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Investigações Filosóficas. Abril
Cultural. São Paulo.1999.
7-
Se no começo de tudo, há o dado (Certeau,
2009:335), é preciso talvez dar um passo atrás, antes de tudo. Em certa
cronologia, antes da modernidade mostrar suas fronteiras, cujo verdadeiro
vocábulo é a expansão. Não imagino, na verdade, que o termo virá a significar
coisa diversa. Michel de Certeau disserta sobre o verbo que precipita da
mística como ciência experimental, como algo a ser dito e que se remete a um il y a
ou a um il y a eu que antecede
o que está para ser dito e mesmo com relação ao que foi dito, imergindo o verbo
na emanação daquilo que há. O que há, contudo, não está disponível para além
daquilo que, de uma forma ou de outra, fora dito. O que há é, de outra forma,
aquilo que acontece e que, assim, em toda sua potencia não obedece a qualquer
jurisdição imposta pelas Leis, linguagem ou afeição. Irrompe no movimento que
deixa rastros sem deixar, contudo, evidências. Vira tudo um disse-me-disse cujo
aspecto de fofoca insiste em submeter o verbo fantástico na suspeição usual –
não se sabe quem foi, como foi, mas sim que aconteceu.
“Ninguém pode então dizer: “É a minha
verdade” ou “Sou eu”. O acontecimento se impõe. Em um sentido muito real, ele aliena.
Ele é a ordem do êxtase, isto é, o que expulsa, põe para fora. Exila de si (du
moi) mais que nele reúne. Mas tem por
característica abrir um espaço sem o qual o místico não pode então viver.
Indissociável do consentimento que lhe serve de critério, um “nascimento”
retira do homem uma verdade que é sua sem que seja dele ou para ele. Assim, é
“fora dele” quando o momento quando se impõe um Si (Soi). Uma necessidade se eleva nele, mas sob o
signo de uma música, de uma palavra ou de uma visão vinda d’alhures.”(Certeau,
op.cit.332)
Não é o que
é dito, mas uma forma de dizer. E ainda assim, a mística é submetida a uma
disciplina pela qual ela pode vir a público. O signo da música, o componente da
partitura, e significativo e presente em outros esforços do mesmo Michel de
Certeau em apresentar o que poderia ser a escritura mística. Esta é a analogia
posta em jogo quando remetida ao libreto
dos exercícios espirituais de Ignacio de Loyola. Que o mesmo se trata de uma
coordenação de um “fora do texto” e que não prima pela substituição da voz, ao
contrário. Mais do que parecer implica-la, a provoca.
“Não é mais a narrativa de um itinerário do
que um tratado de espiritualidade. Os Exercícios fornecem somente um conjunto
de regras e práticas relativas às experiências que não são descritas nem
justificadas, que não são introduzidas no texto, e que não são representação de
forma alguma dado que postas como exteriores à ele sob a forma do diálogo oral entre o instrutor e o interno, ou
da história silenciosa das relações
entre Deus e seus dois internos.” (2009:239)
Que seja
perdoada a remissão a algo tão distante do universo barroco e do exercício de
autoridade que prima pelo controle de si tanto quanto pela generalização
metódica de um si civilizado (sivilizado). Mas há algo no ambiente da
disciplina da mística que impede que prossigamos pelo simples fato de haver
interdição da fala com relação ao seu objeto. O mero haver do qual se parte,
“algo aconteceu”, não floresce de uma investigação filogenética. Sua domesticação,
portanto, segue interdita ou traduzida, como insiste Michel de Certeau com
alguma razão, em psicossomática ou, no universo presidido pela lógica do
concreto de Lévi-Strauss, na eficácia simbólica. No primeiro, não importa de
acontece fora; no segundo, seguramente algo acontece dentro. E de quê senão da
relação constituinte? Psicanaliticamente a existência do objeto é presidida
pela relação do paciente com a produção de símbolos precipitada,
principalmente, de relações traumáticas cuja cisão produzida demanda da psique
um esforço compensatório de produção de imagens, sentido e memória. No caso do
estruturalismo simbólico é a relação do símbolo como realidade do espírito, e
não como representação da realidade que a eficácia opera, dado que o organicismo
do estrutural funcionalismo assume um outro ar em que a autonomia do simbólico
se dá na quebra do espelhamento da estrutura da ordem dos símbolos com a
estrutura social. O símbolo afeta de fato, ainda que não necessariamente de
direito.
E segue
havendo nisso tudo a proliferação de pontos cegos recorrendo ao aporte do
extraordinário da linguagem. O trauma, o mito, o au-de-là católico dos jesuítas e seu Deus absolutamente
estrangeiro. Parece recorrer a uma fórmula muito divulgada, de Ludwig
Wittgenstein e seu Tractatus
Logico-Philosophicus: “Wovon man nicht sprechen kann, darüber muß man
schweigen [Sobre aquilo que
não se pode falar, deve-se calar]. Parte deste tratado de Wittgenstein diz
respeito à relação com o mundo, ainda que não necessariamente se saiba a
relação de quem. Possivelmente a do leitor que compreende que Deus se revela no mundo, o que o faz indiferente quanto
a como seja o mundo, assim que o modo
que o mundo por ventura seja não é o místico, mas sim o mero fato de que haja
mundo. A dimensão da atemporalidade do eterno se conjuga com a ausência de fim
e finalidade da vida e a inefabilidade do mundo como tal. Isso é o Místico
(6.522).
A proposição
6.53 do filósofo austríaco é decisiva dado que sintetiza o tipo de observação
que Michel de Certeau considera decisiva para uma de suas várias aproximações
diretas com o conceito de mística. O
apartamento entre evento e discurso e o modo de sua recuperação arruinada pela
própria ordem do evento que impõe a mística como uma disciplina desemboca em
formulações como a seguinte:
“O método correto da filosofia seria
propriamente este: nada dizer, senão o que se pode dizer; portanto, proposições
da ciência natural – portanto, algo que nada tem a ver com a filosofia; e
então, sempre que alguém pretendesse dizer algo de metafísico, mostrar-lhe que
não conferiu significado a certos sinais em suas proposições. Esse método
seria, para ele, insatisfatório – não teria a sensação que lhe estivéssemos
ensinando filosofia; mas esse seria
o único rigorosamente correto.” (1993:281)
Um gosto
amargo parece atravessar a boca a cada vez que uma sentença ordinária é
proferida. Dito de outro modo, não há nada a dizer especialmente quando há um
dado porque é este mesmo dado o inefável. E o dado se amplia como forma intangível
uma vez que a experiência se transforma, igualmente em algo que acontece, em
algo que aconteceu, com o que se tenta entabular relação. Contudo o pretérito
perfeito tende a se arruinar também se transformando em vestígios do mundo e,
por isso, segue perdido. Não é por acaso que Michel de Certeau evoca o conto de
Franz Kafka, Diante da Lei. “Diante da Lei está um porteiro” que se
impõe diante de um homem do campo que deseja entrar. Ele sugere desobedecer a
interdição com relação à qual o porteiro não levanta objeções, mas tece o aviso
de ser o mais poderoso de todos os porteiros. O homem do campo, que achava ser
a lei acessível espera encontrar uma solução para o empasse por anos, sentado
em um banquinho oferecido pelo porteiro. Dentre conversas e tentativas de
corrupção, o porteiro aceita de tudo com o intuito de oferecer para o homem do
campo a sensação de ter feito de tudo que estivesse em seu poder. Não mais
diante da Lei, mas da velhice e da morte o homem pergunta ao porteiro “Todos aspiram à lei.[...] Como se explica que em tantos anos ninguém
além de mim pediu para entrar?”. Percebendo ser o último suspiro do homem o
porteiro diz que ali somente ele, o homem do campo, poderia ser admitido. Uma
vez que estava morto, levantou-se e fechou a porta (Kafka, 1991:23-25).
A lei é,
aqui, um terreno estrangeiro, o lugar do outro. Este é, pelo menos, o aporte de
Michel de Certeau que parece compactuar com Wittgenstein ao menos para fins
historiográficos. Esta relação com o totalmente outro, e com a experiência como
a fuga de si parece corroborar o artifício moderno de controle da imaginação
como forma de edição da mística; ou da mística como conteúdo que viola o acordo
tácito de pacificação do discurso, de homens do campo que não reconhecem portas
e tampouco porteiros. É neste sentido que o mundo é absurdo, dado que ele seria
o puro ambiente do acontecimento. Mas até onde a obediência a uma restrição de
tipo não entre serve de fato para uma
investigação a respeito da mística como entrada interdita no território estrangeiro
(inimigo?)?
Ao comentar
o pan-misticismo de René Daumal, aquele que reduz todas as místicas à Mística,
Michel de Certeau pergunta se não seria por fim o próprio Daumal o único
denominador comum da Mística sintetizadora da diversidade dos misticismos. Com
relação à mística de Wittgenstein, se há um leitor que escapou da tentação
redutora foi ele mesmo. O diálogo de Kafka, por exemplo, estar diante da lei não seria nada de
excepcional. Tampouco a mística ofereceria uma sorte de orientação que não fosse,
ademais, ordinária. Em um primeiro momento, no que diz respeito à sugestão,
tomada pelo homem do campo como um imperativo de tipo Não Entre opera como um jogo tácito em que a porta fechada disse
mais coisas do que de fato o teria dito o porteiro. E no entanto, nada foi
dito. Mas para além da pragmática da comunicação para onde Wittgenstein dedica
todos os seus esforços em suas Investigações,
o exato oposto do Tractatus, há
também uma ampliação do escopo da comunicabilidade do sentido. Dito de outra forma,
absolutamente tudo pode ser dito a qualquer hora, da forma que seja. Isso em
nada tem a ver com a comunicação do sentido (meinen).
Sendo que
§249 mentir é um jogo de linguagem que
deve ser aprendido como qualquer outro e que as regras postas na forma de
lei são jogos de linguagens acerca de jogos de linguagem o que há, o que
acontece, é uma constante proliferação de símbolos, sentidos e ordens que tem
como fundamento, não o sentido ele mesmo mas seu caráter imperativo – o que é
demonstrado com muito vagar e propriedade por Austin (1975). A base não é o
significado de um significante, mas aquilo
que eu disser que é de Humpty Dumpty e suas variações mais marcantes, como
as traduções como a de Deus-Tupã feita pelos jesuítas ou mesmo a mais reles
maçã. E a reles maçã, não no que tenha como qualidade de ser maçã, mas na sua condição de reles que uma outra dimensão do
binômio dentro/fora assume outro caráter. Porque se há algo que interfere na
comunicabilidade do isso da mística,
do dado, é exatamente a ausência de uma referencia possível, dado que inefável.
Vejamos o aforisma 244 das Investigações:
“Como as palavras se referem a sensações? Nisto não parece haver nenhum problema;
pois não falamos diariamente de sensações e não as denominamos? Mas como é a mesma
que: como um homem aprende o significado dos nomes de sensações? Por exemplo,
da palavra “dor”. Esta é uma possibilidade: palavras são ligadas à expressão
originária e natural da sensação, e colocadas no lugar dela. Uma criança se
machucou e grita; então os adultos falam com ela e lhe ensinam exclamações e,
posteriormente, frases. Ensinam a criança um novo comportamento perante a dor.
“Assim, pois, você diz que a palavra ‘dor ’significa, na
verdade, o gritar?”- Ao contrário; a expressão verbal da dor substitui o gritar
e não o descreve.” (1999:99)
Algo do inexpugnável no universo da
mística está impregnado pelo odor do ordinário da experiência – ainda que não
esteja tratando experiência como sinônimo de sensação. Até porque, assim como Wittgenstein não é ele
mesmo mas a variação sobre o tema da relação mundo/sentido, o termo
experiência é também uma contraposição a si mesmo. Afinal, como já dito, não se
trata de uma relação entre significante e significado mas aquilo que eu disser que é. E nisso não se infere qualquer
autenticidade maior ao que acontece no âmago da sensação, independente se é ou
não próprio à experiência mística. Se é dito, é um jogo de linguagem e sua
referencia pertence a uma outra dimensão que a linguagem não opera ainda que
possa indicar – sem fazer remissão ao objeto da experiência. É assim que
reencontramos Michel de Certeau que, ao afirmar da linguagem social da mística aponta para a sociação que ativa
elementos do discurso que façam da experiência mística algo distinto do ensandecido,
louco ou infantil. Para a economia da mística, obviamente, dado que para um
libertino todos estes qualificativos são, por fim, sinônimos. Mas não chegamos
lá, ainda.
A nomenclatura, isto é, esta forma de
fazer fazer[1] no
entorno da experiência como conceito –
como mera palavra em disputa – apresenta uma face bipartida na sua versão
alemã. Na verdade é na fortuna germânica que uma distinção analítica atinge a
maturidade de um vocabulário específico em que é possível fazer remissão à
experiência e, de outra forma, a consciência de experiência. Dentro e Fora são encenados por Erlebnis
e Erfahrung:
“Erlebnis contém em si o radical de vida (Leben) e por vezes é traduzido como “experiência vivida”. Todavia, sendo um
verbo transitivo vindo a implicar a experiência de alguma coisa, Erlebnis é tomado também como a unidade
primitiva anterior a qualquer diferenciação ou objetificação. Normalmente
localizada no lugar comum das práticas não autorizadas do “mundo da vida” (Lebenswelt), pode também sugerir uma ruptura intensa e
vital com a fabricação da rotina quotidiana. Leben também pode sugerir a inteireza da vida de forma que Erlebnis conota em geral algo mais
imediato, uma variação pré-reflexiva e pessoal daquilo que Erfahrung poderia ser.” (Jay, 2006:11).
Por sua vez, Erfahrung é uma espécie de jornada perigosa (entabula conexões
tanto com Fahrt= jornada; quanto Gefahr=perigo) em que a noção e
experiência é articulada com a ação no tempo fazendo da mesma experiência algo
diversa, um acúmulo memorável de conteúdo. Portanto, sendo grosseiramente sumário,
a mística é o conteúdo da jornada perigosa, ruínas, o resto da gesta;
místico é aquele que vive a vida enquanto não é, ele mesmo, o perigo. Este se
transformou numa história em que é narrada uma variação do tema sobre a relação
entre pureza e perigo.
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