TYLOR,
Edward Burnett. Primitive Culture:
researches into the development of mythology, philosophy, religion,
language, art and custom. John Murray. Londres. 1873 [1871]
5-
Se me permito repetir exaustivamente o termo pós-revolucionário, que não se
compreenda contudo se tratar de uma espécie de cronologia de tipo fiat no qual, a partir de um determinado
momento tudo é diferente. Este corte, que seguramente faz parte não somente da
imaginação conceitual mas também da ordem dos eventos, não é exatamente o que
pretendo chamar de pós-revolucionário. Se estou me valendo em grande parte da
biografia e pensamento de reformistas mais ou menos radicais, como o são
François Guizot, Vicor Cousin e Charles Renouvier, e os mesmos são epígonos de
um momento que responde à tarefa, tanto auto-proclamada como parte de uma
economia de relacionamentos, de tomar as rédeas de um enorme complexo
político-intelectual; é porque esta tarefa corresponde a um problema em
particular muito especial que é, nesta caricatura, o que compreendo ser a
atitude pós-revolucionária por excelência: a mudança de hábitos.
Nunca é demais enfatizar que Tylor não é
francês. E se for, o é à sua própria maneira. No entanto, é inglês, antropólogo
cuja vida intelectual toma lugar na segunda metade do século XIX. Longe o
suficiente e afastado o suficiente para que possamos desempossá-lo de qualquer
relação direta com o exercício revolucionário de indiferença com o lugar a ser
ocupado pela religião francesa. Eis o que uma precaução metodológica
historiográfica recomendaria, isto é, talvez seja melhor deixar Tylor fora
desta história. Contudo, as pretensões do modelo de antropologia que ele
defende em seu Primitive Culture o
habilita a sair de contexto, penetrar nas fronteiras outras e advogar
contrariamente a toda e qualquer opinião que não reconheça o artificio do
exercício comparativo da antropologia que opera, antes de mais nada, por
analogias selvagens. Estas são analogias produzidas por selvagens; mas também
aquelas analogias que se relacionam com voracidade selvagem; e por fim,
analogias que produzem selvagens fora do ambiente de selvageria. Como tenho
reiterado, uma região de indiferença que opera, em grande parte, como uma
reserva de conservação. Eis aqui a dialética da mudança de hábitos que convém
reconstituir, pois ela tem muito a dizer sobre os paradoxos da religião no
universo após a Revolução Francesa, mesmo que por meio de alegorias.
Digamos que diante de uma posição
ultramontana, Tylor estaria na frente inimiga, propriamente libertina. E com
“libertino” eu quero dizer “ceticismo interessado”, restando com isso desvendar
o objeto de interesse que, no caso se trata do pensamento religioso então
tratado como opinião. E assim, a mudança de hábitos vista pelo prisma de Tylor
é expressamente uma mudança de opinião sobre o estatuto da opinião. São, assim,
muitas histórias que podem ser contatadas com vistas em relacionar a redação de
Primitive Culture com a Revolução
Francesa sem cometermos com isso alguma espécie fabulação vã. Creio que dois
linhas narrativas merecem atenção, até mesmo para que possamos voltar ao
momento Guizot com algum proveito. A primeira linha diz respeito à leitura de
Tylor como libertino. A segunda diz respeito a Tylor como um leitor de Hume, o
que significa ser um pensador da experiência, dos hábitos de pensamento, do
ceticismo mitigado e, obviamente, da religião natural que é, antes de mais
nada, para-doutrinária ou fundamentalmente heterodoxa.
Quero evitar aqui a polêmica a respeito da
origem da linguagem, em especial com relação à teologia e o problema da
linguagem adâmica. Seria um desvio enorme com pouco proveito para o momento em
que o que se pretende a elucidação do desenho que se opõe à investigação com
este teor. O quinto capítulo de Primitive
Culture é dedicado ao problema da linguagem. Numa sucessão algo inebriante
em que Tylor destila analogias entre música e linguagem, com precisão e estilo
notáveis, o debate sobre a linguagem emocional e imitativa tem uma preocupação
maior. Partindo da premissa de que a aquisição de linguagem se dá por processos
associativos que partem de partículas elementares de forma a se desdobrarem em
associações mais complexas, porque propriamente abstratas, o modelo
antropológico em questão é fundamentalmente mimético. Mimético na medida em que
todas as línguas então inspecionadas
contém alguns traduzem sons articulados a partir de tipos de sons imediatamente
naturais ou imediatamente inteligíveis – no caso, interjeições, fazendo com
que Tylor possa ser incorporado na já extensa bibliografia a respeito dos atos
de fala. O desenvolvimento filogenético da linguagem não são fruto de qualquer
herança, mas do processo de aquisição no qual se dá a transferência
(transdúctil?) do mundo dos sons para o mundo dos sentidos. Assim, a língua é
um ente tão arbitrário quanto dedutível e, portanto, pertencente ao universo da
cognição.
“Like the pantomimic gestures,
they are capable of conveying their meaning of themselves, without reference to
the particular language they are used in connexion with. From the observation
of these, there have arisen speculations as to the origin of language, treating
such expressive sounds as the fundamental constituents of language in general,
considering those of them which are still plainly recognizable as having
remained more or less in their original state, long courses of adaptation and
variation having produced from such the great mass of words in all languages,
in which no connexion between idea and sound can any longer certainly made.
Thus grew up from the doctrines of a “natural” origin of language, which,
dating from classic times, were developed in the eighteenth century into a
system by that powerfull thinker, the President Charles de Brosses, and in our
own time are being expanded and solidified by a school of philologers, among
whom Mr. Hensleigh Wedgewood is the most prominent.” (1873:146)
Deixemos o contemporâneo de lado. Quem nos
chama a atenção é o libertino Charles de Brosses, este pensador poderoso que
estabelecera as bases de uma linguística mecânica, isto é, materialista e, não
menos, aquele que estabelecera o conceito de fetichismo. Presidente da Assembléia de Dijon é um ancestral
respeitável dos antropólogos de gabinete – como eu, inclusive. Leitor de
diários e relatos de viagens no percurso dos anos 1750-1760, é por via deste
material, dentre os quais aquele redigido pelo missionário jesuíta Lafitau, que
que suas diversas sumas histórico-etnográficas são escritas. Assim, para além
de Lèttres familières sur l’Italie,
De Brosses escreveu o Traité sur la
formation mécanique de la langue – indicado por tantos, como Tylor, como
primeiro tratado moderno de filologia – e Histoire
des navigations aux terres australes. Neste que é um tratado de história da
expansão colonial no oceano pacífico coube convir a primeira remissão às
crenças selvagens (ou crenças dos selvagens) como fetichismo. E é a estrutura
deste conceito que interessa aqui, tal como formulada por De Brosses uma vez
que é nela que a região de indiferença
recebe nome e geografia. Estamos falando, então, da Nigrícia.
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