Mostrando postagens com marcador Percepção e Imediaticidade. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Percepção e Imediaticidade. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.

--> -->
WIENER, Norbert. Deus, Golem & Cia. Cultrix. São Paulo. 1971 

 10-
Ora, se a conversão do funcionalismo em cibernética merecer maior atenção, o que se passa é que existe uma distinção importante entre figura e fundo que é, para todos os efeitos, fundamental. Porque é ela que destaca os momentos de relação em que a singularidade da imagem, quando afirmada, não implica na abdicação de sua possibilidade de permuta e circulação a depender do meio de transporte, isto é, o fundo que lhe serve de esteio, a convergência que culmina em ontogênese; a narrativa que coincide na filogênese. Quando percebemos que há uma possibilidade de permuta imagética que faz com que a narrativa da história das religiões mova entre as figuras de Artemísia, Diana e da Virgem Maria – esta é a hipótese de Frazer -, isto implica não somente em um sistema subjacente que conduz as transformações mas em uma variação da figura como variação da imagem como ela mesma e como padrão – que Norbert Wiener (1971:38-39) define como pictórica e operante, respectivamente. Os termos que ele utiliza não são tão importantes quanto o exemplo e as consequências do mesmo para fins da elaboração de um modelo.
Wiener discute no livro em questão a relação entre criação e criatividade, e de qual forma um objeto criado como máquina pode ele mesmo apresentar sinais de criatividade. É importante não esquecer que a discussão toda, produzida nas décadas compreendidas entre 1940-1970, está inundada de referencias à teoria da informação, aos investimentos da IBM em computadores capazes de jogar xadrez e aprender com os jogos passados produzindo pela primeira vez sistemas estocásticos artificiais – isto é, memória cujo registro de dados altera o sistema com relação à forma pela qual os dados futuros serão registrados; aprendizagem.
Qual imagem mítica mais poderosa para a discussão a respeito dos encantos da criação mecânica se não a de Pigmaleão e Galatéia? O artesão que concretiza a beleza ideal tem em suas mãos, após intervenção divina, a mesma imagem respondendo aos desígnios da vida. De figura à movimento, Galatéia é operante quando viva. A história de Pigmaleão é um dos pináculos poéticos do automatismo, e na versão de Wiener serve para encenar uma relação delicada entre criador e criatura que culmina em uma outra questão, o da relação entre o original e a cópia.

Uma forma reprodutora pode construir a imagem de um modelo de um cabo de arma e este é suscetível de ser utilizado uma arma. Mas isso se deve ao fato de que a finalidade de um cabo de arma é relativamente simples. De outra parte, um circuito elétrico pode desempenhar uma função relativamente complexa e sua imagem, obtida à custa de impressoras aplicadas a tintas metálicas, é capaz de agir como o próprio circuito que representa. Os circuitos impressos são muito comumente empregados na moderna engenharia elétrica.”(Wiener, 1971:38-39)

Uma imagem que, por via da devida mediação, se transforma em uma outra imagem e que, por isso, opera. A relação entre as imagens não é, todavia, figurativa mas de modulação segundo certos padrões que podem muito bem ser abstratos e que tem como componente central sua convertibilidade, isto é, uma imagem conduz a produção da imagem seguinte sem necessariamente comprimir a analogia em elementos visíveis ainda que seu propósito seja produzir visibilidade ou, em caso de outras dimensões estéticas, formas perceptíveis. Assim:

É possível, pois, obter imagens pictóricas e imagens operantes. Estas desempenham as funções do original e podem ou não assemelhar-se do ponto de vista pictórico, ao original. Semelhantes ou não aos originais, podem substitui-los em suas funções e isso é, de fato, uma similaridade de caráter mais acentuado. É segundo a perspectiva de semelhança operante que estudaremos a possível reprodução das máquinas.” (Wiener, op.cit.)

É assim que Diana vista do ponto de vista dela mesma, é uma estátua contrabandeada desde a Crimea até Nime mas que se converte num meio de relação entre Artemísia e Virgem Maria quando posta na escala da religião natural de forma que metaforicamente, tanto Artemísia quando a Virgem Maria sejam Diana sem que seja possível confundi-las quanto a sua figura.  

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.

-->
FRAZER, James George. The golden bough: the magic art (2/13 vol.). Macmillan. 1990 [1913].
HOCART, Anthony Maurice. Kings and councillors: an essay in the comparative anatomy of human society. University of Chicago Press. Chicago.1970.
HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano. Unesp. São Paulo. (1999[1748]).



7-

-->
O que vemos em Frazer é que a arte da magia repousa em dois ramos. Um a respeito da prática da magia e outro, sua teoria. Um e outro são pseudo-formas; pseudo-arte e pseudo-ciência, respectivamente. Afinal, por se tratar de uma investigação evolucionista, o selvagem é pseudo-civilizado isto é, contém o civilizado em germe da mesma forma que o civilizado contém o selvagem como ameaça cuja fronteira está no limite da epiderme. Esta configuração toma forma, como bem se sabe, nas variações modernas do ceticismo em grande parte incarnada por David Hume, quem podemos sugerir ser em grande parte um ancestral direto de James Frazer, inclusive na arte de reconhecer que certas coisas acontecem. Trata-se da décima sessão de An Enquiry concerning Human Undesrtanding, que versa sobre os milagres que, antes de mais nada, são coisas que acontecem. Pas d’événement, pas de miracle parce que d’abord, le miracle est une chose à voir.
Hume põe em questão o argumento da presença real do corpo de Cristo no sacramento Cristão, o mesmo corpo que outrora serviu de analogia para a justificação do Estado na cristandade. O problema inicial, o mesmo que traça uma espécie de fundação do empirismo moderno, diz respeito aos relatos fidedignos relativos aos eventos relatados e a instituição da confiança nos testemunhos. Porque nem sempre se trata de má-fé do religioso ou do homem do povo, mas de uma profunda desarticulação com relação aos critérios de descrição e da constância dedicada à observação metódica que discrimina não somente a longa permanência no sítio que localiza a percepção como destaca os termos que guiam a observação in loco. Afinal, os apóstolos não são, sob nenhum ponto de vista, naturalistas.

Assim, a evidência que temos para a veracidade da religião cristã é menor que a evidência para a veracidade de nossos sentidos, porque já não era maior que esta nem mesmo nos primeiros autores de nossa religião, devendo certamente diminuir ao passar deles para seus discípulos, e ninguém pode depositar nos relatos destes tanta confiança no objeto imediato de seus sentidos. Ora, uma evidência mais frágil jamais pode desfazer uma mais forte, e assim, por mais que a doutrina da presença real estivesse claramente revelada na escritura, dar a ela nosso assentimento seria diretamente contrário às regras do raciocínio correto. Ela contradiz os sentidos, apesar de que nem a escritura, nem a tradição nas quais se supõe que esteja sustentada trazem consigo tanta evidência quanto os sentidos, quando consideradas meramente como evidências exteriores, sem que nossos corações dela tomem conhecimento pela operação imediata do Espírito Santo.” (Hume, 1999:143-144)

Temos então um exemplo do combate à superstição a partir de um ponto de partida muito particular, que é o que toma a religião segundo questões postas pela teoria do conhecimento. Ao contrário do que propõe a história do direito e, em parte, o tema da secularização como história política da religião, aqui a religião não aparece como forma forte que degenera nas formas modernas, mas ao contrário a forma em potencia se atualizando em planos perfécteis – a perfectibilidade é, aqui, imanente. A proliferação de milagres em meio à história profana é um problema a ser resolvido. Cabe a ressalva de que, como todo cético, Hume não considera a experiência um meio infalível para promover a orientação no mundo. Isto não impede, contudo, que ele possa elencar uma hierarquia de formas de acesso ao conhecimento do mundo que é, para todos os efeitos, experimental antes de tudo que é, antes de mais nada, potencialmente falha. Contudo, ele toma partido antes da observação do que da observância das leis, o que altera profundamente o que se pode compreender como estrutura da mediação e, com isso, a forma de se relacionar com um acontecimento.

Nem todos os efeitos seguem-se com igual certeza de suas supostas causas. Verifica-se que alguns acontecimentos estiveram constantemente conjugados em todas as épocas e lugares; outros, porém, mostram-se mais variáveis e frustram algumas vezes nossas expectativas, de tal modo que, em nossos raciocínios relativos a questões de fato, coexistem todos os graus imagináveis de confiança, desde a máxima certeza à mais diminuta evidência moral.” (Hume, 1999:145)

Com evidência moral entenda-se, obviamente, àquilo que a vida religiosa foi reduzida. Com grau de evidência, por sua vez, compreende-se o regime de probabilidade em que se exercita o conflito das evidências de forma a estabelecer proporções da repetição da incidência que relaciona causa e efeito produzindo assim camadas estatísticas que pesam em favor de uma ou outra versão. Estatística é, convém lembrar, uma ciência de Estado assim como uma percepção do estado de relações que permite que o investigador não seja refém da autoridade de um testemunho somente e que possa se aplicar na coletânea de relatos. E é o regime de probabilidades que orienta, assim, a investigação daquilo que acontece vindo estabelecer no regime das causalidades, a forma posta em evidência como a de maior regularidade guardando assim a dimensão preciosa das regularidades ocultadas da experiência, seja por pertencerem a ordens infinitesimalmente grandes, infinitesimalmente pequenas ou radicalmente distintas da experiência adquirida, como no caso do príncipe indiano que submetido ao calor dos trópicos não acredita na possibilidade da água congelada, o que é fundamentalmente racional.
Nisso, o milagre. O acontecimento não somente como exceção da regularidade, o que é meramente o inesperado, mas também como a suspensão das leis da natureza. Afinal, quais são as chances de um milagre acontecer de novo? Quais são as probabilidades? A absoluta exceção do milagre é de tal ordem que se torna impossível instituir a partir dele qualquer autoridade com vistas no relato porque como acontecimento ele não faz nada mais do que irradiar como novidade e obrigar ao relato que destaque que, por fim, ele aconteceu e nada além disso. O efeito fundamental sobre aquele que o testemunha é o efeito das maravilhas, das mirabilia, seja porque aconteceram, o que é uma dimensão sempre suspeita dado que depende do relato, seja porque alguém relata vindo a sofrer suficientes distorções a ponto de fazer com que todos os testemunhos sejam por fim dignos de descrédito mostrando que o fantástico e o maravilhoso é antes de mais nada, um erro de escalonamento quando não o mero exercício de tornar a narrativa algo mais interessante e se promover com isso. Assim, o relato que poderia pretender transmitir algo de verdadeiro cede em graus diversos àquilo que é meramente verossímil, ainda que seja muito pouco provável. Preferindo contar uma boa história no lugar de algo que se mostre regular, normal e repetitivo, a narrativa sobre os milagres oferecem uma sorte de ficção que exagera contornos, excessivamente afetiva e nada preocupada no exame do caso. Todos os olhos na qualidade do testemunho, naquilo que efetivamente há para ver. É muito difícil distinguir, assim, a antiguidade fabulosa de James Frazer dos povos bárbaros particularmente suscetíveis em compartilhar histórias milagrosas. E talvez não seja necessário.
Que os dois primeiros volumes de O ramo de ouro sejam uma teoria da magia e que a mesma responde melhor a certas questões de caráter prático do que teórico, isto é claro. No entanto, o papel que a magia desempenha como um regime de semelhanças associadas merece tanta atenção porque é um complexo de associações entre termos assemelhados que parece nos levar a algum lugar em especial: o sacerdócio de Nemi. Entendendo que se trata da sucessão pelo assassinato cujas regras de sucessão Frazer se propõe a reconstituir, nada melhor que estabelecer o paralelo, para todos os efeitos adequado, da história da religião com o exercício pericial da cena de um crime e chamar o exercício de “método comparativo”.
O caso que, com poder consideravelmente menor, as regras de sucessão do sacerdócio Nemi não encontram paralelo na antiguidade clássica e conseguir explica-las efetivamente demanda uma ginástica fenomenal não somente porque não se correspondem com qualquer outro costume antigo como pertencem ao campo de investigação própria da antropologia social moderna. Trata-se de um costume bárbaro cuja racionalidade está obviamente em questão. É preciso confiar, contudo, na continuidade da mente humana que serve como fiador do mecanismo evolutivo que preserva as hipóteses de Frazer cuja história natural permite que de alguma forma seja possível percorrer a história ao contrário, voltando ao ponto senão de origem, àquele que permite borrar a distinção entre selvageria e antiguidade, ambos fonte, imanência e, de alguma forma, sobrevivência.

Accordingly, if we can show that a barbarous custom, like that of the priesthood of Nemi, has existed elsewhere, we can detect the motives which led to its institution; if we can prove that these motives have operated widely, perhaps universally, in human society, producing in varied circumstances a variety of institutions specifically different but generically alike; if we can show, lastly, that these very motives, with some of their derivative institutions, were actually at work in classical antiquity; then we may fairly infer that at a remoter age the same motives gave birth to the priesthood of Nemi. Such an inference, in default of direct evidence as to how the priesthood did actually arise, can never amount demonstration. But will be more or less probable according to the degree of completeness with which it fulfils the conditions I have indicated. The object of this book is, by meeting these conditions, to offer a fairly probable explanation of the priesthood of Nemi.” (Frazer, 1990:10)

O que Frazer sugere fazer é exatamente trabalhar com o que Anthony Maurice Hocart sugeriu ser o domínio das provas circunstanciais em seu Kings and Councillors. É na leitura de Hocart, inclusive, que duas coisas saltam aos olhos. A primeira, sobre o grau de penetração do paradigma indiciário nesta forma de administração da prova de forma que a investigação arqueológica que nos conduz à antiguidade e à selvageria, ao mesmo tempo, se utiliza do aparato próprio da antropologia forense em que são os rastros de alguém que interessam, e que nos conduz ao agente e suas intenções – como o será na figuração ao redor do assassinato do sacerdote de Nime. A segunda diz respeito à necessidade e, ao mesmo tempo, a precariedade do uso artificial de analogias para o exercício comparativo em antropologia que se conduz pela variety of institutions specifically diferente but generically alike.
Hocart abre seu livro dissertando sobre as regras do jogo de seu programa de pesquisa pautado por uma analogia explícita com a investigação pericial criminal. E é exatamente a cena de um crime que lhe serve de figura em que se dispõe do corpo, mas não de testemunhas. O que ele sugere é que as evidências diretas são superestimadas caso não sejam testemunhas do ato e, ainda assim, lembremos, réu confesso não elimina a necessidade de investigação pericial. Não é outra a vitória da biologia ao recusaras evidências diretas e recorrer ao enorme expediente da evidências circunstanciais que faz da evolução das espécies a forma de coletar e acolher a enorme diversidade de fatos sem recorrer à premissa da empiria.

There is one branch of human history which has no direct evidence to build on, and no hope of any. That is comparative philology. No one expects that we shall ever recover documents containing specimens of that lost speech from which Latin, Greek, Sanskrit, English, and such languages, are descended. Writing was not adopted by its users till long after it had split up into languages very distinct from one another. Our earliest Greek inscriptions hardly go back to 1000 B.C., at the very least a millennium after this splitting up. This absence of all direct evidence has proved a blessing in disguise. It has forced linguists to drop the wasteful an ineffective frontal attack, to which archaeologists are addicted, for a more decisive and economical flanking movement. They have been driven to the comparative method.” (Hocart, 1970:15)

O método comparativo persegue divergências constitutivas da história de seu objeto exatamente porque os rastros que o mesmo deixa fazem com que ele divirja da primeira impressão coletada. O caminho que leva até o original – e o tema se torna profundamente atrelado à questão da mímesis – visa eliminar as diferenças com vistas naquilo que em um primeiro momento é a regularidade das semelhanças que permitem deduzir, a partir disso, a forma original que desencadeou todas as variações morfológicas. É a comparação entre formas que oferecem uma semiótica particular, aguda e, mais uma vez, à revelia do contexto. É a intensidade da analogia que faz com que o grau de reincidência de uma forma na outra é que indica haver algo para além da superfície, como no caso-teste em que Agni é comparado com Hermes (Hocart, 1970:17-19) no qual são tantas as similaridades entre os mitos narrados que deve haver algo para além da mera aparência – e é aí que se trata de um exercício de anatomia comparada, e que as narrativas pertencem a um mesmo gênero porque sua fábula cumpre quase a mesma narrativa. Mais uma vez, generically alike que tem, por fim, uma dimensão estrutural. O acontecimento é investigado com vistas em sua estrutura entendida como suas condições de possibilidade, não naquilo ou quem ele representa. Todos os abusos da história conjectural partem daí. Seus méritos, idem. Um deles é de não ter aberto mão dos acontecimentos em favor de seus representantes.

domingo, 17 de agosto de 2014

O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.

 AGAMBEN, Giorgio. O sacramento da linguagem: arqueologia do juramento. UFMG. Belo Horizonte. 2011. 

DURKHEIM, Émile. Lições de sociologia. Martins Fontes. São Paulo. 2002.
FRAZER, James George. The golden bough: the magic art (2/13 vol.). Macmillan. 1990 [1913].
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Cosac & Naify. São Paulo. 2003 [1950].


6-  Esta não é uma discussão muito presente no debate antropológico, sobre o acontecimento. O que acontece é algo que, por razões muito importantes e precisas, se retirou imediatamente do horizonte teórico para que cedesse espeço para as variações temáticas das representações coletivas que tem como fundamento básico o projeto de sociologia política de Durkheim. Afinal, o que é uma representação coletiva senão a semiótica das corporações que ele tão bem defendeu em A divisão do trabalho social e nos cursos que oferecia na Sorbonne a partir de 1890? E o que são as corporações senão mediadores da mediação entre a população civil e o Estado? E o que é isto senão um léxico jurídico que se interpõe ao acontecimento da vida diária? O reflexo disto, e do elogio da laicidade francesa,  se encontra no exercício da sociologia que se concentra no esforço radical e proclamado de isolar a mística do Estado, fazendo da República o reino deste mundo. É assim que a sua defesa do individualismo como forma indiscutivelmente melhor de organização da sociedade de massas culmina numa elaboração particular em que é difícil discernir sua sociologia de um projeto de Estado e de planificação da vida coletiva:

A verdade é que o Estado não é por si mesmo um antagonista do indivíduo. O individualismo só é possível por meio dele, embora ele só possa servir à sua realização em condições determinadas. Pode-se dizer que é ele que constitui a função essencial. Foi ele que subtraiu a criança à dependência patriarcal, à tirania doméstica, foi ele que livrou o cidadão dos grupos feudais, mais tarde comunais, foi  ele que livrou o operário e o patrão da tirania corporativa, e, se ele exerce sua atividade com muita violência, ela só é viciada, em suma, porque se limita a ser puramente destrutiva. Eis o que justifica a extensão cada vez maior de suas atribuições. Essa concepção do Estado é, portanto, individualista, sem todavia confinar o Estado à administração de uma justiça totalmente negativa; reconhece-lhe o direito e o dever de desempenhar um papel dos mais extensos em todas as esferas da vida coletiva, sem ser místico.” (Durkheim, 2002:89)

Existe na sociologia francesa, esta que se dedica à estrutura social como forma planificada da vida coletiva dedicada fundamentalmente à reprodução das condições de vida – connatus sociológico- , a dificuldade bastante conhecida de se reportar ao acontecimento. Por muito tempo, creio que de forma profundamente equivocada, a tensão se projetava na polaridade entre indivíduo e sociedade, como se a questão fosse fundamentalmente interna à ordem jurídica dos povos, em especial os povos modernos. No entanto, toda a sociologia francesa em questão não é outra coisa senão um elogio ao indivíduo e ao individualismo, ainda que seja um elogio feito de forma blasé articulado na expressão c’est pas mal. Um elogio contudo que se articula no plano das representações do indivíduo, e não na individuação como acontecimento. Eis aí a enorme diferença da seleção de trechos escolhidos por Frazer com relação aos selecionados por Hubert & Mauss e a forma pela qual editam a vida primitiva.
A teoria geral da magia que encontramos no ensaio de Hubert & Mauss é uma teoria dos contextos da magia em que mesmo sendo ela um desafio, é um desafio à organização social e portanto, também sujeita ao tipo de acordo coletivo de tipo contrato, o mesmo que o direito negativo tem com o ato criminoso e aquele que o perpetra. Assim, o tipo criminoso acompanha o ato; mágico é tanto uma pessoa quanto um ato. É uma teoria dos papéis sociais no exercício de suas funções, um enorme investimento no universo do officium (Mauss, 2003). No caos do universo primitivo de onde são sacadas as mais diversas formas da origem dos costumes que são conectadas como fontes filogenéticas do comportamento humano, não é de se surpreender que mesmo aqueles empenhados com todas as suas força em investigar o universo antropológico desde as zonas de indistinção aguda entre tipos de fenômenos – discriminados com a força da laicização revolucionária francesa em que a religião é, antes de tudo, o selvagem da organização social humana -; mesmo estes entendem que direito e religião margeiam um ao outro sendo, igualmente, um o caso limite do outro. É aqui então que o recurso plácido das “distinções analíticas” entre, por exemplo, “direito” e “religião”, “religião” e “sociedade” e “magia” e “religião” correspondem uma edição do primitivo, ainda que não de qualquer primitivo. Do primitivo ao lado. É assim que Louis Gernet disserta sobre pre-droit como fase originária do direito pagão e Paolo Prodi fala sobre um instinto primordial que leva à separação futura da religião com relação à política (Agamben, 2011:24).

O caso de Mauss constitui um bom exemplo para mostrar como a pressuposição do conjunto sacral age decididamente, embora venha a ser, pelo menos  em parte, neutralizada pela atenção especial dada aos fenômenos que define seu método. A Esquisse de uma teoria geral da magia, de 1902, começa com uma tentativa de distinguir fenômenos mágicos frente à religião, ao direito e à técnica, com os quais muitas vezes tinham sido confundidos. No entanto, a análise de Mauss se depara todas as vezes com fenômenos (por exemplo, os ritos juríico-religiosos que contêm uma imprecação, como a devotio) que não é possível atribuir a uma única esfera. Assim, Mauss é levado a transformar a oposição dicotômica religião-magia numa oposição polar, traçando dessa maneira um campo, definido pelos dois extremos do sacrifício e do malefício, e que apresenta, necessariamente, umbrais de indecidibilidade. É sobre estes umbrais que ele concentra o seu trabalho. O resultado, conforme observou Dumézil, é que já não haverá para ele fatos mágicos, por um lado, e fatos religiosos, por outro; aliás, “o seu objetivo principal consistiu em ressaltar a complexidade de todos os fenômenos e a tendência da maior parte dos mesmos de irem além de qualquer definição, por se situarem simultaneamente em níveis diversos” (Dumézil, Idées romaines).” (Agamben, 2011:25-26)

O que Agamben não nota é que este além da definição positiva é, antes de mais nada, a esfera da infração e da violação de interditos que clivam a diferença entre sacrifício e malefício. E então a relação genealógica que se utiliza do tempo profundo não é tão relevante quanto é a relação pragmática com aquilo que Hubert & Mauss compreendem como a relação entre tradição, classificação e organização social. Na definição da magia, na segunda parte do Esquisse vemos como este movimento se dá em que a magia é classificada como tal segundo determinações específicas. Assim, mágico é o indivíduo que efetua mágicas; representações mágicas são ideias e crenças que correspondem à magia; os ritos são, por fim, os atos. Sendo magia algo da esfera da tradição – o que nos joga imediatamente para eventos que do ponto de vista filogenético e evolutivo, se deram pelo menos antes do Antigo Regime -, são operações passivas de repetição, então as representações mágicas nutrem da seguinte relação com as técnicas de magia:

Nas técnicas, o efeito é concebido como produzido mecanicamente. Sabe-se que ele resulta diretamente da coordenação dos gestos, dos instrumentos e dos agentes físicos. Vemo-lo seguir imediatamente a causa; os produtos são homogêneos aos meios; o disparo faz partir o dardo e o cozimento se faz com fogo. A existência mesma das artes depende da percepção contínua dessa mesma homogeneidade das causas e dos efeitos. Quando uma técnica é ao mesmo tempo mágica e técnica, a parte mágica é que escapa a essa definição. Assim, numa prática médica, os encantamentos, as observâncias rituais ou astrológicas são mágicas; é aí que jazem as forças ocultas, os espíritos, e que reina todo um mundo de ideias que faz que os movimentos, os espíritos, e que reina todo um mundo de ideias que faz os movimentos, os gestos rituais, sejam reputados detentores de uma eficácia muito especial, diferente de sua eficácia mecânica.”(Mauss, 2003:57)

Percebe-se que, em primeiro lugar, há a distinção entre o técnico e o mágico, se é para seguirmos o exemplo. Mas aqui, bem ao modo calvinista de definir administração da eucaristia, o mágico corresponde ao plano do simbólico e que, como tal, acontece como se fosse uma outra coisa. É a classificação dos atos na correspondência com o universo simbólico que lhe dá significado. E aqui, quase escrevi sentido. Preferi guardar o termo para que seja usado em momento propício em que esta passagem citada de Hubert & Mauss seja confrontada. Mas não no que diz respeito ao simbólico cujo calvinismo tanto influenciam as mais diversas de pesquisas modernas sobre religião – sugestivamente, talvez não a Frazer. O que está em questão é o mecaniscismo subjacente em que as relações entre causas e efeitos determinam a anterioridade e a posterioridade, assim como o princípio que legisla a respeito do que acontece fazendo da lei um antecedente tanto lógico quanto cronológico de qualquer coisa que aconteça. Física social.

O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.


FRAZER, James George. The golden bough: the magic art (2/13 vol.). Macmillan. 1990 [1913].
STRATHERN, Marilyn. O efeito etnográfico. Cosac & Naify. São Paulo. 2014.

5- O selvagem como filósofo é uma das fórmulas mais recorrentes e presentes na longa discussão a respeito do estatuto da mitologia, e da positividade dos mitos, para não dizermos sobre a proliferação de mundos e pontos e vista que se enunciam como disciplinas de caráter etno, este prefixo que segue exercendo o fascínio dos mundos derivados – música étnica. Para além de discussões metodológicas que pedem para que se siga o nativo (follow the native)  de forma a levar a sério o que o nativo diz – coisa que, creio, merece a cautela metodológica sugerida por Edmund Leach, a de que há muito de meramente justificatório no ato de comunicação da alteridade-, a dimensão excelente para a discussão do tópico philosophy of life parece ser melhor condensada no embaraço metodológico da discussão proposta por Marshall Sahlins a respeito de como pensam os nativos. Contudo, ainda que O ramo de ouro participe do esforço moderno de contar a história da razão – que também desemboca mais adiante na história do Ser -, ele adentra no universo das formas que mimetizam formas com um volume e envolvimento particulares. A semelhança, antes de tudo, acontece como tal e, num primeiro momento, é isso que importa. Talvez por isso, ainda que tenha me utilizado do jargão de Marilyn Strathern – out of context – eu tenha me afastado tanto daquilo que é matéria de discussão de seu ensaio sobre Frazer, para todos os efeitos muito interessante mas, ao mesmo tempo, mais datado do que O ramo de outro parece ser – mais dedicado em especular do que em acontecer.
A despeito disto, o ensaio de Marilyn Strathern consegue produzir um efeito que é o mais interessante, que é quando a imagem acontece – este um dos temas de tantos outros trabalhos dela, presentes em coletâneas como Property, substance and effects e O efeito etnográfico. Em seu Out of context (Strathern, 2014) vemos como Frazer aos poucos se transforma em uma personagem estranha e em como, paulatinamente, O ramo de ouro devem um livro ilegível. Como um intelectual moderno à toda prova, ele foi reduzido a um estilo e a uma forma de exercício de autoridade que, para além de etnográfica, é propriamente colonial que, como bem sabemos, é onde a selvageria realmente acontece. E Frazer, ilegível, se transformou em um selvagem. Não do mesmo tipo que os botocudos desnudos ou as formas elementares warramunga, mas daquele passado sombrio em que andávamos em hordas invadindo a vida e o território alheio promovendo destruição em caos em nome das mais nobres aspirações como o progresso da inteligência e moral humanas. Barbarismo. Frentes de expansão do capital.
Convém perguntar se a negação de Frazer, não como um passado distante mas como um presente que deve ser confrontado como presença; e O ramo de ouro como um livro de coisas que acontecem, com a licença de Daniel Pelizzari, não repete o mesmo tipo de recalque que os intelectuais modernos conseguiram, com algum sucesso, se desembaraçar. Como a parte hedionda que por fim coube à crítica moralizar ao ponto de se transformar em algo insuportável, esta outra face do ininteligível. Convém perguntar how Frazer thinks. Por nenhuma razão de dignidade especial que não ele ser responsável por um  livro de coisas que acontecem:

Before Cherokee braves went forth to war the medicine-man used to give each man a small charmed root which made him absolutely invulnerable. On the eve of battle the warrior bathed in a running stream, chewed a portion of the root and spat the juice on his body in order that the bullets might slide from his skin like drops of water. Some of my readers perhaps doubt whether this really made the men bomb-proof. There is a barren and paralyzing spirit of skepticism abroad at the present day which is most deplorable. However, the efficacy of this particular charm was proved in the Civil War, for three hundred Cherokees served in the army of the South; and they were never, of hardly ever, wounded in action.” (Frazer, 1990:146-147).

terça-feira, 6 de maio de 2014

Notas desde atrás dos muros: os espaços da fé e território como problema de teologia política


CERTEAU, Michel. La Fable Mystique, I: XVIe-XVIIe siècle.  Gallimard. Paris. 1982a.
________________________. Le lieu de l’autre : histoire religieuse et mystique. Gallimard/Seuil. Paris. 2005.
DELEUZE,  Gilles & GUATTARI, Félix. Mille Plateaux : capitalisme et schizophrénie. 
Minuit. Paris. 1980.
KAFKA, Franz. Um médico rural – pequenas narrativas. Brasiliense. São Paulo. 1991.
JAY, Martin. Songs of experience: modern american and european variations on a universal theme. University of California. Los Angeles. 2006.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. EdUSP. São Paulo. 1993.
_____________________________. Investigações Filosóficas. Abril Cultural. São Paulo.1999.
 


7-
            Se no começo de tudo, há o dado (Certeau, 2009:335), é preciso talvez dar um passo atrás, antes de tudo. Em certa cronologia, antes da modernidade mostrar suas fronteiras, cujo verdadeiro vocábulo é a expansão. Não imagino, na verdade, que o termo virá a significar coisa diversa. Michel de Certeau disserta sobre o verbo que precipita da mística como ciência experimental, como algo a ser dito e que se remete a um il y a  ou a um il y a eu que antecede o que está para ser dito e mesmo com relação ao que foi dito, imergindo o verbo na emanação daquilo que há. O que há, contudo, não está disponível para além daquilo que, de uma forma ou de outra, fora dito. O que há é, de outra forma, aquilo que acontece e que, assim, em toda sua potencia não obedece a qualquer jurisdição imposta pelas Leis, linguagem ou afeição. Irrompe no movimento que deixa rastros sem deixar, contudo, evidências. Vira tudo um disse-me-disse cujo aspecto de fofoca insiste em submeter o verbo fantástico na suspeição usual – não se sabe quem foi, como foi, mas sim que aconteceu.

            Ninguém pode então dizer: “É a minha verdade” ou “Sou eu”. O acontecimento se impõe. Em um sentido muito real, ele aliena. Ele é a ordem do êxtase, isto é, o que expulsa, põe para fora. Exila de si (du moi) mais que nele reúne. Mas tem por característica abrir um espaço sem o qual o místico não pode então viver. Indissociável do consentimento que lhe serve de critério, um “nascimento” retira do homem uma verdade que é sua sem que seja dele ou para ele. Assim, é “fora dele” quando o momento quando se impõe um Si (Soi). Uma necessidade se eleva nele, mas sob o signo de uma música, de uma palavra ou de uma visão vinda d’alhures.”(Certeau, op.cit.332)

            Não é o que é dito, mas uma forma de dizer. E ainda assim, a mística é submetida a uma disciplina pela qual ela pode vir a público. O signo da música, o componente da partitura, e significativo e presente em outros esforços do mesmo Michel de Certeau em apresentar o que poderia ser a escritura mística. Esta é a analogia posta em jogo quando remetida ao libreto dos exercícios espirituais de Ignacio de Loyola. Que o mesmo se trata de uma coordenação de um “fora do texto” e que não prima pela substituição da voz, ao contrário. Mais do que parecer implica-la, a provoca.

            Não é mais a narrativa de um itinerário do que um tratado de espiritualidade. Os Exercícios fornecem somente um conjunto de regras e práticas relativas às experiências que não são descritas nem justificadas, que não são introduzidas no texto, e que não são representação de forma alguma dado que postas como exteriores à ele sob a forma do diálogo oral entre o instrutor e o interno, ou da história silenciosa das relações entre Deus e seus dois internos.” (2009:239)

            Que seja perdoada a remissão a algo tão distante do universo barroco e do exercício de autoridade que prima pelo controle de si tanto quanto pela generalização metódica de um si civilizado (sivilizado). Mas há algo no ambiente da disciplina da mística que impede que prossigamos pelo simples fato de haver interdição da fala com relação ao seu objeto. O mero haver do qual se parte, “algo aconteceu”, não floresce de uma investigação filogenética. Sua domesticação, portanto, segue interdita ou traduzida, como insiste Michel de Certeau com alguma razão, em psicossomática ou, no universo presidido pela lógica do concreto de Lévi-Strauss, na eficácia simbólica. No primeiro, não importa de acontece fora; no segundo, seguramente algo acontece dentro. E de quê senão da relação constituinte? Psicanaliticamente a existência do objeto é presidida pela relação do paciente com a produção de símbolos precipitada, principalmente, de relações traumáticas cuja cisão produzida demanda da psique um esforço compensatório de produção de imagens, sentido e memória. No caso do estruturalismo simbólico é a relação do símbolo como realidade do espírito, e não como representação da realidade que a eficácia opera, dado que o organicismo do estrutural funcionalismo assume um outro ar em que a autonomia do simbólico se dá na quebra do espelhamento da estrutura da ordem dos símbolos com a estrutura social. O símbolo afeta de fato, ainda que não necessariamente de direito.
            E segue havendo nisso tudo a proliferação de pontos cegos recorrendo ao aporte do extraordinário da linguagem. O trauma, o mito, o au-de-là católico dos jesuítas e seu Deus absolutamente estrangeiro. Parece recorrer a uma fórmula muito divulgada, de Ludwig Wittgenstein e seu Tractatus Logico-Philosophicus: “Wovon man nicht sprechen kann, darüber muß man schweigen [Sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar]. Parte deste tratado de Wittgenstein diz respeito à relação com o mundo, ainda que não necessariamente se saiba a relação de quem. Possivelmente a do leitor que compreende que Deus se revela no mundo, o que o faz indiferente quanto a como seja o mundo, assim que o modo que o mundo por ventura seja não é o místico, mas sim o mero fato de que haja mundo. A dimensão da atemporalidade do eterno se conjuga com a ausência de fim e finalidade da vida e a inefabilidade do mundo como tal. Isso é o Místico (6.522).
            A proposição 6.53 do filósofo austríaco é decisiva dado que sintetiza o tipo de observação que Michel de Certeau considera decisiva para uma de suas várias aproximações diretas com o conceito de mística. O apartamento entre evento e discurso e o modo de sua recuperação arruinada pela própria ordem do evento que impõe a mística como uma disciplina desemboca em formulações como a seguinte:

            O método correto da filosofia seria propriamente este: nada dizer, senão o que se pode dizer; portanto, proposições da ciência natural – portanto, algo que nada tem a ver com a filosofia; e então, sempre que alguém pretendesse dizer algo de metafísico, mostrar-lhe que não conferiu significado a certos sinais em suas proposições. Esse método seria, para ele, insatisfatório – não teria a sensação que lhe estivéssemos ensinando filosofia; mas esse seria o único rigorosamente correto.” (1993:281)
           
            Um gosto amargo parece atravessar a boca a cada vez que uma sentença ordinária é proferida. Dito de outro modo, não há nada a dizer especialmente quando há um dado porque é este mesmo dado o inefável. E o dado se amplia como forma intangível uma vez que a experiência se transforma, igualmente em algo que acontece, em algo que aconteceu, com o que se tenta entabular relação. Contudo o pretérito perfeito tende a se arruinar também se transformando em vestígios do mundo e, por isso, segue perdido. Não é por acaso que Michel de Certeau evoca o conto de Franz Kafka, Diante da Lei. “Diante da Lei está um porteiro” que se impõe diante de um homem do campo que deseja entrar. Ele sugere desobedecer a interdição com relação à qual o porteiro não levanta objeções, mas tece o aviso de ser o mais poderoso de todos os porteiros. O homem do campo, que achava ser a lei acessível espera encontrar uma solução para o empasse por anos, sentado em um banquinho oferecido pelo porteiro. Dentre conversas e tentativas de corrupção, o porteiro aceita de tudo com o intuito de oferecer para o homem do campo a sensação de ter feito de tudo que estivesse em seu poder. Não mais diante da Lei, mas da velhice e da morte o homem pergunta ao porteiro “Todos aspiram à lei.[...] Como se explica que em tantos anos ninguém além de mim pediu para entrar?”. Percebendo ser o último suspiro do homem o porteiro diz que ali somente ele, o homem do campo, poderia ser admitido. Uma vez que estava morto, levantou-se e fechou a porta (Kafka, 1991:23-25).
            A lei é, aqui, um terreno estrangeiro, o lugar do outro. Este é, pelo menos, o aporte de Michel de Certeau que parece compactuar com Wittgenstein ao menos para fins historiográficos. Esta relação com o totalmente outro, e com a experiência como a fuga de si parece corroborar o artifício moderno de controle da imaginação como forma de edição da mística; ou da mística como conteúdo que viola o acordo tácito de pacificação do discurso, de homens do campo que não reconhecem portas e tampouco porteiros. É neste sentido que o mundo é absurdo, dado que ele seria o puro ambiente do acontecimento. Mas até onde a obediência a uma restrição de tipo não entre serve de fato para uma investigação a respeito da mística como entrada interdita no território estrangeiro (inimigo?)?
            Ao comentar o pan-misticismo de René Daumal, aquele que reduz todas as místicas à Mística, Michel de Certeau pergunta se não seria por fim o próprio Daumal o único denominador comum da Mística sintetizadora da diversidade dos misticismos. Com relação à mística de Wittgenstein, se há um leitor que escapou da tentação redutora foi ele mesmo. O diálogo de Kafka, por exemplo, estar diante da lei não seria nada de excepcional. Tampouco a mística ofereceria uma sorte de orientação que não fosse, ademais, ordinária. Em um primeiro momento, no que diz respeito à sugestão, tomada pelo homem do campo como um imperativo de tipo Não Entre opera como um jogo tácito em que a porta fechada disse mais coisas do que de fato o teria dito o porteiro. E no entanto, nada foi dito. Mas para além da pragmática da comunicação para onde Wittgenstein dedica todos os seus esforços em suas Investigações, o exato oposto do Tractatus, há também uma ampliação do escopo da comunicabilidade do sentido. Dito de outra forma, absolutamente tudo pode ser dito a qualquer hora, da forma que seja. Isso em nada tem a ver com a comunicação do sentido (meinen).
            Sendo que §249 mentir é um jogo de linguagem que deve ser aprendido como qualquer outro e que as regras postas na forma de lei são jogos de linguagens acerca de jogos de linguagem o que há, o que acontece, é uma constante proliferação de símbolos, sentidos e ordens que tem como fundamento, não o sentido ele mesmo mas seu caráter imperativo – o que é demonstrado com muito vagar e propriedade por Austin (1975). A base não é o significado de um significante, mas aquilo que eu disser que é de Humpty Dumpty e suas variações mais marcantes, como as traduções como a de Deus-Tupã feita pelos jesuítas ou mesmo a mais reles maçã. E a reles maçã, não no que tenha como qualidade de ser maçã, mas na sua condição de reles que uma outra dimensão do binômio dentro/fora assume outro caráter. Porque se há algo que interfere na comunicabilidade do isso da mística, do dado, é exatamente a ausência de uma referencia possível, dado que inefável. Vejamos o aforisma 244 das Investigações:

            Como as palavras se referem a sensações? Nisto não parece haver nenhum problema; pois não falamos diariamente de sensações e não as denominamos? Mas como é a mesma que: como um homem aprende o significado dos nomes de sensações? Por exemplo, da palavra “dor”. Esta é uma possibilidade: palavras são ligadas à expressão originária e natural da sensação, e colocadas no lugar dela. Uma criança se machucou e grita; então os adultos falam com ela e lhe ensinam exclamações e, posteriormente, frases. Ensinam a criança um novo comportamento perante a dor.
            “Assim, pois, você diz que a palavra ‘dor ’significa, na verdade, o gritar?”- Ao contrário; a expressão verbal da dor substitui o gritar e não o descreve.” (1999:99)

Algo do inexpugnável no universo da mística está impregnado pelo odor do ordinário da experiência – ainda que não esteja tratando experiência como sinônimo de sensação.  Até porque, assim como Wittgenstein não é ele mesmo mas a variação sobre o tema da relação mundo/sentido, o termo experiência é também uma contraposição a si mesmo. Afinal, como já dito, não se trata de uma relação entre significante e significado mas aquilo que eu disser que é. E nisso não se infere qualquer autenticidade maior ao que acontece no âmago da sensação, independente se é ou não próprio à experiência mística. Se é dito, é um jogo de linguagem e sua referencia pertence a uma outra dimensão que a linguagem não opera ainda que possa indicar – sem fazer remissão ao objeto da experiência. É assim que reencontramos Michel de Certeau que, ao afirmar da linguagem social da mística aponta para a sociação que ativa elementos do discurso que façam da experiência mística algo distinto do ensandecido, louco ou infantil. Para a economia da mística, obviamente, dado que para um libertino todos estes qualificativos são, por fim, sinônimos. Mas não chegamos lá, ainda.
A nomenclatura, isto é, esta forma de fazer fazer[1] no entorno da experiência como conceito  – como mera palavra em disputa – apresenta uma face bipartida na sua versão alemã. Na verdade é na fortuna germânica que uma distinção analítica atinge a maturidade de um vocabulário específico em que é possível fazer remissão à experiência e, de outra forma, a consciência de experiência. Dentro e Fora são encenados por Erlebnis e Erfahrung:

Erlebnis contém em si o radical de vida (Leben) e por vezes é traduzido como “experiência vivida”. Todavia, sendo um verbo transitivo vindo a implicar a experiência de alguma coisa, Erlebnis é tomado também como a unidade primitiva anterior a qualquer diferenciação ou objetificação. Normalmente localizada no lugar comum das práticas não autorizadas do “mundo da vida” (Lebenswelt), pode também sugerir uma ruptura intensa e vital com a fabricação da rotina quotidiana. Leben também pode sugerir a inteireza da vida de forma que Erlebnis conota em geral algo mais imediato, uma variação pré-reflexiva e pessoal daquilo que Erfahrung poderia ser.” (Jay, 2006:11).

Por sua vez, Erfahrung é uma espécie de jornada perigosa (entabula conexões tanto com Fahrt= jornada; quanto Gefahr=perigo) em que a noção e experiência é articulada com a ação no tempo fazendo da mesma experiência algo diversa, um acúmulo memorável de conteúdo. Portanto, sendo grosseiramente sumário, a mística é o conteúdo da jornada perigosa, ruínas, o resto da gesta; místico é aquele que vive a vida enquanto não é, ele mesmo, o perigo. Este se transformou numa história em que é narrada uma variação do tema sobre a relação entre pureza e perigo.


[1] Vide Deleuze & Guattari (1980:95-139).

quarta-feira, 5 de março de 2014

AInda não: crônica crônica de carnaval.


          Foi então que pisei fora de casa. Não dei a menor bola para os helicópteros sobrevoando a avenida Santa Isabel e mesmo ao som das primeiras explosões. Pirotecnia, ambos, da Polícia Militar e de foliões que sempre usam da sorte para explodir latinhas e assustar transeuntes. Afinal, aqui é terra em que se comemoram natais com fogos de artifício. Muitos, ainda que sem o acompanhamento de gritos desesperados perfazendo a melodia “filhos-da-puta” que, por fim, moveram-me do sofá. Que pese o fato de eu não estranhar mais sobrevoos de helicópteros policiais e de conviver com gente que explode coisas por diversão, como eu mesmo fiz na adolescência. A
tensão dos gritos estava alguns tons acima do desconforto habitual de morar em Barão Geraldo, Campinas.
            Esta que é uma ilha num mar de abjeção urbana, é ela mesma uma abjeção. Só é uma ilha porque perdura sua forma intangível de ser a Terra do Nunca que abriga a Unicamp, em que Nunca segue presidindo todas as atividades.  A mesma Terra do Nunca  com facções diversas de Meninos Perdidos que mal e porcamente povoam as ruas. Na verdade, não, porque voam não tocando o chão, overdose de toques de fada Sininho. Esta mesma ilha está pipocada de violações aos hábitos civis banais. Há um toque de recolher implícito que faz das ruas um ambiente deserto às 21 horas, toque este acompanhado pelas ruas escuras de uma iluminação tenebrosa que permitia às fantasias de vampiro de outrora, quando eu explodia coisas, a mais palpável verossimilhança. Quando adolescente, temido por quem cruzasse na rua – ainda que este fosse, em geral, ninguém. Minha mãe sempre temerosa, calculava o pranto na possibilidade de um acontecimento infeliz e, no entanto, nunca.
            Quando pisei fora de casa na madrugada de uma terça-feira de carnaval, ano de 2014, fomos invadidos pela força alheia. Vi carros atravessados na rua que me viu sair dos cueiros, não à forma irresponsável das oficinas mecânicas de interromperem a calçada irregular, mas nos contornos do desespero coletivo. Choro, raiva, trânsito interrompido. Tosse seca, algumas doloridas e outras tantas fingidas com o ofício daquele que não perde a oportunidade de participar da História. As fantasias já não importavam mais pois, assim se via, todos estavam nus. Todos? Olhei sobre o ombro direito. Parecia um milagre. Um acontecimento. Trinta sombras de escudo em riste e bastões intercalados com canudos de soltar projéteis. Andavam acuados por um enorme vazio em que as ruas, já depois das 21 horas, travestiam. Seguiam rumo à Av. J.B. de Oliveira, saindo da outra avenida, Santa Isabel, a mesma frequentemente visitada pelo som dos helicópteros em rasante. As trinta sombras, com ombreiras ovaladas, partes de corpo em brilho fosco do negrume das peças aconteciam ao som de bombas e marcha. O silêncio vinha de outra parte, era o samba quem havia calado.
            Do portão de casa até a Praça do Côco é uma caminhada de levar a avó. Coisa pouca para chegar em um terreno em que o que se dá, basicamente, são reuniões de fazer nada, o epicentro descontraído da Terra do Nunca. Uma ilha em uma ilha, o golpe parece ter atingido o pâncreas do eterno esconderijo produzindo tão e simplesmente a bile que sobra do cansaço do corpo após o envenenamento recreativo dos dias de carnaval. Os gritos de desespero e ofensa só faziam crescer na exata medida em que não somente o samba fora silenciado, mas colocado em uma escala negativa do canto roubado. Mais uma bomba de gás. Acompanho as sombras desde atrás, com uma distância saudável, a saúde de quem caminha olhando a nuca alheia. Viro a esquina da rua de casa, à esquerda, e sigo até a Praça do Côco, onde o derradeiro ambulante desmonta a parafernália devidamente esbaforido e revoltado. Porque não estava acontecendo nada que não fosse samba, foi assim que ouvi da boca dele, e que tudo o que se deu foram gás e balas de borracha. Um ou outro fantasma, vindo de outros momentos deste evento máximo, o primeiro, repetiam a ladainha que se assume ares de voz maldita, aquela que diz ter visto não saber o que aconteceu. Não importa por onde a história começa, não há quem afirme saber de onde veio o golpe.
            Foi o suficiente para me distrair - o que deveria ter servido de sinal, para eu não me enganar, não levar em conta a possibilidade de estar no mesmo evento em que eu pude contar 30 sombras. Naquilo que deveria ter sido o caos e o medo, parar e conversar com quem tinha muito o que perder em simplesmente correr. E distraído, perceber carro, equipamentos e mercadoria que serviram de âncora para uma dúzia de pessoas que persistiam em ficar na mesma praça que abandonariam minutos depois. Mas não havia mais ninguém além daqueles que, nas contas decisivas, eram os derradeiros. E no entanto, as sombras seguiam no exercício. Passos marcados e, logo mais, o som de sua própria verve percussiva. Bastões sorvendo os escudos da cadência interrompida para uma multidão ausente, dispersa sem nunca ter se aglomerado. Um curto ensaio musical chegando à zona de dispersão, 5 viaturas da força especial aguardando pacientemente sua ala sombria que agira no mais seguro anonimato da noite desabitada. Uma curta comemoração e então o preto fosco das peças duras cede ao tecido cinza de homens que partiam sem praticar o ofício policial de averiguar, investigar, reconhecer. Saíram de costas para dar a impressão de que estavam chegando, sem luz, sem som, sem sombra.
            Passei a madrugada em claro, contando e levantando detalhes, divulgando a boa nova de que não éramos mais a Terra do Nunca e que tínhamos quebrado com a maldição das facções. Os Garotos Perdidos poderiam voltar para casa. Mas diz a informação do ministro do alcaide que não, que nada, que nunca. Como antes. Os calos nos pés reforçados por minha sandália ruim são, por fim, uma história interrompida e já é tarde demais para reaprender a voar.
             Mas o que aconteceu?, poderia me perguntar o leitor. Com alguma tristeza sou obrigado a reconhecer que não aconteceu nada. Ainda não.