sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.

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ANDRIOPOULOS, Stefan. Possuídos: crimes hipnóticos, ficção corporativa e invenção do cinema. Contraponto. Rio de Janeiro. 2013. 

DELEUZE, Gilles. A lógica do sentido. Perspectiva. São Paulo. 1999.

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TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. Les empêcheurs de penser en rond/Seuil.
Paris. 2001.

TYLOR, Edward Burnett. Primitive Culture: researches into the development of mythology, philosophy, religion, language, art and custom. John Murray. Londres. 1873 [1871]


10- A figuração do primitivo, do selvagem não se dá sem que lhe seja circunscrito seu ambiente propício com relação ao qual não cabe qualquer unanimidade. Afinal, ao primitivo pode ser reputada uma enorme distância, uma enorme diferença na constituição de sua raça, de seu espírito e, todavia, pode se mover num átimo para encarnar no vizinho ao lado. Não basta, obviamente, reduzir o diabo da selvageria a uma mera disputa em que o selvagem é categoria de acusação, o que parece ser suficiente desde uma certa sociologia em que os hábitos adquiridos servem como fatores suficientes de distinção. Há uma outra dimensão relativa a este universo na qual atenta-se para a possibilidade do selvagem atender ao chamado que o vocábulo transmite. Se o selvagem responde ao apelo feito por terceiros, à selvageria.
            Entendendo que a linguagem em seu estado primitivo carrega, segundo a tese de Tylor (e De Brosses) numa mimese de caráter onomatopaico-imitativa, a figura do primitivo como imitador é extremamente sugestiva, para não dizer que é definitiva na imaginação a respeito do tema em diversas inventivas produzidas desde o alvorecer da sociedade industrial. De uma forma ou de outra, a configuração da língua em estado selvagem caracterizada como sentido em um estágio imitativo, isto é, possuído pela coisa sem que possa operar como propriamente como linguagem, mas como uma dimensão reduzida da mesma. Afinal, grande parte da caracterização da linguagem em seu caráter evolutivo se presta ao acompanhamento da ampliação da capacidade abstrativa que ela opera vindo a conseguir atingir propriedades combinatórias de mais a mais sofisticadas. O primitivo parece ser aquele que, à forma dos idiotas dos monastérios e da idiotia de uma forma geral, não exerce cidadania neste território e que, estando sujeito à tutela de outrem, age como se estivesse fora de si. Possuído.
            O livro de Stefan Andriopoulos (2013) oferece, no que tange ao tema da possessão, algo tão sintomático quanto interessante porque demanda um esforço um tanto quanto contra-intuitivo pois não participa compartilha do hábito em remeter os problemas relativos à possessão ao material oriundo de viagens de exploração ou outras fontes das pesquisas etnológicas. Isto quer dizer que ao fazer, aponta para uma outra direção, o que parece mais ou menos obrigatório quando o tema é nada mais, nada menos que a sujeição a uma vontade alheia, o tema clássico das teorias da dominação expressas, primeiramente, no domínio do direito processual criminal. Isto porque, como bem sabemos desde a consolidação da moral libertina, toda ação de tipo direct symbol (Tylor, 1873) implica um símbolo diretor, em geral articulado por um mediador sacerdotal que assume funções políticas – com ênfase no termo funções, pois faz parte de um dos planos em que a linguagem funcional localiza a religião; o outro é, como se sabe, a teoria do conhecimento.
            Em grande parte, a sociologia e o pensamento social de uma forma geral repercutem em grande parte este tipo de preocupação relativa às agências invisíveis de pessoas jurídicas conformadas em crimes de responsabilidade cujo enquadramento legal é sempre tão escorregadio, especialmente no que tange os efeitos das pessoas jurídicas e demais pessoas de ficção.

            Quando o estudo sociológico de Durkheim intitulado As formas elementares da vida religiosa (1912) descreveu o “mana” como uma “força difusa e anônima” – a um tempo ubíqua e intangível -, o texto durkheimiano formulou, concomitantemente, uma teoria social que era pertinente não apenas às sociedades “primitivas”, mas também aos modernos agregados corporativos e seus efeitos nas pessoas físicas. Durkheim enfatizou que as forças de coesão social funcionam através de “mecanismos psíquicos” complexos que não são externos ao sujeito, mas o captam por dentro. Depois de participar de diversos experimentos hipnóticos, o pobre sapateiro Mollinier acreditou estar sob a influência irresistível de um ser estranho e invisível. Ao mesmo tempo, o jurista von Gierke descreveu a “vida psíquica” do membro da corporação como “determinada pela força abrangente de um agregado espiritual organizado, que funciona dentro do indivíduo”. Como declarou Durkheim, com imagens semelhantes às alucinações de Mollinier e à conceituação gierkiana do membro corporativo “possuído”: “Visto que a pressão social se faz sentir por meio de canais mentais, era fatal que ela desse ao Homem a ideia de que existem fora dele uma ou várias forças, morais, poderosas, à quais ele está sujeito. Dado que tais forças lhe falam em tom de ordem e, vez por outra, até o mandam violar suas inclinações mais naturais, o ser humano estava fadado a imaginá-las externas a si mesmo””. (Andriopoulos, 2013:17-18).

            O que Andriopoulos afirma é que as formas de descrição de coesão social, uma das funções basilares da moral na qual a religião fora convertida, em geral são veiculadas pela fórmula de uma força externa que entra em nós – no que pese a devida locução do sociólogo com seu leitor. Gabriel Tarde também produz uma figura particular na qual o homem social é sonâmbulo cujo estado hipnótico é própria às formas de sonho que se correspondem às teorias médicas da Escola de Nancy, plano no qual não há distinção entre sociedades modernas e primitivas. Neste ponto, o argumento de Tarde interessa de sobremaneira, pois ao traduzir o problema por via de uma indiferença – ou equivalência - relativa entre modernos e primitivos, o termo problemático é, obviamente, o de sociedade.

            Diríamos então, agora e com uma largueza ainda maior, que uma sociedade é um grupo de pessoas (gens) que apresentam entre si grande quantidade de semelhanças produzidas, ou por imitação ou por contra-imitação. Isto porque os homens se contra-imitam bastante e sobretudo quando não tem a modéstia de simplesmente imitar e tampouco a força para inventar; no ato da contra-imitação, isto é, tanto ao fazendo e dizendo precisamente o que fazemos ou o que dizemos acerca deles, ambos seguem se assimilando cada vez mais. Após a conformação dos usos correlatos a velórios, casamentos, cerimônias, visitas, polidez, não há nada de mais imitativo que lutar contra o seu próprio pendor de seguir essa corrente e com efeito, subi-la. Na idade média mesmo, a missa negra nasce de uma contra-imitação da missa católica. – Em sua obra sobre a Expressão das emoções, Darwin estabelece, com razão, um grande espaço à necessidade de contra-exprimir.”(Tarde, 2001:49)

            Tarde oferece, assim, a imagem que correlaciona a imitação à ondulação dos corpos brutos oferecendo assim uma noção pela qual a sociedade como corpo de imitações age por propagação, e não por reprodução como determina, por exemplo, a concepção de comunidade moral presente na sociologia de Durkheim. A imitação é uma geração à distância (Tarde, 2001:94) da mesma forma que a matéria que medeia é condutora da relação posta cuja distância é tão variável quanto variam as propriedade do sinal emitido e dos meios pelos quais o sinal se propaga. Neste sentido a lógica que opera é a mesma lógica da difusão cujos rastros tento perseguir, tão importante para que o fetiche seja condutor de um tempo propriamente arqueológico no qual possa carregar as marcas do tempo de sua origem permitindo datar a distância que o tempo e seus modos impõe.
            O caso é que difusão, seguindo as orientações de Tarde, é uma outra coisa – o que culmina em dizer que são outras coisas que produzem difusão; é uma outra noção de objeto portador de diferenças. Assim, um dado objeto não é índice de uma diferença que traduz uma proximidade maior ou menor com a origem, mas signos da extensão de uma ressonância que segue eficaz – como no que escreve sobre os manuscritos da República de Cícero em que é ressaltado o processo químico-histórico que conduz o documento até o presente momento (1890, no caso) que participa plenamente do desejo de imitar a grandeza do mesmo Cícero. É a permanência, ou mesmo a insistência (Deleuze, 1999) de Cícero num manuscrito que está em questão, transformando o fetiche paulatinamente em outra coisa e, com isso, localizando o primitivo em outras paisagens.

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