez na produção de analogias e, por isso um campo empírico mais frágil na correlação entre eventos naturais. A Religião dos Selvagens não faz da alma das bestas algo de natureza diferente daquela dos homens, chegando mesmo a dotá-las de superioridade. Confundindo o agente com a ação, ou causa com o efeito, tem em geral um mesmo termo para fazer menção a um e outro. Não reconhecem nos fetiches a força anímica que atribui valor às coisas e animais; não reconhecem meros efeitos oriundos de plantas, atribuindo-lhes poder volitivo de ação. A mitologia egípcia que ensina terem sido os deuses aqueles que ensinaram os homens a se portarem segundo sua condição civil seria equivalente à religião grega que narra peripécias de um semi-deus que combate monstros para se equivaler àqueles postos no Olimpo.
A investigação de De Brosses acaba por produzir dois efeitos diferentes. A primeira conduz o argumento para uma escala em que há equivalência entre os termos de comparação produzindo um espaço homogêneo dos sentidos. Egípcios e nigrícios são, via de regra, atados a um modo equivocado de raciocínio que demanda denúncia e, por fim, produz uma segunda equivalência, que é o segundo efeito da comparação. Os sábios modernos que lêem muth como algo além de “história que narra a vida dos mortos ilustres” estaria cometendo o mesmo erro que os demais selvagens – estes de fato, aqueles de direito. Assim sendo, a civilização não é o bastante. É preciso saber controlar o entusiasmo. É preciso desfazer as analogias mais espontâneas em favor de uma investigação meticulosa. E é preciso começar do mais elementar cuja fonte sempre se reconstitui o domínio do experimental próprio à teoria do conhecimento. Assim, com o objetivo de refutar os historiadores que partem da revelação como fonte do saber, é preciso denunciar a atividade mais elementar de criação de ídolos, a mais baixa que não sobrevive sequer aos ataques de fetichistas mais sofisticados. Resta saber como é que se cria, como é que se dá vida a um deus fetiche?
A segunda seção permite que se compreenda que sorte de prejuízos provém o culto dos deuses fetiches, aprofundando a generalidade dos mesmos recorrendo em maior detalhe à mitologia indo-européia, e menos aos relatos de viagem que informaram sua História das Navegações em terras Austrais, ou mesmo a seção anterior. Vale notar que o comentário relativos à Nigrícia tem como fonte, antes de tudo, um painel reduzidíssimo. Afora as fontes clássicas que se delimitam antes de mais nada em regiões mediterrâneas do continente africano, como é exatamente o caso do Egito, De Brosses não contava com muito mais do que a Histoire naturelle du Sénegal, publicado em 1757 por Michel Adanson[3]  e mais alguns relatos reunidos para fins de publicação sobre o mesmo Senegal no verbete da Enciclopédie, escrito por Conrnélius Pauw, que administra a literatura de viagens produzidas sobre a Guiné, a Abissínia, e Congo.
No combate contra a sabedoria dos antigos é exatamente a partir dos exemplos frequentemente emulados – o Egito, a Grécia e a Roma antigos – que De Brosses se detém com maior detalhe. É preciso encontrar formas equivalentes de erro para que o culto dos deuses fetiches possa ser generalizado até o ponto em que sejam isoladas as formas modernas de fetichismo. Mas é preciso também ter por onde discorrer sobre o tema.  
A estratégia utilizada no caso do antigo Egito resume-se na história antiga produzida na antigüidade, se é que podemos chamar assim os escritos de Diodoro Sículo. Assim como já o fizera antes, De Brosses privilegia o testemunho que, não obstante ser de primeira mão, conta com alguma dose de ceticismo, fazendo algo mais do que relatar o que ouve dos povos estrangeiros. A credibilidade está em comparar o que se ouve com o que se vê, o que exige algo mais do testemunho que não pode vir de qualquer um. Deve ser oriundo de alguém que respeita as regras do decoro científico, ainda que não participe do mesmo diretamente[4]. Para tal é preciso desconfiar das classificações impostas pela autoridade dos antigos para fins de um novo processo de observação e nova classificação à luz de uma comparação mais extensa feita a partir de eventos coletados ao redor do globo. O viajante deve ser, para todos os efeitos, uma forma de naturalista das instituições humanas. Mas se há um critério imprescindível é o fato de Diodoro ter passado uma temporada entre os egípcios de forma a poder contar o que viu com os próprios olhos e ouviu com as próprias orelhas, cumprindo alguns dos critérios relativos à observação qualificada.
A longa passagem que De Brosses utiliza dos textos de Diodoro disserta sobre a versão que a mitologia egípcia oferece da origem das instituições humanas, relacionando cada deus a um aspecto da vida civil, elencando a agricultura, as leis, o comportamento cordato e mesmo as festividades como elementos oferecidos como dádiva. A lista de instituições que, segundo Diodoro, os egípcios afirmam ter aprendido com os deuses segue como tal: o pão de lótus, o cultivo de plantas outrora desconhecida, o estabelecimento das leis, o banimento da violência, foram ensinados por Isis; a abolição do canibalismo e a cultura de frutos, o cultivo do vinho e os festejos ao redor da bebida vieram de Osíris; as regras da linguagem, a instituição dos nomes, os ritos de culto do sagrado, os princípios da astronomia, música, dança e exercícios regulares, o cultivo das oliveiras são resultado dos ensinamentos de Mercúrio[5] (sic). De uma forma geral, a edição que De Brosses faz ao citar a passagem de Diodoro sugere que a função dos deuses no Egito fora a de fazerem dos homens, homens, isto é, retirá-los da selvageria. Ora, selvageria é atribuir aos deuses aquilo que é fruto da ação humana, e nisso reside a acusação de De Brosses. Basta ver o papel que a observação meticulosa poderia desempenhar:

Observons ici en passant, que si Toth eût regardé le serpent non comme animal, mais comme un simple emblème de l’éternité, ainsi qu’on en a depuis usé plusiers fois en le dépeignant en cercle se mordant la queue, il étoit inutile qu’il employât beaucoup de tems à observer la nature de ce reptile. »

Toth, tal como descreve Sanchoniaton em de Phoenicum elementis, repetiria o esforço de traduzir fatos por via de alegorias. Este modo de agir diante da realidade implica em antes de mais nada em um conhecimento inútil. Inútil? Para fins científicos, certamente, mas se mirarmos a finalidade política, o diagnóstico de De Brosses não poderia ser mais agudo, em muito semelhante aos exercícios de crítica dos costumes por via das formas bárbaras e orientais que tem nas Lèttres perses de Montesquieu, no Zadig de Voltaire e em Les bijous indiscrètes de Diderot suas formas mais populares[6].
Uma vez que a raiz da palavra mythe remonta às narrativas dos mortos ilustres, a relação entre os deuses fetiches e a autoridade política está desde a raiz manifesta. O papel dos adivinhos e sacerdotes sugere qual tipo de autoridade está fundada no fetichismo que é, antes de mais nada o exercício abstruso e absurdo da razão marcando o que a antropologia social moderna determina como a função social do sacerdócio em detrimento das categorias êmicas de classificação. O alvo no absolutismo não poderia ser mais evidente. Logo no parágrafo anterior à passagem que discute o exercício de adivinhação do futuro por via das técnicas africanas, De Brosses discute o problema dos homens deificados e a idolatria implicada; eram o Egito e a Nigrícia as duas formas de exceção. O fetichismo de base, o mais elementar não opera desde sempre na idolatria do homem deificado, o que implica em dizer que esta não é uma forma frequente de adoração, e muito menos originária:

Mais venons à des faits bien antérieurs à tout ceci, et qui remontent à la plus haute antiquité dont il y ait mémoire parmi les peuples Payens. Nous y verrons quelle idée ils avoient eux-mêmes sur la première origine du cule des astres, des éléments, des animaux, des plantes, et des pierres. On aura lieu remarquer, no sans quelque surprise, que plus le temoignage est ancien, plus le fait est présenté d’une manière simples, naturelle, vraisemblable; et que la première raison qu’on ait donnée de l’introduction de ce culte, est encore la meilleure et la plus plausible qui ait jamais été allégué : de sorte qu’elle pourroit suffire, si sa simplicité, qui ne permet pas d’en faire l’application à tant d’objets variés d’adoration des peuples sauvages, n’obligeoit d’avoir encore recours à quelque autre cause plus générale ». (1988 :60-61)

Retomando o argumento e a autoridade de Sanchoniaton – interpretado por Philo e Biblos, assim como traduzido por Eusébio, o que já dispõe de uma certa linhagem –, vemos a forma como se dá o perigo entre conhecimento e política criando um espaço que indiferencia agente e ação, causa e efeito. É a partir de Sanchoniaton, comentado por Philo, que os atos litúrgicos são confundidos com eventos naturais, e vice-versa. Os ventos impetuosos de Tiro atingem o bosque ao ponto das árvores se agitarem produzido fricção e, por conseguinte, fogo. Os ventos e o fogo são postos em falsa analogia gerando o tipo de mito que narra eventos de combustão espontânea ou, no caso, pelos deuses do vento. O mesmo se dá com as pedras untadas, boetyles. O que marca uma situação como esta é a narrativa fundadora e a autoria primeira das histórias que, se num primeiro momento servem para fundar a vida em comum, logo mais servem para estabelecer o poder soberano que, em bases como as de sua fundação, operam por via do erro, da superstição para sustentar um poder que, à luz da história natural da humanidade só poderia ser ilegítimo.
O descompasso que destitui a humanidade de sua mais óbvia dignidade, que é a atividade intelectual diante do mundo natural, grosseiro e selvagem, perfila uma enormidade de outros exemplos retirados de Estrabão, Plutarco, Tácito, Pausânias e outros notáveis. Os exemplos recolhidos a seguir agravam a acusação dado que não são os deuses que não estão lá uma vez que são postos como fetiches, mas o animais como o chimpanzé, o babuíno, o crocodilo, a tartaruga, o íbis e o gato que são divinizados, assim como plantas e legumes, para não dizer das pedras. As pedras são, no final das contas a prova maior do absurdo porque nelas reside, antes de mais nada o silêncio e a imobilidade. Não se encontra nela nenhum sinal de movimento e ela nada diz, nada grita e, no entanto no culto de deuses fetiches sequer uma forma antropoide é necessária para que ela venha a desempenhar um papel divino. Atingimos aqui a forma mais baixa de idolatria que serve de protótipo do argumento de De Brosses, sobre a qual não pesa nenhuma forma de concretude que não a autoridade da voz que impinge a pedra de alma. A pedra talhada não precisa sequer ser antropomórfica. Um talhe que a deixe quadrada pode ser suficiente para produzir a idolatria que é, para todos os efeitos condenada em mais de um livros do Velho Testamento – desde a Gênese aos livros dos profetas.
Neste caso é impensável abolir a trajetória da condenação de um pano de fundo moral de respeito, observância e penitência sob os ditames da criação. E é assim que, ao sugerir a figura do self científico, Daston & Galison (2007) fazem menção ao conteúdo moral da ética da observação que começa a tomar forma em trabalhos como de De Brosses sem conseguirem atentar, contudo, à moral libertina que lhe é particular, em especial no que tange o âmbito das reformas jurídicas dos séculos XVII e XVIII. Ainda assim, a disciplina da repetição à exaustão dos procedimentos, a sujeição ao tédio e ao silêncio e a anulação do belo como manifestação autoral fazem parte do tipo de mortificação ascética que caracterizam algumas formas modernas de ascese intramundana, como insiste Max Weber (2004; parte II, capítulo 1). Na formação de diretrizes de um modo de objetividade mecânica, cuja característica é o ideal de um mínimo de intervenção para atingir o máximo de objetividade e que tem seu auge exatamente no século XIX europeu, o meramente visível e o imediatamente constatado não se prestam à diligência que as investigações devem se sujeitar. A partir de um naturalista contemporâneo, Carolus Linnaeus (Carl Linneu), Daston & Galison definem com parcimônia esta fidelidade à natureza que conduz tanto a investigação quanto a crítica de De Brosses. Afinal de contas, para além das variações geográficas, ou de tipos no caso da botânica, é preciso se dessensibilizar diante da variedade hipnótica da natureza, recorrendo para tanto a uma seleção agressiva de fontes e espécimes. Se Linneus debate com seus ilustradores ao dizer que há uma dimensão de negação de si na confecção das ilustrações dos atlas de história natural que produzia, é por conferir uma certa constância estatística nas formas que não estão, integralmente em nenhuma delas especificamente fazendo o sistema classificatório operar por zonas ou regiões de indiferença que são, todavia, específicas. A operação que elabora a Nigrícia e os modos selvagens de religião não parecem advir de outro esforço senão deste.  Les peuples on pu se recontrer également sur ces absurdités, ou se les communiquer les uns aux autres (De Brosses, 1988:95).


[1] O que poderia ser explicado pelo fato de que, ao contrário de De Brosses, as fontes de Vico são majoritariamente oriundas das letras clássicas, com ênfase em Plotino, Pico della Mirandola, Herôdoto, Tucídides e Tácito, e não livros de viajantes cujas citações se dão mais por via de escritores que redigiam a respeito do que pelos relatos em primeira pessoa que, para fins gerais, e diante certas premissas epistemológicas, não são assim tão importantes. Vico era professor de oratória e retórica, e é exatamente a economia que movimentam as palavras o seu foco.
[2] Vale notar que esta é uma premissa que Lorraine Daston não carrega sozinha. Não obstante ter escrito seus livros em conjunto como com a historiadora Katharine Park e com o físico Peter Galison, esta premissa relativa à comunicação entre pares como fundamento da atividade científica está presente em outros trabalhos que absorvem de alguma forma as discussões foucaultianas sobre disciplina dos corpos. Um exemplo disso é História da Química, de Bernardette Bensaude-Vincent e Isabelle Stengers, livro que levante a tese interessante sobre o corte epistemológico entre a alquimia e a química. Segundo as autoras é a necessidade de compartilhar dados e produzir um sistema de notações comparativo eficiente, inclusive para fins industriais, que a concepção do objeto de pesquisa e da forma de produzir conhecimento sofreu sua mutação decisiva. Por não ser exclusivamente o império do sábio, mas por participar de um comércio de fórmulas que deveriam poder ser repetidas ad infinitum que a química encontra o moto-propulsor para reconfigurar todo o sistema e conhecimento alquímico. A hipótese, não posso deixar de confessar, me soa tentadora. Para uma história social deste esmo processo, vide Peter Burke (2003).
      Convém lembrar, e aqui tanto Michel de Certeau como historiador e Louis-Alphonse Cahagnet como testemunha servem como fontes indispensáveis para estabelecermos o contraponto que a modernização dos sentidos (Gumbrecht, 1998) impões, as saber, de como o empirismo como critério de investigação toma a forma de um empreendimento público, e não oculto. Esta reserva com relação aos procedimentos do ocultismo e da magia próprios da moral libertina tem incidência maior exatamente nos termos de explicação do que na gama de eventos considerados relevantes. E aqui, a história da química é tão interessante quanto ilustrativa – cabendo, antes de mais nada, uma ressalva. Ao dizer que a história da química oferece contribuições o que estou dizendo é que o conjunto narrativo que oferece à química tal como a entendemos – reificada em alto grau, sobretudo em sua especialização – um percurso, mais do que inteligível, justificável. Ou racional. Dito de outra forma, a história da química seria a narrativa do seu triunfo, em especial sobre a alquimia. Fôssemos tratar a história do triunfo com certa desconfiança, como nos sugere Koselleck (2013) dizendo que a química não é exatamente, nem o que diz ser e tampouco o que dizem dela, estaríamos sendo algo indiferentes à instituição que de alguma forma ela veio a ser. Em favor de sua história estaríamos cometendo, não necessariamente uma injustiça mas uma falta de justeza com o devir da química que todavia, não dependerá destas notas para acrescentar novas dimensões ao seu triunfo.
      A hipótese central do livro de Isabelle Stengers e de Bernardette Bensaude-Vincent (1986) é algo sofisticado, ainda que trabalhe na boa companhia da recente historiografia da leitura e dos métodos de impressão e difusão de impressos, como os de Eizabeth Eisentein, Ian Watt, Michel de Certeau, Robert Darnton e Roger Chatier, sem necessariamente dialogar explicitamente com elas. A riqueza do trabalho em questão, no qual a comunicação via correspondência científica é abordada segundo minúcias pragmáticas sutis, isola um elemento sensível da química moderna: a elaboração de um sistema que permita transformar uma experiência extraordinária – laboratorial, e não de campo – em algo reproduzível por outrem em um outro laboratório. A conexão entre o sistema de notação e descrição das experiências e o registro gastronômico de procedimentos culinários é suficientemente marcante para impregnar, por exemplo, a estrutura da argumentação dos dois volumes dedicados à arte da magia em The Golden Bough de James Frazer. E é este sistema aquele que melhor atenta contra os arcanos do poder sacerdotal, em particular aquela que trava contato com a criptografia das ciências ocultas. Afinal, não é difícil imaginar que a química não começa do zero e que muitos de seus proponentes fundamentais carregassem consigo um vasto repertório de experiências bem sucedidas no que tange a alcançar a reação pretendida entre os elementos. O embaraço constava, contudo, em registrar as experiências segundo métodos que garantissem a reprodutibilidade da reação alhures – no que implica inclusive num acordo quanto a nomenclatura das partes e na definição de quais são as partes pertinentes e as medidas correlatas de forma a atingir as reações sob controle.  Isto porque é preciso isolar as partes eficientes, tanto do ponto de vista classificatório quanto, obviamente, instrumental. Este tipo de registro é o que se pode considerar como um esforço decisivo contra as ciências ocultas: o ocultismo não gera patentes enquanto a química é uma ciência industrial e depende das patentes para fazer funcionar sua própria economia.
[3] Vide Duchet (1971:47). É aonde encontra-se uma discussão mais cuidadosa das fontes, sua publicação e o papel da composição que estas fontes desempenha.
[4] Sobre esta disparidade não consegui encontrar nenhum estudo e certamente não posso me dedicar ao tema nesta pesquisa. Mas é interessante notar como é que bibliografias tão afastadas do decoro científico em franca formação (Schapin, 1994) podem ser utilizadas como fontes seguras mesmo sendo fontes antigas, como é o caso de Diodoro. Certamente que isto demandaria um trabalho à parte, mas também merece atenção que isto justifica em parte o valor do ceticismo, mesmo a partir de escritos antigos como o de Sextus Empiricus, na formação de um conteúdo bibliográfico que oferece ferramentas para aqueles que recuam antes de dar o passo rumo à fé. Restaria saber, e isto não sei afirmar, qual o papel de Diodoro neste sistema de equivalências que produz afinidade.
[5] Aqui a menção a Mercúrio merece atenção. Sendo a passagem uma citação direta de Diodoro (De Brosses, 1988:40-42), há dois níveis problemáticos relativos à sua aparição na lista de deuses. A primeira questão diz respeito à autoctonia e a divindade compartilhada entre romanos e egípcios durante o período de domínio de Roma sobre a região, assim como a extensa relação de contato e reformulação litúrgica e mitológica que o processo deve ter evocado. Mas ver Mercúrio como um deus egípcio merece considerações mais precisas. Ao mesmo tempo, é sintomático vê-lo nesta posição exatamente porque parte do argumento de De Brosses, como já vimos, diz respeito aos deuses fetiches tomados de empréstimo, o que sugere questões delicadas relativas à autoctonia das formas de culto e, ao mesmo tempo, à estabilidade da relação entre identidade e instituição social. Para uma discussão mais detida sobre o assunto, ainda que breve, remeto o leitor ao artigo de Jean Pouillon (1975) e Pires (2011).
[6] Em Estrutura do harém (Grosrichard, 1979) é possível encontrar um  painel generoso da bibliografia iluminista e libertina que se utiliza da vulgata relativa à crítica do absolutismo por via de figuras retiradas da bibliografia orientalista. O interessante é perceber como a utilização de alegorias, proibida no território do discurso científico se reveste de forma legítima no território da crítica que é, para todos os efeitos, produzida de forma indireta, ou melhor, nas formas restritivas de controle do imaginário a respeito do qual Luiz Costa Lima dedicou parte de sua obra (1989, 1988, 1986). A seguinte passagem sobre racionalismo e religião mostra, contudo, o quanto a crítica do inútil vai de encontro ao que procuro descrever aqui: “(...)as especulações imaginárias representam o obstáculo que os philosophes, em defesa do cálculo pragmático, terão de denunciar, agredir e identificar com as malditas superstições. A defesa do progresso e do avanço da humanidade exige que o critério do útil sobrepasse o ridículo gasto do pensamento em elucubrações ociosas.”(Costa Lima, 1988:94).

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