terça-feira, 6 de maio de 2014

Notas desde atrás do muro: os espaços da fé e território como problema de teologia política.

-->
-->
-->
CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, I: XVIe-XVIIe siècle.  Gallimard. Paris. 1982.
________________________. Le lieu de l’autre : histoire religieuse et mystique. Gallimard/Seuil. Paris. 2005.
________________________. La Fable Mystique, II : XVIe-XVIIe siècle. Gallimard. Paris. 2013.
-->
DUBY, Georges. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. Edições 70. Lisboa.1982.
KANTOROWIKZ, Ernst Hartwig. The King’s to bodies: a study in mediaeval political theology. Princeton. Princeton. 1997.


8-
            Nos escritos de Michel de Certeau podemos encontrar três momentos privilegiados onde o conceito de mística são devidamente discutidos e apreciados. Em primeiro lugar, e mais obviamente, nos dois volumes publicados de La Fable Mystique – há previsão para a edição de um terceiro volume, igualmente organizado por Luce Giard. O terceiro momento, em verdade publicado entre as publicações do primeiro (1982)  e segundo volumes de Fable Mystique (2013, póstumo) é Le lieu de l’autre – histoire religieuse et mystique (2009). O que pretendo fazer daqui por diante é retomar mais detidamente o problema posto pelo historiador jesuíta quanto a definição paulatina da mística como ciência e discurso – um e outro extensíveis ao problema da administração da vida alheia, isto é, referendáveis a alguns problemas modernos da arte de governar. Resta saber, contudo, se o caminho de volta é possível e se o que volta de lá é, de fato, a lei.
            Na passagem em que Michel de Certeau introduz o tema do erotismo do Corpo-Deus na introdução do primeiro volume de La Fable Mystique, vemos a menção a um tema muito caro a uma certa etnologia americanista de orientação clastriana: a questão do Um. Acabara de falar sobre a quadratura a partir da qual a mística seria abordada (a partir de uma nova erótica; de uma teoria psicanalítica; de uma historiografia; a partir da fábula, a remetendo ao problema da oralidade e da ficção).  E é justamente a partir da dimensão erótica que a questão do Um irrompe como problema, isto é, de Deus como Único objeto de amor.

            Malgrado todas as invenções e conquistas que este Ocidente do Único (a queda do antigo Sol do universo instaurou o Ocidente moderno), malgrado a multiplicação das artes permitindo que se jogasse com presenças em vias de desaparição, malgrado a substituição do que Falta por uma série indefinida de produções em série, o fantasma do único sempre dá as caras. Mesmo as possessões se articulam sobre qualquer coisa de perdido. É assim que don Juan, perseguindo suas conquistas com desenvoltura, mille e tre, sabe que as mesmas repetem a ausência da única e inacessível “mulher”.”(1982:13)

            O que desponta como diagnóstico é a sintetização do desejo no objeto desejado como unidade, isto é, a despeito da variedade disposta em séries demonstrativas que começa a definir aquilo que é a aventura moderna do discurso, a manifestação do desejo retorna ao único amor, ao desejo a ser desejado acima de todos os desejos. Deus ou, no caso de don Juan, A Mulher, a mesma que aparecerá mais adiante como encarnação do popular em La Sorcière de Jules Michelet. Em alguns momentos Michel de Certeau é agressivo na adesão da tese de que a modernidade é um período cuja tecnicização impacta rapidamente o universo religioso e que, ao mesmo tempo, este é o momento em que aquilo que virá a ser chamado de ciência moderna – nem tão científica assim, ainda que profundamente moderna – reconstitui os espaços da vida religiosa na forma da racionalização. O redimensionamento, vale dizer, não é feito necessariamente fora do seio da Igreja Católica. Na verdade, em grande parte é exatamente o contrário. Difícil não considerar o papel do cardeal Richelieu no que poderíamos chamar de modernização da França quando estamos, no limite, falando da invenção da França tal como a conhecemos. Desde a construção da primeira cidade planejada da história, exatamente Richelieu, vizinha de Loudun, até o papel como condutor do novo universo científico trazendo para perto de si figuras como Fontenelle e Renaudot. Qual seria o tamanho do abuso da razão ao colocar a França, esta gestada no alvorecer da modernidade, como manifestação do erotismo em que passando os olhos, de francês em francês o que se busca é, inutilmente ainda que com alguma eficácia, a “França”, a “Mulher”, “Deus”?
            Este que é claramente um fantoche, uma provocação a partir da erótica tem desdobramentos mais graves quando consideradas à luz da teologia política, isto é, a consideração de que o exercício do discurso teológico traz no seu seio um tipo de manifestação característica da vida política: a declaração da inimizade, ou seja, de guerra (Taubes, 1999). Ao considerar a relação entre desejo e mística por via do erotismo, Michel de Certeau cumpre o itinerário da encarnação do verbo cuja remissão à eucaristia vê narrada na mesma modernidade clássica sua redução ao simbolismo da transubstanciação.

            A palavra, escrita mas indecifrável,  é deixada fora desse corpo para o qual um discurso erótico se põe não obstante em busca de palavras e imagens. Ainda que a eucaristia (lugar central deste deslocamento) fizera do corpo uma efetuação da palavra, o corpo místico deixa de ser transparente aos sentidos vindo a se opacificar deixando a cena muda própria de um “je ne sais quoi” que o altera, um país perdido igualmente estrangeiro aos sujeitos falantes e aos textos de uma verdade.” (1982:15)

            Não é sem consequências que a sugestão do deslocamento do corpo se dá. Não sendo somente o local em que o corpo se faz presente – não somente o do fiel, mas aquele de Jesus Cristo -, a comunidade eucarística que se desdobra do corpus  mysticum fundamenta a analogia que faz operar a política medieval destituída pela nova ordem monárquica.

            O conceito de Igreja como corpus Christi remonta, obviamente, até São Paulo; mas o termo corpus mysticum não se ampara na tradição bíblica sendo bastante mais recente do que se poderia imaginar. Se tornou preeminente em primeiro lugar na era Carolíngia vindo a ganhar importância no curso da controvérsia sobre a Eucaristia conduzida por muitos anos por Paschasius Radpertus e Ratramnus, ambos do monastério de Corbie. Em uma das ocasiões, Ratramnus salienta que o corpo no qual Cristo sofrera fora o seu “mesmo e verdadeiro corpo” (proprium et verum corpus) enquanto o Eucarístico seria seu corpus mysticum. Talvez Ratramnus pousasse sua autoridade em Hrabanus Maurus, quem dissera certa vez, pouco tempo antes, que dentro da Igreja o corpus mysticum – significando a Eucaristia – era administrado pelo ofício sacerdotal.” (Kantorowikz, 1997:196)

            A administração da liturgia, indica o trabalho de Ernst Kantorowikz, se desdobra em uma metáfora originária em que a comunidade dos ofícios da cristandade será posta sob o signo do conceito de Eucaristia – o que é, em grande parte e guardadas as desproporções, a tese original da antropologia social vitoriana, em especial nos trabalhos de James Georger Frazer, William Robertson Smith e, mais adiante, Anthony Maurice Hocart. De corpo místico à corporação mística em que a Eucaristia se traveste em formas jurídicas, dado ser este o ambiente em que a ordem tripartite do Estado feudal guarda para o exercício do clericato (Duby, 1982). Que não se considere a sugestão de que o desdobramento do corpus mysticum se origina de uma metáfora seja um exagero. E aqui me permito citar um parágrafo ainda mais extenso, do mesmo Kantorowikz, com a finalidade de orientarmos melhor o desenho ascendente a que se presta  a ordem estatal e sua primeira forma orgânica:

            Aquinas, to be sure, was still fully aware of the fact that the mystical body really belonged to the sacramental sphere, and that corpus mysticum was to be set over against the corpus verum represented by the consecrated host. Even he, however, spoke of both bodies – the true and the mystical – without reference to the Eucharistic bread. In his teaching, the “true body” repeatedly signified not all the Eucharistic Christ of the alter but Christ as an individual being, physical and in the flesh, whose individual “body natural” became sociologically the model of the supra-individual and collective mystical body of the Church: corpus Christi mysticuym… ad similitudinem corporis Christi very. In other words, the customary anthropomorphic image comparing the Church and its members with a, or any, human body was sided by a more specific comparision: the Church as a corpus mysticum compared with the individual body of Christ, his corpus verum or natural. Moreover, corpus verum gradually ceased to indicate solely the “real presence” of Christ in the Sacrament, nor did it retain a strictly sacramental meaning and function. The individual body natural of Christ was understood as an organism acquiring social and corporational functions: it served  with head and limbs, as the prototype and individuation of a super-individual collective, the Church as corpus mysticum.” (Kantorowikz, op.cit.:201).

            É do próprio Tomás de Aquino a fórmula corpus Ecclesia mysticum, desdobramento da analogia de corpus Christi mysticum que só faria sentido na administração dos sacramentos. Esta série que se desdobra da metáfora com o corpo de Cristo culmina na secularização a noção do corpo místico traduzindo o idioma litúrgico para o jurídico. Secularização aqui, no sentido estrito do termo, posto a serviço do século. Não é outra a fonte da abstração que correlaciona a pessoa mística com a pessoa fictícia (persona repraesentata/ficta; pessoa feita, isto é, em analogia com a noção de Pessoa). E não é outra pessoa senão a mística a que se desestabiliza como fonte de analogia na constituinte do poder monárquico. É para ela que aponta a erótica que serve como primeiro plano da quadratura da mística de Michel de Certeau. (1982, 15). O segundo elemento da quadratura aponta a direção na qual se dá a desestabilização: o universo psicossomático da psicanálise.

Nenhum comentário: