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quarta-feira, 20 de agosto de 2014

O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.

Diana - janela do Musée du Louvre; fotografia de Refrator de Curvelo
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FRAZER, James George. The golden bough: the magic art (2/13 vol.). Macmillan. 1990 [1913].
VIRGÍLIO.  Eneida. (trad/ Odorico Mendes). Ateliê/Unicamp. Campinas.2005.



Feliz ou infelizmente, Frazer não dispõe de nenhum cadáver a partir do qual ele possa conduzir qualquer elogio a Claude Bernard. No entanto, dispõe de documentos a partir dos quais recupera os poucos fatos que tramam uma cadeia de relações de espaço tempo com uma meia-dúzia de histórias que viraram escombros. Assim, a adoração à deusa Diana em Nemi fora instituída por Orestes quem, depois de matar Thoas, Rei da Queroneso Táurico (Crimea) traz consigo para a Itália sua irmã e a imagem da Diana Táurica escondida num feixe de gravetos. Uma vez morto seus ossos foram transportados de Aricia para Roma vindo a serem enterrados no templo de Saturno. A lenda táurica sugere que o estrangeiro que chegasse pelo mar seria sacrificado no altar da deusa, o que na Itália assumiu uma outra forma.

Crescia no santuário de Nemi uma determinada árvore cujo galho algum poderia ser quebrado. Apenas um escravo em fuga tinha a permissão de, caso tivesse forças, tomar um dos seus ramos. Se bem-sucedido o escravo adquiria o direito de lutar uma justa com o sacerdote do lugar e, vindo a mata-lo, reinaria em seu lugar portando então o título de Rei do Bosque (Rex Nemorensis). De acordo com a opinião dos antigos o galho fatídico era o Ramo de Ouro o qual, reza a profecia da Sibila[1], Enéas arrancara antes de seguir em sua jornada rumo ao mundo dos mortos. A fuga do escravo representava, assim é dito, a fuga de Orestes, sendo o combate com os sacerdotes a reminiscência dos sacrifícios humanos outrora oferecidos para Diana Táurica. Observa-se tal regra, a de sucessão pela espada, nos tempos imperiais; dentre outras de suas atrocidades Calígula manda um rufião vigoroso assassinar o sacerdote por considerar que estivesse no ofício por tempo demais; e um viajante grego que visitava a Itália na era Antonina observa que naquela época o preço pela vitória em uma justa seguia sendo o sacerdócio.”(Frazer, 1990:11 – tradução minha)

Antes de mais nada, o segredo está na figura de Diana Táurica cuja imagem fora contrabandeada até Nime. Ela, protetora de homens e mulheres em gestação, garante de partos com boa chegada. As estátuas de bronze que passaram a adornar seu santuário carregam uma tocha na mão direita cujo fogo se encontra presente igualmente em uma lâmpada de fogo perpétuo no mesmo santuário com vistas na proteção do Imperador Claudius, fogo mantido e guardado pelas vestais. Os detalhes a respeito da matéria que mantinha o fogo estão arroladas em registro arqueológico que passam a ter maior relevância quando a discussão se encarrega de apresentar uma coincidência histórica quanto ao calendário das festividades em homenagem à Diana. Ainda que não conheça os detalhes sobre a conversão dos calendários, em especial do Justiniano ao gregoriano e como é que transitam as datas neste deslizamento, a festa em homenagem à Diana se dava no dia 13 de agosto. É em 15 de agosto que a Assunção da Virgem Maria é comemorada – a diferença de dois dias se repete em outro caso, em 23 de abril na festa de São Jorge que outrora fora o festival romano da Parília, no dia 21. Frazer deixa claro que celebrar a Assunção da Virgem visa proteger vinhedos e outras frutas (maçãs) que ele não especifica – fora de contexto. Este é o período em que muitas frutas estão amadurecendo, sendo portanto um período de colheita, domínio igualmente protegido por Artemísia. Entendendo que Artemísia é a antecedente grega da Diana italiana, é possível estender as relações que perpassam as duas figuras nas extremidades da cronologia. Se Artemísia é um similar de Maria no que diz respeito ao culto de proteção aos vinhedos e sua colheita, nada impede que a cadeia de analogias inclua Diana. A analogia é, obviamente, do culto, dos ritos e da relação com os ritmos cósmicos registrados em calendário. Não chegamos perto do limiar da interpretação dos símbolos em que a imagem é sinal de algo. Tudo o que temos é o local e a data do crime marcados pela ruína cerimonial em que a similaridade cumpre o papel de crime serial.

A história a ser contada envolve mais duas deidades menores sendo uma delas, Egéria, ninfa das águas claras, outrora amante ou esposa do rei Numa. Em Roma é possível encontrar, em Porta Capena, uma outra caverna igualmente sob domínio de Egéria, igualmente disposta aos ofícios das vestais. A outra deidade, igualmente retratada nos versos de Ovídio, é Virbius, que igualmente igualmente e nos mesmos versos, ao nome de Hipólito, o casto e justo tendo aprendido com o centauro Quirão as artes venéreas. Foi também parceiro de caça de Artemísia e levado à morte por deus do mar que apavorou seus cavalos quando viajava pelo golfo Sarônico. Diana, aqui, é quem traz seu amado de volta à vida enfurecendo Júpiter que convoca Hades para levar o mortal para o seu lugar de direito. Disfarçado, é levado a Nemi e fica sob os cuidados de Egéria. Assim, trata-se de uma associação ao redor de Diana cuja natureza é o caminho que a investigação deve seguir[1] e que Frazer não demora nada em afirmar qual seria, qual seu caráter a-histórico. Há uma classe de mitos que explica a origem dos rituais religiosos que não tem outra fundação que não seja a semelhança real ou imaginária que possa ser traçada entre a presente instituição e algum ritual que lhe seja estrangeiro (Frazer, 1990:21)? Diana de Nime é um padrão a partir do qual se impõe uma comparação que é antes de mais nada, artificial dado que o original de fato é da ordem da razão funcional. Não é Diana a origem, mas a partir dela é possível abstrair o fator original a partir do qual a história é repetição; a cópia cuja mimesis a faz se confundir com o original. Aliás, sem a noção de função é difícil imaginar esta concepção de mimesis em que o original não é uma forma, mas sim sua pulsão de informar, o que a cibernética vem a sugerir como sendo a dinâmica da informação [http://docurvelano.blogspot.com.br/search?q=Simondon].


[1] A natureza desta associação permite que retomamos passagens como as abordadas por Brent Nongbri (2013), como a beatificação de São Josafá cujos apontamentos filológicos sugerem ser, na verdade, ou também, Sidarta. Sobre Hipólito lemos em The Golden bough: “”But the truth is” says Servius, “that  he is a deity associated with Diana, as Attis is associated with the Mother of the Gods, and Erichthonius with Minerva, and Adonis with Venus”. What the nature of that association was we shall enquire presently. Here it is worth observing that his long and chequered career this mythical personage has displayed a remarkable tenacity of life. For we can hardly doubt that the Saint Hyppolytus of the Roman calendar, who was dragged by horses nto death on the thirteenth of August, Diana’s own day, is no other than the Greek hero of the same name, who after dying over as e heathen sinner has been happily resuscitated as a Christian saint.” (1990:21).


[1]Anquísea e diva estirpe,/Descer a Dite é fácil; dia e noite/Seus cancelos o Tártaro franqueia: / Tonar atrás e à luz, eis todo o ponto,/ Eis todo o afã. Do reto Jove amados,/ Ou por virtude ardente ao céu subidos,/ Poucos, filhos dos deuses, o alcançaram:/ Medeia um bosque, e sinuoso em torno/Enfuscado o Cocito a espreguiçar-se./ Mas vezes duas se tranar a Estige/E a lôgrega morada ver cobiças/ Se tanto folgas do ímprobo trabalho,/ Ouve e à risca o executa. Árvore opaca, / Dicada à inferna Juno, oculta um ramo/ N’haste e nas folhas áureo: em vale umbroso/O encobre e fecha a denegrida selva. Sem que destronque o aurícomo rebento, / No Orco ninguém se interna: é dom que exige/E insistiu Prosérpina formosa./ Uma fora, brota o novo, e do luzente/ Metal frondesce a vara. Em alto a mira,/ Indaga, e achando-o respeitoso o apanhes; /Que, a te ser destinado, ele espontâneo/Logo te cederá; senão com força/ Nem duro ferro poderás sacá-lo. Porém, desta consulta enquanto pendes,/ Ai!, mal sabes que as naus te incesta agora/De amigo exânime o feral cadáver:/ No sepulcro o aposenta; em negras reses/ Enceta a expiação. É como aos vivos/ O ínvio reino sombrio e Estígias brenhas/ Hás de avistar.”  Calou-se, e os lábios cerra/ De olhos fixos, tristonho, eventos cegos/ A cogitar, a gruta Enéias larga: trilhando a pegada, o fido Acates/Volve iguais pensamentos. Sobre o sócio/Que, ao dizer da Sibila, enterrar devem(...”.)(trad. Odorico Mendes). Resta notar que Eneias é um escravo fugitivo em potencial que se tornou soberano de seu povo e que a sua entrada no reino dos mortos demanda o depósito de um morto igualmente. Há aqui um tipo de espelhamento entre ritual e narrativa que não se pode ignorar, especificamente porque é a matriz do texto de Frazer como acontecimento ele mesmo.

O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.



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É inútil, contudo, reagir a Frazer repetindo a milonga da ignorância, dizer que ele não sabe do que é que está falando quando reduz à mera superstição a quase totalidade daquilo que ele chama de teoria da magia – isso Wittgenstein o fez com rendimento superior ao que eu poderia fazer. E no meu caso, fazê-lo implicaria em repetir Frazer naquilo que ele tem de menos admirável e redutor, o que é seguramente a forma mais fácil de transformá-lo na figura ilegível para a qual Marilyn Strathern chama a atenção, quando os modernos se convertem nos selvagens de todos aqueles que finalmente os teriam superado. O que me parece mais exato é recuperar uma dimensão específica que não redime a antropologia vitoriana de nenhum de seus pecados, mas que talvez possa sugerir um percurso que os façam um tanto quanto menos selvagens, menos ainda que os selvagens dotados do barbarismo da superstição. Se me for permitido reduzir O ramo de ouro a uma só intenção eu gostaria de dizer que se trata de um enorme esforço, quase que desproporcional, em contar uma história. Só uma. E que, para tal, será preciso confundi-la com a história da humanidade, sua história original. Eis um motivo adequado para fazer viver o ato da magia que faz indistintos o original e a cópia senão por uma investigação severa de evidências circunstanciais. O ramo de ouro, o mais longo tratado pericial de ciência criminal da antropologia moderna. E como todo exercício do gênero, é necessário desconfiar daquilo que diz seu informante, mesmo que ele seja Ovídio, Virgílio ou Pausânias. É nesta hora que percebemos que o informante, ainda que não necessariamente para o caso presente, é sempre um suspeito. Um suspeito em potencial. E aqui encontramos uma entrada forte para o problema do ato ritual com relação aos mitos narrados; sobre o valor do ato mágico contraposto à teoria da magia; e, no meu caso, porque a metodologia se mistura, na confusão entre figura e fundo, com a história que se conta.  O que se diz deve ser lido à luz daquilo que se faz – forma peculiar da longa tradição que distingue dizer do fazer.
Aqui, contudo, parece que cometo um equívoco dos mais graves. Porque o objeto em questão são histórias de origem de costumes e ritos, o que está muito bem distribuído por quase toda a extensão da história das religiões comparada, seja fundada no teísmo, na fé ou mesmo na filogênese formal das instituições. Comparar estas historias de origem com um procedimento criminal parece abusivo, ainda que feito a partir dos escritos de Hocart, quem flerta com esta analogia sem pudor algum. Parece dizer que as histórias de origem são por fim, histórias de assassinato. Não sei se poderia chegar neste ponto, ainda que o ato historiográfico moderno por excelência, o mesmo ressaltado por Jules Michelet nas primeiras páginas de sua Histoire de la Révolution Française e reiterado à primeira oportunidade, seja a conversação com mortos mediante os meios disponíveis. A mera morte de outrem não permite deduzir seu assassinato da mesma forma que não é possível simplesmente confundir assassinato com origem, não porque o assassinato não seja um excelente ponto de partida para uma história mas porque a origem não precisa advir do fratricídio. Há histórias que começam com o mais surdo golpe de um fiat, um mero acontecimento. A morte é um deles.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Notas do subsolo: o pensamento selvagem.


               Imagino que o clichet me serve muito bem, o mesmo que reforça uma certa identidade entre as pesquisas em antropologia com o tipo de pensamento e população residentes em espaços selvagens. Jogados em meio ao verde opressor de uma paisagem úmida e quente de uma floresta tropical, ou com as narinas soterradas de poeira jogadas pela última ventania da savana africana, antropólogos devem saber que a razão não é o bastante. Devem saber que há mais do que sonha a vã-filosofia, e que ainda que não se saiba, há vida selvagem, há povos selvagens, há a selva. No caso, e permito-me abusar da má imagem, a selva serve como pictograma do risco e do informe, assim como da plena potência que torna presentes toda sorte de impotência do pesquisador que não sabe caçar, que não sabe o que fazer e o que não fazer numa roça, e que sequer sabe aonde pode fazer seus despejos fisiológicos sem correr riscos mais severos, dentro ou fora da natureza selvagem. Este momento em que a nudez e a mudez não é indígena, mas da impotência da ação premeditada pode ser traduzida, ainda que em má tradução, para a perda de referenciais e, de outra forma, o excesso de sinais que a situação selvagem oferece.
            Quando nos afastamos do clichet, mas não muito, é possível perceber que o selvagem tem outras extensões, e que estas extensões pertencem à selva que não é, necessariamente, silvícola. É importante ressaltar que, todo este tempo, a natureza do selvagem será relativa a um momento, a saber, o momento em que se está perdido. Peter Gow, antropólogo britânico que fez campo entre os Piro (população do Peru amazônico) escreveu um artigo para uma coletânea sobre antropologia e paisagem. Escreveu o quanto pode ser inútil estar bem preparado para transitar floresta adentro. O quanto um sistema cartográfico que alia notas de um ponto de vista aero-espacial, que é o mapa, com um sistema de orientação de pontos de referência completamente dependentes de coordenadas disponíveis num sistema visual de tipo landscape se transforma em peso morto quando se chega a uma floresta amazônica cuja densidade verde não lhe deixa enxergar sequer 10 metros adiante e, pior, a confusão de tons, sombra e movimento não permite que se faça a distinção de figura e fundo violando dimensões imprescindíveis para a orientação planejada. Mapa, bússola, sistema de coordenadas, os piro com poucas roupas e o antropólogo nu.
            Mas o selvagem não é o selvagem. Isto é importante. De acordo com uma certa sensibilidade com relação à qual procuro me aproximar lentamente – confesso que estou um tanto quanto perdido -, o selvagem não é alguém. A segunda cena tira a selva da cena selvagem. Estarei mais próximo daquilo que preciso dizer sem atropelar a sensibilidade de mais ninguém, fazendo com que alguém além de mim se sinta perdido enquanto lê o que escrevo; ouve o que falo. Para o leitor menos afeito às aventuras selvagens da atividade etnográfica, o segundo exemplo nos leva imediatamente à Paris e ao parisiense. Em seu ensaio Die Groß Städte und das Leben des Geistes, Simmel faz uma reflexão afinada com a perda das relações de referência que permitiriam a orientação espacial exatamente pela relação fina entre ter e estar perdido, o que culmina num excesso de sinais como consequência. A cena hipotética, e que imagino ser uma articulação sociológica de algo próximo de seu “eu-lírico” é a aparição de alguém que nunca esteve em Paris se vendo diante do espetáculo de luz, som, cor e movimento da Avenue Champs Elysées, por exemplo. Não estou seguro se a cena é necessariamente esta, mas como minha memória me trai e não ressinto, prossigo.
            O caso é que o ambiente produz efeitos. No caso, o de desorientação. Ainda hoje a diferença é flagrante. Alguém nascido e criado numa vila como qualquer uma ao redor de St. Brieuc que tem como orientação espacial algo simples como “linha do horizonte” e mesmo “poucos corpos similares ao seu em movimento ao redor” se vê num impasse que é algo muito similar ao impasse do número assombroso de pessoas atropeladas por carros no anos 1920-30 simplesmente porque não tinham como calcular – calcular é força de expressão – a velocidade daquilo que se movia em sua direção. Paris não oferece muitos pontos de fuga que não sejam boulevards e, quando oferece, se está num ponto muito alto, ou muito baixo o que é forte indício que está perdido há algum tempo. Simmel, obviamente, vai além. O que ele enfatiza é que o mundo parisiense, cheio de lojas, vitrines, panneaus , música, gente, movimento, oferece uma variedade de sinais tamanha que o efeito ambiental obrigatório é a perda de orientação, o que faz ser obrigatório para aquele que lá (aqui) vive o desenvolvimento da conduta blasé, isto é, que consegue se pôr indiferente à maior parte dos sinais e conseguir se ater ao mínimo relevante para a circulação. Aquele que acaba de chegar à Champs Elysées está, via de regra, perdido. Não encontra as referências fundamentais que lhe fazem intuir ser quem é e, em troca recebe um excesso de sinais que só lhe farão, em um primeiro momento, um paranóico potencial ou mesmo, iniciante.
            Como não traçar uma analogia entre o que descreve Peter Gow e Georg Simmel? Digo, assim reduzidos ao que interessa às notas que redijo, a relação parece clara porque o selvagem parece irromper neste duplo movimento entre a perda de referenciais seguros e um excesso que se impõe imediatamente. Obviamente que não quero dizer que isto é universalmente o que deve ser entendido como selvagem, mas como aquilo que nestas notas quero definir como sentimento diante do selvagem que, de outra forma pode ser definido por uma palavra somente: vertigem. O selvagem aqui será o que causa vertigem. E só.
            Seguramente que com relação ao selvagem que causa vertigem, coisa que nas linhas de Casa Grande & Senzala significa bem outra coisa, há uma outra dimensão importante que serve tanto como antecedente do problema como uma analogia importante que vão se encontrar, a dimensão e a analogia, no mesmo lugar. Quero dizer que a vertigem aqui precisa ter alguma relação como o transporte – que no  francês transport significa um modo de transe extático sobre o qual há muito o que considerar. O que por ora posso fazer é meramente exercitar o pouco que sei e imagino para que uma coisa e outra venham a ter algo mais do que um sentido improvisado. O que busco, e tenho pretensões propriamente historiográficas, é articular o improviso com a harmonia – nem tanto à moda de um trompetista como Boris Vian, mas mais atento aos vôos agudos soltos pelo sistema solar de Charles Fourier.
            Porque eu posso dizer que de St. Andrews, Escócia até a Amazônia peruana, Peter Gow fora transportado. O mesmo vale para a cena de Simmel na qual o sujeito que sofre dos efeitos de Paris fora quase que teletransportado, dado o começo abrupto da cena em que o sujeito não chega até Paris, mas está lá desde então. Mas o transporte em matéria experimental é exatamente uma das variações com relação à vertigem. E aqui eu precisaria começar a escrever tudo de novo.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Notas do subterrâneo: o libelo de Romain Chapelain e o cidadão safo que não é de Lesbos


CHAPELAIN, Romain. (1848). Manuel du républicain – resumés des constitutions françaises depouis 1791. Paris. Impremierie de Mme. De Lacombe, 12, rue d’Enghien.
            O ano é de 1848. Um longo período marcara distância entre o Comitê pela Instrução Pública e suas primeiras determinações, a publicação de libelos institucionais e livros que deveriam ser lidos para a instrução do espírito público e, por via disso, instrumentalizar sua própria gestação. Sua própria gestão. De todos os manuels  que li até então, o de Chapelain é o que mais se aproxima daquilo que Jean Michelet definira como publicação com a finalidade de instruir o cidadão com relação à constituição e a realidade política de seu país de forma que deixasse de ser refém de seus governantes. Cabe avaliar se o Manuel em questão não foi produzido sob os auspícios do mesmo círculo do qual Michelet veio a fazer parte, o que é matéria de estudo. O caso é que o documento em questão cumpre a função variada de ser um informativo com relação às instituições políticas francesas, compondo um panorama histórico a partir da revolução de 1789 e que, por editar os movimentos constitucionais do país, e por ser econômico em seu tamanho, se faz um livro altamente portátil e passivo de ser lido em voz alta para os analfabetos sem prejuízo nem para o leitor e tampouco para seu ouvinte. Resta saber quais são as informações, qual é o mode d’emploi da cidadania republicana descrita e desejada por este documento. É assim que faço sua leitura. 
 O livro tem uma epígrafe.
Il est une mesure en toutes choses, il est enfim des limites aûres au-delà et en deçà desquelles le bien ne peut s’établir
Tradução de Chapelain para 
est modus in rebus, sunt certi denique fines, Quos ultra citraque nequit consistere rectum, de Horácio (Sátiricos?). 

Esta é a epígrafe do livro. Dificil saber o peso de uma marca tão pequena como essa, registrada na página seguinte ao forntsipício pomposo, dotado de folhas de louro como insígnia, ainda mais tendo a relação entre uma e outra, a frase em francês e em latim, composta sem nenhuma relação que não seja a contiguidade. Afora alguém minimamente letrado, a frase de Horácio em latim teria sua autoridade roubada pelo leitor que não soubesse fazer a relação, que não soubesse o papel de uma epígrafe. Contudo, para aquele que fosse iniciado nas artes mínimas do cidadão (ser alfabetizado segundo princípios que ainda investigo) a frase em francês traduz a idéia de que o Manuel contém os limites dentro dos quais o Bem pode ser estabelecido.
           
            “Un gouvernement vient d’être renversé; la République a été proclamee. Dans cet état de choses, il nous a semblé quíl pouvait être utile de présenter au public, sinon le tableau complet, du moins le resumé succint et clair des différents essais de constitutions qu’on a faits en France depuis eviron soixante ans. On verra, par le nombre même de ces essais, combien il est difficile de parfaire un constitution viable et durable, et combien, par consequente, il est essentiel de prendre au sériuex la nouvelle constitution que nous avons à faire.”(1848:01)

            Eis a primeira coisa que o leitor deve compreender. Que as constituições não são redigidas por acaso ou por mero capricho ao mesmo tempo em que sua substituição por uma nova deve evocar a necessidade de compreender a história do processo constitucional. Este é, segundo o presente Manuel, o terreno em que o bem pode encontrar refúgio. Em seguinda, Chapelain diz que a França é uma pais de excessos, aonde há sonhos e sentimentos em excesso e que há temas nos quais se reflete de menos, em que há pouco cálculo, e as considerações sobre o espírito público que atingem a forma de uma constituição não devem ser produzidas por via simplesmente da imaginação. Vê-se a forma política do cartesianismo como a forma vulgar e privilegiada de being clever (segundo a forma deliciosa sugerida por Geoffrey Sutton). O cidadão deve ter método porque o espírito republicano é, antes de mais nada, um espírito de precisão e comedido, sóbrio e sábio, e que se perde tanto quando quer fazer coisas demais quanto quando nada quer fazer.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Assim, assim; fazer, fazer.

Feito uma sanfona, feito para respirar, é também uma caixa de ressonância. Se a alma se movimenta, se é o caso de gritar, o movimento que a caixa movimenta pode, seguindo o apelo adequado, provocar os demais e mover os pulmões alheios. E daí, os movimentos seguem a torto e a direito, ressoando o mesmo movimento que, como seria possível deduzir, desemboca em movimentos outros. Há quem chame isso de fazer-fazer o que é uma redundância clara, útil e preciosa. Fazer alguém fazer desdobrando-se em outras coisas – e eu aqui, sonado, procurando alternativas entre discutir o ridículo e o trágico; não sei se aristofano ou se esquilo. Poderia fazer os dois, já diria o mendigo de Bashevis Singer, sem cometer contradição alguma.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Flutuação, inércia e atrito zero: em quê concorda o dissenso







Sempre leio que a população indígena brasileira está morrendo, informação esta que é agravada com uma taxa de mortalidade infantil acrescida de mais de 500%. Já li que são as reservas que empobrecem e expulsam índios que já não são tanto. Li também que somos nós que os impedimos que o sejam. Índios. Trata-se do desenrolar da história do capital, trata-se do atravanco da mesma por parte da tradição caduca e romântica. Para estes, que nunca fuçaram os assuntos indígenas, salvo quando o tema é economia nacional, recomendo o silêncio. Mestres em dizer que há índios que já não são índios, parecem muito seguros em formular proposições baseados em nada, ou pior, em muito pouca coisa. Índio que veste roupa e come enlatado já não é índio. Daí, a pergunta: diante de qual tribunal essa fórmula pode ser defendida? Quem foi chamado para depôr? E, num só golpe, quase todos os indígenas mexicanos, bolivianos, peruanos, argentinos e, surpresa, brasileiros, por razões diferentes, deixam de existir. Numa só canetada, permitindo que quem quer que tenha assinado a carta de extinção passeie só, liberal e auto-definido em sua autonomia de consciência. E isto tem nome. Chama-se Reynaldo Azevedo – ou José de Alencar, cuja profundidade da ressonância poderia ir mais além. De outro lado, a figura do índio nu e entregue aos meios naturais demanda esforços nada desprezíveis para serem encontrados fora desta definição, que só preza por ela mesma. A morte das crianças está indissociavelmente conectada à destruição de reservas, sem que possamos definir que esta conexão não é exatamente adequada. A história indígena no país – daqueles que, de quando do genocídio, extermínio e exclusão foram índios por bem; e que para fins administrativos se transformam, à base da canetada, em coisa diversa como “campesino”, “favelado”, ect. – parece não ter lugar que seja seu. Nem o passado escravocrata criou um legado tão perverso quanto este, a de que o lugar institucional, e por isso histórico, de um enorme coletivo de pessoas, é o de ser o que já não é, não foi e não será jamais. Nem em nome de sua defesa. Índio fora da floresta é excluído, injustiçado, etc.. E este é o blog do Sakamoto – ou José de Alencar, cuja profundidade da ressonância poderia ir mais além. Invariavelmente, a noção de existência autônoma, e a elaboração de que índio é o que for, mesmo que não, não tem sequer valor cognitivo para o debate público. Sequer os mortos são tratados assim. Pergunte aos argentinos. Até porque, índio morto - ainda que assassinado - é antes índio do que morto ou assassinado.












Há quem diga que a foto que ilustra este desagravo é sem graça, ocidentalizada, e pouco representativa da diferença para a qual tento apontar. Já eu diria que uma reação como essa, comum e repetida, não é nada além de uma versão de C.Q.D.. Há quem diga que a diferença só importa quando ela é intolerável, ou quase isso. Pois bem. Intolerável parece ser a idéia de que alguém possa estar tão perto e, ainda assim, tão longe quanto uma kaingang estudando vestindo um suéter, tão parecida com uma colega de sala que tive na graduação e, ainda assim, não. Não o suficiente. E um abismo de alguns centímetros se abre que, ainda que à primeira vista indique uma diferença de grau, após a zona do infinitesimal, sugere ser uma diferença de natureza.












Uma kaingang, de suéter, soa à traição.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Germano Gemelo

No me quiero en un tiempo híbrido
dado que no sé lo que hacer con él.
Porque resido como algo así
ni tanto, ni tan poco.
Tampoco soy célula firme
aunque definida
híbrida.

Fuera yo hecho para un tiempo ambiguo
Que no sabe seguro lo que eres o lo que quieres
y se lo sabe, lo dice al decir
“por lo menos
Dos”, que a todo íntegro divide.

Así puedo decir para donde voy sin necesidad de decirte para donde was!

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

O Critério da Maioria

Há séculos que isto é um problema, em especial quando o conceito de massa saiu das cozinhas para atingir considerações sobre a vida política. Massa, a.k.a. pretume de gente, indistinção da vontade, ação anônima, etc. Há quem tenha entendido que a irresponsabilidade da ação civil, em sua coloração política tenha seu problema aí. Há quem chame de anomia cada ação em que esta força indistinta fala "não", ou pior, “sim”, por aclamação. A questão é sempre: quem?


O problema é revestido por um outro verniz, muito diferente de qualquer indisposição com a ação civil que, por si só não assume esta forma. A ação civil numa sociedade em que é possível a irrupção das massas não tem correlação necessária entre si, digo, entre ação e ação de massa. A massa opera quando se manifesta a ordem catastrófica do critério da maioria, quando a mera contagem de cabeças define, ou faz aceitar as mais estapafúrdias resoluções – ou recusá-las. A maioria quer, portanto é assim que será feito. E é difícil recusar esta marca sem que se pense em tirania – e mais difícil ainda entender que a manifestação da maioria pela maioria é, à sua forma, tirania por si só. E a maioria se manifesta de diferentes formas, a maior parte – olha a maioria - delas confundindo o que tem o apelido de “a voz do povo” com cacofonia histérica de bandeirola. Sem haver quem diz, não há o que ser dito, na era do relativismo irresponsável.



Peguemos um caso de, digamos, benfeitoria majoritária. Um projeto de investimento que define diretrizes de consumo energético numa lógica de consumo irresponsável. Irresponsável porque investimentos são contabilizados como gastos – mas que não se conte o investimento do projeto como gasto; este sim, é investimento; na era das massas, o investimento que é investimento é chamado de “investimento estratégico” -, futuro é pensado como crescimento (olha a massa!) e população é entendida na lógica da maioria – razão idem. Daí aparece a noção de um investimento em prol da maioria, que para tal exige o sacrifício de uma minoria. E aqui eu peço, por favor, que não entendam minoria segundo o jargão universitário. Estou falando de partes maiores e menores de uma contagem de cabeças numa paisagem povoada por pessoas. Próximo passo: exige-se o sacrifício, cujo número é de 40 mil pessoas, em nome do bem das demais contadas em milhões. Daqui, entende-se um sistema sacrificial delicado, cuja lógica é a de trocar corpos por pepinos e, daí, oferecer à maioria sua própria substância: a maioria. Que, diga-se de passagem, não é ninguém. Explico-me.



Há na obra de Claude Lévi-Strauss (o da antropologia, e não o da calça) um esquema semiológico de redução do ente sacrificado disposto em ordem cósmica em que o mesmo apareça como substituto. Isso mesmo. Como substituto prototípico e só. Assim, pode-se colocar um pepino no lugar do destinado a morrer num ritual, desde que se ressalte a economia semiológica que defina a relação metafórica e faça a conexão precisa que demonstre em lugar de quem que o pepino está sendo sacrificado. Sei que parece absurdo, mas é pedagógico, tanto em O Pensamento Selvagem quanto, espero, aqui. O que entra em questão quando a ordem da maioria é posta é que é preciso desenhar com clareza a situação que relaciona a minoria a ser sacrificada, feito um pepino, em nome dos demais que, por causa de sua situação inconteste de maioria, deve permanecer com seu futuro inatingido – entenda-se futuro como crescimento. Da massa.

No caso de sucesso começa-se a entender quem é a maioria, e qual é seu corpo, nunca pronunciado. Ele é um corpo diretivo que tem suas prioridades definidas segundo esta mesma lógica sacrificial que permite que se opere a morte em massa, desde que em nome de algo maior. Maior. E porque deste jeito? Não sei. Mas gosto da história contada por um alemão chamado Simmel, de que o sacrifício é um adiamento da satisfação do desejo com vistas na consumação futura. Este mesmo alemão convertido em protestante narra uma historiazinha em que há etapas de concretização do sacrifício como formação da atividade simbólica que constitui sentido, digo, atividade simbólica. E aos poucos, a massa começa a aparecer de forma irreversível. Assim, se eu cometer penitência, a mesma passa a ter valor; mas no caso em que há pessoas demais e que eu existo somente como mais um, o sacrifício é essencialmente subjetivo, pessoal e intransferível, aniquilando o efeito do exemplo de comportamento para a ordem coletiva. Então, o que é objetivo, isto é, disposto à ordem comum é coisa que ultrapassa a ação pessoal e se transfere para sacrifícios envolventes, que conduzem aos adiamentos perigosos grupos de pessoas cada vez maiores. Se quatro pessoas afetam mil, 40 mil afetam milhões. Foi assim que este alemão cristão-novo aplaudiu o começo da Primeira Guerra. A sociedade de massas requer sacrifício de massas para gerar distinções históricas que permitam a narrrativa de um antes e de um depois sacrificial, como seria o caso judeu, ou mesmo da juventude alemã. Mas na lógica da maioria, quem é sacrificado é o pepino – isto é, outros milhares em nome dos existentes milhões. E daí percebemos que a maioria é sempre o futuro em nome do qual estamos para morrer, pois a maioria não tem corpo. Ela somente espera a morte do pepino.

Tá bom, eu sei. Nada disso faz sentido. É uma história absurda. Mas é nela é que se enquadra a lógica da ereção da usina de Belo Monte, essa coisa absurda desenhada para as bandas do Rio Xingu. Índio é pepino.