quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.


 
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TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. Les empêcheurs de penser en rond/Seuil. Paris. 2001.
TYLOR, Edward Burnett. Primitive Culture: researches into the development of mythology, philosophy, religion, language, art and custom. John Murray. Londres. 1873 [1871].



13-  Que me seja permitido, aqui, simplesmente repetir um trecho de uma nota anterior.

-           “Se há fumaça, há fogo. Se na relação indiciária o que entra em questão é a contiguidade entre sinal e objeto, a crítica ao fetichismo como fórmula do mal-entendido, ou de um mau hábito de pensamento, está em extrapolar uma relação de contiguidade a toda uma cadeia causal maior e mais sutil. Este erro faz com que todos os que o cometam estejam, digamos, na infância da razão o que significa que a racionalidade e a irracionalidade são ambas potências de casa ato de juízo e que, com a finalidade do seu melhor desenvolvimento – Primitive Culture advoga em favor de uma antropologia do desenvolvimento – devem ser orientados segundo a ordem do método, a uma espécie de administração tutelar:

The Maori may give a sample of the character of its rules: they hold it unlucky in an owl hoots during a consultation, but a council of war is encouraged by prospect of victory when a hawk flies overhead; a flight of birds to the right of the war-sacrifice is propitious if the villages of the tribe are in the quarter, but if the omen is in the enemy direction, the war will be given up.”(Tylor, 1873:108)

O vôo do falcão é índice de um certo futuro emitidos desde o presente àquele que testemunha, transmitido desde alhures. A crítica que a antropologia contemporânea poderia fazer a esta passagem, e a todas as demais, culminaria em super-inflar o problema do contexto, fazendo com que os requisitos de uma teoria do conhecimento baseado no conceito de representação como duplo das séries empíricas apreendidas pelos órgãos dos sentidos e organizadas conceitualmente sofram de hipertrofia. Dito de outra forma, Tylor estaria agindo como os primitivos que ele classifica como tal ao isolar toda uma relação possivelmente complexa entre os maori e as corujas, considerando-a um erro de atribuição reduzindo causalidade às relações de caráter indiciário. Assim, relações de caça, orientação meteorológica, espacial que seguramente compreendem um complexo de relações entre corujas e maori – e o contrário – não estariam sendo considerados. Grande parte do esforço etnográfico comprometido com a temática do realismo da descrição etnográfica persiste na tarefa, para todos os efeitos ética, em descrever com vistas em dizer e comprovar que o primitivo vitoriano – algo semelhante ao religioso dos libertinos – não existe. Contudo, o primitivo é algo mais difícil de capturar porque ele sempre tende a ser alguma outra coisa.”(9)

O jornal é o meio que pensa para o leitor. Não somente reporta eventos que, uma vez acontecidos são considerados pertinentes à comunidade de assinantes e leitores – o que é um problema retórico, pois o jornal não é necessariamente redigido pensando em pensar para os leitores acidentais -; o jornal publica tendências, aponta o futuro por via de técnicas diversas. Uma delas é exatamente a estatística, que cumpre a função de avisar sobre os perigo iminentes.

As folhas públicas se transformaram socialmente então  naquilo que são vitalmente os  órgãos dos sentidos. Cada escritório de redação não será mais que um confluente de diversos escritórios de burocracia, algo semelhante à retina como feixe de nervos especiais recebendo, cada um, sua impressão característica, ou como o tímpano é um feixe de nervos acústicos. Aqui a estatística é uma espécie de olho embrionário semelhante ao dos animais inferiores que então enxergam somente o necessário para reconhecerem a aproximação de um inimigo, ou de uma presa; ainda assim, é um serviço e tanto que nos oferece vindo a nos impedir assim de correr sérios riscos.”(Tarde, 2001:195)

Assim, há o momento da produção. E então a estatística é observação, coleta de dados, registro, catalogação e organização arquivística; é também a produção de cronologia temática dispondo de sinais para a entrada e saída, a conexão com outros arquivos presididos com a mesma constância, com as mesmas escalas temporais de forma a permitirem a indução da diacronia sincronizada – a estatística é, portanto, um esforço da anulação da diferença entre o tempo estrutural e o tempo cronológico, o que só seria possível na tradução estatística de todos os tempos e de todas as coisas diluídos num mar de combinatória vindo, assim, a simular todo um mundo. No momento de produção o que vemos é um exercício impessoal de composição de tudo aquilo que mais adiante será estatística vindo a ceder, no momento de sua publicação em que a fisionomia registrada numa curva literalmente mostra a sua face, ainda que de perfil. Ver a estatística não é, em medida alguma, o mesmo que produzi-la. O ato de ver a curva implica, para aquele que vê na curva um produto estatístico, no mesmo que capturar o movimento de algo sem que seja, absolutamente, o movimento de alguém. Assim,  que se move é a criminalidade, os nascimentos, os casamentos, os suicídios. Ver as curvas sinuosas em seus movimentos bruscos repete os passos de quem observa as curvas agudas do vôo das andorinhas. Afinal, o que vemos como produto da atividade estatística é um desenho que é, também, a abertura premonitória para o futuro[1].


[1] « Pourquoi, dirais-je, les dessins statistiques tracés à longue source papier par des accumulations de crimes et de délits successifs transmis en procès-verbeaux aux parquets, des parquets, en états annuels, au bureau de statistique à Paris, et de ce bureau, en volumes brochés, aux magistrats des divers tribunaux, pourquoi ces silhouettes, qui expriment elles aussi, et traduisent aux yeux des amas et des séries de faits coexistants ou successifs, sont-elles réputées seules symboliques, tandis que la ligne tracée dans ma rétine par le vol d’une hirondelle est jugée une réalité inhérente à l’être même qu’elle exprime et qui consisterait essentiellement, ce nous semble, en figures mobiles, en mouvements dans l’espace figuré ? Est-ce que, au fond, il y a moins de symbolique que là ? Est-ce que mon image rétinienne, ma courbe graphique rétinienne du vol de cette hirondelle n’est pas seulement l’expression d’un amas de faits (les divers états de cet oiseau) que nous ‘avons aucune raison de regarder comme analogues le moins du monde à notre impression visuelle ? » (Tarde, 2001 :192)

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