sábado, 6 de dezembro de 2014

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.

TYLOR, Edward Burnett. Primitive Culture: researches into the development of mythology, philosophy, religion, language, art and custom. John Murray. Londres. 1873 [1871]

 
5- Se me permito repetir exaustivamente o termo pós-revolucionário, que não se compreenda contudo se tratar de uma espécie de cronologia de tipo fiat no qual, a partir de um determinado momento tudo é diferente. Este corte, que seguramente faz parte não somente da imaginação conceitual mas também da ordem dos eventos, não é exatamente o que pretendo chamar de pós-revolucionário. Se estou me valendo em grande parte da biografia e pensamento de reformistas mais ou menos radicais, como o são François Guizot, Vicor Cousin e Charles Renouvier, e os mesmos são epígonos de um momento que responde à tarefa, tanto auto-proclamada como parte de uma economia de relacionamentos, de tomar as rédeas de um enorme complexo político-intelectual; é porque esta tarefa corresponde a um problema em particular muito especial que é, nesta caricatura, o que compreendo ser a atitude pós-revolucionária por excelência: a mudança de hábitos.
Nunca é demais enfatizar que Tylor não é francês. E se for, o é à sua própria maneira. No entanto, é inglês, antropólogo cuja vida intelectual toma lugar na segunda metade do século XIX. Longe o suficiente e afastado o suficiente para que possamos desempossá-lo de qualquer relação direta com o exercício revolucionário de indiferença com o lugar a ser ocupado pela religião francesa. Eis o que uma precaução metodológica historiográfica recomendaria, isto é, talvez seja melhor deixar Tylor fora desta história. Contudo, as pretensões do modelo de antropologia que ele defende em seu Primitive Culture o habilita a sair de contexto, penetrar nas fronteiras outras e advogar contrariamente a toda e qualquer opinião que não reconheça o artificio do exercício comparativo da antropologia que opera, antes de mais nada, por analogias selvagens. Estas são analogias produzidas por selvagens; mas também aquelas analogias que se relacionam com voracidade selvagem; e por fim, analogias que produzem selvagens fora do ambiente de selvageria. Como tenho reiterado, uma região de indiferença que opera, em grande parte, como uma reserva de conservação. Eis aqui a dialética da mudança de hábitos que convém reconstituir, pois ela tem muito a dizer sobre os paradoxos da religião no universo após a Revolução Francesa, mesmo que por meio de alegorias.
Digamos que diante de uma posição ultramontana, Tylor estaria na frente inimiga, propriamente libertina. E com “libertino” eu quero dizer “ceticismo interessado”, restando com isso desvendar o objeto de interesse que, no caso se trata do pensamento religioso então tratado como opinião. E assim, a mudança de hábitos vista pelo prisma de Tylor é expressamente uma mudança de opinião sobre o estatuto da opinião. São, assim, muitas histórias que podem ser contatadas com vistas em relacionar a redação de Primitive Culture com a Revolução Francesa sem cometermos com isso alguma espécie fabulação vã. Creio que dois linhas narrativas merecem atenção, até mesmo para que possamos voltar ao momento Guizot com algum proveito. A primeira linha diz respeito à leitura de Tylor como libertino. A segunda diz respeito a Tylor como um leitor de Hume, o que significa ser um pensador da experiência, dos hábitos de pensamento, do ceticismo mitigado e, obviamente, da religião natural que é, antes de mais nada, para-doutrinária ou fundamentalmente heterodoxa.
Quero evitar aqui a polêmica a respeito da origem da linguagem, em especial com relação à teologia e o problema da linguagem adâmica. Seria um desvio enorme com pouco proveito para o momento em que o que se pretende a elucidação do desenho que se opõe à investigação com este teor. O quinto capítulo de Primitive Culture é dedicado ao problema da linguagem. Numa sucessão algo inebriante em que Tylor destila analogias entre música e linguagem, com precisão e estilo notáveis, o debate sobre a linguagem emocional e imitativa tem uma preocupação maior. Partindo da premissa de que a aquisição de linguagem se dá por processos associativos que partem de partículas elementares de forma a se desdobrarem em associações mais complexas, porque propriamente abstratas, o modelo antropológico em questão é fundamentalmente mimético. Mimético na medida em que todas as línguas então inspecionadas contém alguns traduzem sons articulados a partir de tipos de sons imediatamente naturais ou imediatamente inteligíveis – no caso, interjeições, fazendo com que Tylor possa ser incorporado na já extensa bibliografia a respeito dos atos de fala. O desenvolvimento filogenético da linguagem não são fruto de qualquer herança, mas do processo de aquisição no qual se dá a transferência (transdúctil?) do mundo dos sons para o mundo dos sentidos. Assim, a língua é um ente tão arbitrário quanto dedutível e, portanto, pertencente ao universo da cognição.

Like the pantomimic gestures, they are capable of conveying their meaning of themselves, without reference to the particular language they are used in connexion with. From the observation of these, there have arisen speculations as to the origin of language, treating such expressive sounds as the fundamental constituents of language in general, considering those of them which are still plainly recognizable as having remained more or less in their original state, long courses of adaptation and variation having produced from such the great mass of words in all languages, in which no connexion between idea and sound can any longer certainly made. Thus grew up from the doctrines of a “natural” origin of language, which, dating from classic times, were developed in the eighteenth century into a system by that powerfull thinker, the President Charles de Brosses, and in our own time are being expanded and solidified by a school of philologers, among whom Mr. Hensleigh Wedgewood is the most prominent.” (1873:146)

Deixemos o contemporâneo de lado. Quem nos chama a atenção é o libertino Charles de Brosses, este pensador poderoso que estabelecera as bases de uma linguística mecânica, isto é, materialista e, não menos, aquele que estabelecera o conceito de fetichismo. Presidente da Assembléia de Dijon é um ancestral respeitável dos antropólogos de gabinete – como eu, inclusive. Leitor de diários e relatos de viagens no percurso dos anos 1750-1760, é por via deste material, dentre os quais aquele redigido pelo missionário jesuíta Lafitau, que que suas diversas sumas histórico-etnográficas são escritas. Assim, para além de Lèttres familières sur l’Italie, De Brosses escreveu o Traité sur la formation mécanique de la langue – indicado por tantos, como Tylor, como primeiro tratado moderno de filologia – e Histoire des navigations aux terres australes. Neste que é um tratado de história da expansão colonial no oceano pacífico coube convir a primeira remissão às crenças selvagens (ou crenças dos selvagens) como fetichismo. E é a estrutura deste conceito que interessa aqui, tal como formulada por De Brosses uma vez que é nela que a região de indiferença recebe nome e geografia. Estamos falando, então, da Nigrícia.

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