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segunda-feira, 12 de setembro de 2016

11 de setembro

Antes do meio-dia; fotografia de Curvelano
Sei que já disse isso, mas hoje o dia acordou cedo. Já é seu hábito mais visível levantar-se com as galinhas sem sequer se perder quando Valdécio faz a cabidela. Acorda do mesmo jeito, o dia, o sol.Quando afoito mancha todas as reses, o chão, com sombras escuríssimas que fazem gemer o telefone, cortando o sinal de emissão das microondas domesticadas a ponto de mal sabermos outra coisa que não quanto tempo se passou desde que o tempo deu um tempo, desde quando acabou janeiro.

Bem sei que prenderam gente, que foi o povo de cinza, coturno e borracha. E mesmo que é um dia 11, mais uma vez, em setembro - setembristas. Mas o calendário mesmo é

Janeiro sim
Janeiro não.


Hoje é
janeiro não.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

A ESQUERDA NOS TERMOS DA DIREITA

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DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rocco. Rio de Janeiro. 2000.
FABIAN, Johannes. O tempo e o outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Vozes. Petrópolis. 2013.

1- Louis Dumont escreve que, no que diz respeito às relações de oposição, complementares porque submetidas a uma hierarquia, demanda que os mesmos pares de oposição sejam postos segundo sua dada organização. Os opostos diferem em natureza, antes de mais nada, fazendo com que um dos termos seja determinado pelo outro par, superior. Nisso, à luz de seu Homo Hierarquicus, "uma vez atribuídas certas funções à mão esquerda, a mão direita, embora mantendo-se superior no conjunto, será secundária quanto ao exercício dessas funções". A proposição é, a seu modo, tomista. Ele mesmo deixa anotado em uma nota de rodapé, a de número 33 do ensaio sobre o valor nos modernos e nos outros. Disto segue a passagem que afirma, seguindo o diagnóstico do desencantamento, ou desvalorização do mundo, perpetrada pelos modernos que:

"A questão dá-nos também uma indicação quanto ao modo como nós, modernos, conseguimos esvaziar a ordem em que as coisas são dadas. Com efeito, não deixamos de ter uma de ter uma mão direita e uma esquerda, e de estar relacionados com o nosso corpo, assim como com outros todos. Mas nos tornamos tolerantes em relação aos canhotos, de acordo com o nosso individualismo e desvalorização das mãos." (Dumont, 2000:256)

            Que me seja perdoado omitir quaisquer considerações da coincidência brutal - e talvez concreta - do que Dumont chama de moderno com o que é reconhecível como liberal, posto em termos muito próximos de François Guizot, por exemplo. E também me omito a respeito de como a caracterização dos modernos, em uma série de afirmações desdobradas de estudos de caracterologia, mesmo que oriundos da matriz ortodoxa de Clyde Kluckhohn, se fia naquilo que os modernos dizem fazer e, em nada naquilo que os modernos (liberais, sejamos claros) fazem fazer. O que é, para mim, digno de nota, é como a tábua de salvação deste argumento no que diz respeito ao seu componente ético - e que encontra eco exatamente no desespero de Leszek Kolakowski - reside na especificidade moderna da tolerância com a mão esquerda que, compreendamos, viria por terra se a mão esquerda viesse a transformar as regras da oposição. Nada garante, na verdade, bem ao contrário, que a mão direita seja alvo do exercício de uma tolerância qualquer.
            O problema é que a tolerância, tal como expressa, é em si a própria negação de coetaneidade (Fabian, 2013). E talvez esta seja uma forma de rediscutirmos o ensaio denso e cheio de implicações de Louis Dumont que é, antes de mais nada, um elogio do liberalismo como ponto arquimediano do procedimento comparativo posto como o miolo da exceção moderna que, dentre as diversas características, exerce tolerância na aplicação dos valores. 

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

sábado, 31 de janeiro de 2015

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.


 
TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. Les empêcheurs de penser en rond/Seuil. Paris. 2001.


12- A sociedade como um grupo de pessoas que se entre-imitam e contra-imitam;  a matéria como extensão mediadora com propriedades ondulatórias específicas; e então, a estatística. Eis a ciência com dotada de capacidades de “1º determinar a imitação potencial própria de cada invenção em um tempo e país específicos; 2º, mostrar os efeitos favoráveis e produtos alimentados pela imitação de cada um, e por conseguinte, de influenciar aqueles que terão conhecimento destes números, segundo o pendor em seguir ou não tal ou qual exemplo.”(Tarde, 2001:170). Uma caricatura feita algo de improviso, trata-se de uma meteorologia intra-escalar em que é possível escolher entre ser e sofrer a tempestade; entre inundar e ser inundado; entre secar e ser seco. É possível, em tese, ser perigoso, evitar o perigo, ou assumir certos riscos – neste caso, a única forma em que o risco de ser perigoso diminui em alguma medida.  De forma definitiva, constatar ou influenciar as imitações, eis todo o objeto das pesquisas do gênero que, todavia, participa do empreendimento de intuir o tempo futuro. E aqui o paralelo entre arqueologia e a estatística feita por Tarde merece atenção, dado que cada uma delas visa atingir o ponto em que tudo se transforma em indistinção do ponto de vista da outra.
            A arqueologia, a mesma que oferece horizonte da antropologia de Tylor, busca o detalhe individual da forma, um complexo restrito de um movimento morto que somente ressoa por via de fragmentos, ou de um mesmo ou de vários objetos que sugerem a relação invenção-imitação da enorme cadeia difusora do globo terrestre. Ao chamar o perfil estatístico de curva hieroglífica, Tarde sugere que a relação do estatístico com a curva derivada dos dados que descrevem o nexo invenção-imitação em um dado eixo de espaço e tempo é da quem se relaciona com um dado arqueológico. As curvas são “pitorescas e bizarras como o perfil das montanhas” e, com maior frequência, “sinuosas e graciosas como as formas da vida” vindo a induzir àquele que a decifra uma noção aproximada de tempo futuro.

            As linhas das quais trato são sempre ou montantes, ou horizontais ou descendentes, ou bem, se são irregulares, sempre se pode decompô-las da mesma maneira em três sortes de elementos lineares: escarpados, platôs e declives. Foi a partir da escola de Quételet que o platô serviria como estadia eminente do estatístico pois sua descoberta seria seu triunfo mais belo, devendo ser sua aspiração constante. Nada mais adequado na fundação da Física Social que a reprodução uniforme dos mesmos números, não somente os de nascimento e casamentos, mas de crimes e processos durante um período de tempo considerável. Daí a ilusão (dissipada, é verdade, depois, pela derradeira estatística oficial sobre a criminalidade progressiva do último meio-século) de pensar que os últimos números se reproduzirão efetivamente e com uniformidade.”(Tarde, 2001:173)

            Esta reflexão, que não parece apontar para outra coisa senão para hábitos de pensamento adquiridos pelo efeito tranquilizante de uma linha que aponta para o futuro, recupera o caráter de erro de atribuição que tantas vezes já visitamos aqui e que parece inescapável. No caso é a uniformidade do desenho, o platô que não termina pois o limite da curva é o tempo presente, sugere na mente do estatístico, que está procurando se haver com leis da regularidade, uma constante elaborada na forma de tendência ou probabilidade acentuada. Mas este não é outro senão o seu efeito, igualando a forma com o dado – mais uma vez, produzindo uma zona, uma região de indiferença. Isto porque o artefato que desenha a ordem numérica de propagação é ele mesmo um artefato de propagação e um dado difusor da imagem.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.

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ANDRIOPOULOS, Stefan. Possuídos: crimes hipnóticos, ficção corporativa e invenção do cinema. Contraponto. Rio de Janeiro. 2013. 

DELEUZE, Gilles. A lógica do sentido. Perspectiva. São Paulo. 1999.

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TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. Les empêcheurs de penser en rond/Seuil.
Paris. 2001.

TYLOR, Edward Burnett. Primitive Culture: researches into the development of mythology, philosophy, religion, language, art and custom. John Murray. Londres. 1873 [1871]


10- A figuração do primitivo, do selvagem não se dá sem que lhe seja circunscrito seu ambiente propício com relação ao qual não cabe qualquer unanimidade. Afinal, ao primitivo pode ser reputada uma enorme distância, uma enorme diferença na constituição de sua raça, de seu espírito e, todavia, pode se mover num átimo para encarnar no vizinho ao lado. Não basta, obviamente, reduzir o diabo da selvageria a uma mera disputa em que o selvagem é categoria de acusação, o que parece ser suficiente desde uma certa sociologia em que os hábitos adquiridos servem como fatores suficientes de distinção. Há uma outra dimensão relativa a este universo na qual atenta-se para a possibilidade do selvagem atender ao chamado que o vocábulo transmite. Se o selvagem responde ao apelo feito por terceiros, à selvageria.
            Entendendo que a linguagem em seu estado primitivo carrega, segundo a tese de Tylor (e De Brosses) numa mimese de caráter onomatopaico-imitativa, a figura do primitivo como imitador é extremamente sugestiva, para não dizer que é definitiva na imaginação a respeito do tema em diversas inventivas produzidas desde o alvorecer da sociedade industrial. De uma forma ou de outra, a configuração da língua em estado selvagem caracterizada como sentido em um estágio imitativo, isto é, possuído pela coisa sem que possa operar como propriamente como linguagem, mas como uma dimensão reduzida da mesma. Afinal, grande parte da caracterização da linguagem em seu caráter evolutivo se presta ao acompanhamento da ampliação da capacidade abstrativa que ela opera vindo a conseguir atingir propriedades combinatórias de mais a mais sofisticadas. O primitivo parece ser aquele que, à forma dos idiotas dos monastérios e da idiotia de uma forma geral, não exerce cidadania neste território e que, estando sujeito à tutela de outrem, age como se estivesse fora de si. Possuído.
            O livro de Stefan Andriopoulos (2013) oferece, no que tange ao tema da possessão, algo tão sintomático quanto interessante porque demanda um esforço um tanto quanto contra-intuitivo pois não participa compartilha do hábito em remeter os problemas relativos à possessão ao material oriundo de viagens de exploração ou outras fontes das pesquisas etnológicas. Isto quer dizer que ao fazer, aponta para uma outra direção, o que parece mais ou menos obrigatório quando o tema é nada mais, nada menos que a sujeição a uma vontade alheia, o tema clássico das teorias da dominação expressas, primeiramente, no domínio do direito processual criminal. Isto porque, como bem sabemos desde a consolidação da moral libertina, toda ação de tipo direct symbol (Tylor, 1873) implica um símbolo diretor, em geral articulado por um mediador sacerdotal que assume funções políticas – com ênfase no termo funções, pois faz parte de um dos planos em que a linguagem funcional localiza a religião; o outro é, como se sabe, a teoria do conhecimento.
            Em grande parte, a sociologia e o pensamento social de uma forma geral repercutem em grande parte este tipo de preocupação relativa às agências invisíveis de pessoas jurídicas conformadas em crimes de responsabilidade cujo enquadramento legal é sempre tão escorregadio, especialmente no que tange os efeitos das pessoas jurídicas e demais pessoas de ficção.

            Quando o estudo sociológico de Durkheim intitulado As formas elementares da vida religiosa (1912) descreveu o “mana” como uma “força difusa e anônima” – a um tempo ubíqua e intangível -, o texto durkheimiano formulou, concomitantemente, uma teoria social que era pertinente não apenas às sociedades “primitivas”, mas também aos modernos agregados corporativos e seus efeitos nas pessoas físicas. Durkheim enfatizou que as forças de coesão social funcionam através de “mecanismos psíquicos” complexos que não são externos ao sujeito, mas o captam por dentro. Depois de participar de diversos experimentos hipnóticos, o pobre sapateiro Mollinier acreditou estar sob a influência irresistível de um ser estranho e invisível. Ao mesmo tempo, o jurista von Gierke descreveu a “vida psíquica” do membro da corporação como “determinada pela força abrangente de um agregado espiritual organizado, que funciona dentro do indivíduo”. Como declarou Durkheim, com imagens semelhantes às alucinações de Mollinier e à conceituação gierkiana do membro corporativo “possuído”: “Visto que a pressão social se faz sentir por meio de canais mentais, era fatal que ela desse ao Homem a ideia de que existem fora dele uma ou várias forças, morais, poderosas, à quais ele está sujeito. Dado que tais forças lhe falam em tom de ordem e, vez por outra, até o mandam violar suas inclinações mais naturais, o ser humano estava fadado a imaginá-las externas a si mesmo””. (Andriopoulos, 2013:17-18).

            O que Andriopoulos afirma é que as formas de descrição de coesão social, uma das funções basilares da moral na qual a religião fora convertida, em geral são veiculadas pela fórmula de uma força externa que entra em nós – no que pese a devida locução do sociólogo com seu leitor. Gabriel Tarde também produz uma figura particular na qual o homem social é sonâmbulo cujo estado hipnótico é própria às formas de sonho que se correspondem às teorias médicas da Escola de Nancy, plano no qual não há distinção entre sociedades modernas e primitivas. Neste ponto, o argumento de Tarde interessa de sobremaneira, pois ao traduzir o problema por via de uma indiferença – ou equivalência - relativa entre modernos e primitivos, o termo problemático é, obviamente, o de sociedade.

            Diríamos então, agora e com uma largueza ainda maior, que uma sociedade é um grupo de pessoas (gens) que apresentam entre si grande quantidade de semelhanças produzidas, ou por imitação ou por contra-imitação. Isto porque os homens se contra-imitam bastante e sobretudo quando não tem a modéstia de simplesmente imitar e tampouco a força para inventar; no ato da contra-imitação, isto é, tanto ao fazendo e dizendo precisamente o que fazemos ou o que dizemos acerca deles, ambos seguem se assimilando cada vez mais. Após a conformação dos usos correlatos a velórios, casamentos, cerimônias, visitas, polidez, não há nada de mais imitativo que lutar contra o seu próprio pendor de seguir essa corrente e com efeito, subi-la. Na idade média mesmo, a missa negra nasce de uma contra-imitação da missa católica. – Em sua obra sobre a Expressão das emoções, Darwin estabelece, com razão, um grande espaço à necessidade de contra-exprimir.”(Tarde, 2001:49)

            Tarde oferece, assim, a imagem que correlaciona a imitação à ondulação dos corpos brutos oferecendo assim uma noção pela qual a sociedade como corpo de imitações age por propagação, e não por reprodução como determina, por exemplo, a concepção de comunidade moral presente na sociologia de Durkheim. A imitação é uma geração à distância (Tarde, 2001:94) da mesma forma que a matéria que medeia é condutora da relação posta cuja distância é tão variável quanto variam as propriedade do sinal emitido e dos meios pelos quais o sinal se propaga. Neste sentido a lógica que opera é a mesma lógica da difusão cujos rastros tento perseguir, tão importante para que o fetiche seja condutor de um tempo propriamente arqueológico no qual possa carregar as marcas do tempo de sua origem permitindo datar a distância que o tempo e seus modos impõe.
            O caso é que difusão, seguindo as orientações de Tarde, é uma outra coisa – o que culmina em dizer que são outras coisas que produzem difusão; é uma outra noção de objeto portador de diferenças. Assim, um dado objeto não é índice de uma diferença que traduz uma proximidade maior ou menor com a origem, mas signos da extensão de uma ressonância que segue eficaz – como no que escreve sobre os manuscritos da República de Cícero em que é ressaltado o processo químico-histórico que conduz o documento até o presente momento (1890, no caso) que participa plenamente do desejo de imitar a grandeza do mesmo Cícero. É a permanência, ou mesmo a insistência (Deleuze, 1999) de Cícero num manuscrito que está em questão, transformando o fetiche paulatinamente em outra coisa e, com isso, localizando o primitivo em outras paisagens.

domingo, 14 de dezembro de 2014

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.

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REICHLER, Claude. L’age libertin. Minuit. Paris. 1987.

STRATHERN , Marilyn. Fora de Contexto: as ficções persuasivas da antropologia in O efeito etnográfico. Cosac & Naify. São Paulo. 2014.

TYLOR, Edward Burnett. Primitive Culture: researches into the development f mythology, philosophy, religion, language, art and custom. John Murray. Londres. 1873 [1871]


9- Claude Reichler, historiador e crítico que redigiu L’age libertin, publicado pela Minuit em 1987 faz uma censura severíssima ao exercício que pretendia fazer e que, todavia, o fiz. Esta longa exposição a respeito do estabelecimento do conceito de fetiche por Charles De Brosses se trata, no final das contas, de um desdobramento da citação elogiosa que Tylor emprega em seu Primitve Culture, no capítulo sobre linguagem emocional e imitativa. Num lapso chego a sugerir que há algo de libertino no argumento de Tylor. Ora,

Après Sade, après la Révolution, il n’y a plus de libertins ; avant les philosophes padouans, avant Calvin, il n’y en a pas encore. Mais, à l’intérieur des limites étroites de ces quelque deux siècles, quelle dispersion, que ensemencement de champs divers, quelle multitude de manifestations ! A ma connaissance, aucune hypotèse n’a pas encore été proposée, qui permettrait d’expliquer la brève durée historique et la prolifération des témoignages dans la socio-culture. » (Reichler, 1987 :08)

Esta seria, portanto, a hipótese do livro que defende haver uma antropologia libertina radical que não fora transmitida para além do processo revolucionário e que qualquer reminiscência libertina não se daria senão pela forma de ruínas; ou, digamos, sobrevivência. Acho que teremos que nos contentar com isto ou, mais do que qualquer outra coisa, sentir algum alívio por Tylor ser de alguma forma uma prova viva de seu próprio argumento. Se eu for seguir com a trilha que nos levaria à sua antropologia libertina, não o faremos senão na forma de uma trilha falsa ou então em quem comete um erro de atribuição torcendo para com isso ajudar a preservar alguma coisa. Mas me pergunto se ao fazer o exercício de considerar algum grau de libertinagem em Tylor, cometeria algum tipo de abuso real. Vejamos:

Para a antropologia libertina o homem é, essencial e historicamente, um sujeito de representações. Submetido à todas as intimidações e intimações dos poderes exercidos sobre ele: religiosos, políticos, culturais e morais. O pensamento libertino é uma filosofia prática que, ao definir o humano tem como meta agir sobre ele. Se o homem é um sujeito impedido de usufruir seu desejo o que ele pretende é que se possa libera-lo das representações que o alienam. Antes de 1623 os libertinos exprimem enfaticamente este objetivo; e em torno de duzentos anos mais tarde Sade, por meio de suas narrativas e especulações filosóficas, repreende literalmente o diagnóstico e os objetivos, ainda que as fontes da obstinação da filosofia libertina se façam presentes. A história da libertinagem é a história deste pensamento de libertação tomada a partir da realidade do corpo e dos liames sociais. Confrontados com o recrudescimento político e religioso sob Richelieu no controle do Estado e dos indivíduos, na manipulação dos símbolos e representações, os libertinos tiveram que se constranger a se libertar sob a máscara da submissão. Sabidamente castigados, sua reivindicação parece se perder; e de fato, ela es infiltra se esgueirando pelo subsolo e se apodera de grandes espaços de vida.”(Reichler, 1987:09)

Não tenho nenhuma pretensão, aqui, em provar ou defender a tese de que Tylor é libertino. Na verdade, convém ainda mais que ele seja, como o diria o mesmo Reichler, um pseudo-libertino que traga de volta à vida traços particulares do pensamento e prática libertinas que, por alguma razão, deixaram de vigorar de pleno direito. Ora, se formos levar em conta que o momento auge libertino se erige em confronto com as marcas mais agressivas do absolutismo monárquico que é, para além de qualquer coisa, a teologia política transformada em Estado em vias de modernização, é de se esperar que o cataclismo revolucionário tenha varrido não somente as instituições fundamentais de uma certa cristandade no poder, mas também as peças que se moviam em movimento contrário. Se existem libertinos após a revolução, e Tylor é um deles, os mesmos os são na condição de médiuns; difusores que falam com a poeira dos arquivos. Mesmo que se diga que o triunfo revolucionário coloca a libertinagem, ou a imoralidade, no poder – a alternação depende da acusação -, é algo ingênuo pensar que a mudança na estrutura das relações afeta somente um dos termos. Quanta diferença existe entre as duas atitudes: o libertino que dissimula publicamente o golpe que pretende dar e que para falar sobre o seu desejo, o traduz na linguagem do poder eclesiástico-temporal; o evolucionista que silencia o argumento teológico em público e traduz a vida do espírito na linguagem sensualista reduzindo a linguagem eclesiástico-temporal à ordem das funções orgânicas só pode ser, portanto, libertino em parte ou, de uma outra forma, uma sobrevivência da libertinagem.
Mas as sobrevivências culturais tem um objeto específico, dado que se remetem às superstições que são, igualmente, alvo das investigações de De Brosses, este libertino de pleno direito. Não convém, e não é o objetivo destas notas, dizer que a moral libertina seja necessariamente uma superstição. Contudo, o espectro do conceito de sobrevivência cultural se remete a permanência de fórmulas de ação simbólica que, remetidas aos hábitos que recebem a designação de tipo direct symbol, não tem valor prático algum que não seja a própria repetição da fórmula – acusação que recai sobre os ombros das ciências ocultas do século XIX, por exemplo. Se as superstições são falhas na associação de idéias, como lidar então com as sobrevivências que são, no mais das vezes obstruções ocorridas no seio de civilizações no que concerne a história das idéias?

The principal key to the understanding of Occult Science is to consider I as based on the Association od Ideas, a faculty which lies at the very foundation of human reason, but in no small degree of human unreason also. Man, as yet in a low intellectual condition, having come to associate in thought those things which he found by experience to be connected in fact, proceeded erroneously to invert this action, and to conclude that association in thought must involve similar connexion in reality. He thus attempted to discover, to foretell, and to cause events by means of processes which we can now see to have only an ideal significance.” (1873:104)

A mancha semântica do associacionismo é marcante aqui, na qual a discussão industrialista se encontra com a moral libertina na qual a correta associação entre idéias tem respaldo na mais adequada associação entre pessoas, criando um espelhamento produtivo entre organização social  e sistema de representações a respeito da vida social e da natureza. Proceder de forma equivocada implica em não associar as idéias com os fatos, entendendo que os fatos tem uma certa natureza que não se restringem à escala e dimensão da sensação produzida por um  dado evento. Recusar os procedimentos de investigação empírica é o equivalente a pedir asilo na terra do fetichismo pela insistência na prática de toda sorte de superstições.
Há no argumento de Tylor, assim como em todo o debate a respeito das superstições com relação ao qual os libertinos foram vanguarda no século XVII, uma problematização dedicada das artes divinatórias – o mesmo tipo de arte que fez com que Agostinho de Hipona, em favor do livre arbítrio, veio modular o presente intuitivo em 3 modos em favor da atenção como forma de antecipação. O trecho que pretendo ressaltar nos leva, obviamente a um argumento de tipo “vôo das andorinhas” que convém discutir com maior vagar pois uma antropologia da difusão das formas que presa não somente a produção de objetos (industrialismo) e o teatro das representações (fetichismo) como critérios de objetividade não pode se furtar de certos desdobramentos em que, por exemplo, Tylor encarne uma sobrevivência libertina ou que faça, por sua vez, da atividade antropológica uma forma de difusão cultural. Para além de uma discussão sobre os dados fora de contexto co-extensiva a Frazer, por exemplo (Strathern, 2014) os signos de tempos futuros carregam consigo a exata problematização em que determinação e probabilidade entram em conflito como agências temporalizantes. No caso em especial, das artes divinatórias, o ponto em questão é a idéia de que signos indiciários dizem respeito a um evento futuro e não meramente presente.
Se há fumaça, há fogo. Se na relação indiciária o que entra em questão é a contiguidade entre sinal e objeto, a crítica ao fetichismo como fórmula do mal-entendido, ou de um mau hábito de pensamento, está em extrapolar uma relação de contiguidade a toda uma cadeia causal maior e mais sutil. Este erro faz com que todos os que o cometam estejam, digamos, na infância da razão o que significa que a racionalidade e a irracionalidade são ambas potências de casa ato de juízo e que, com a finalidade do seu melhor desenvolvimento – Primitive Culture advoga em favor de uma antropologia do desenvolvimento – devem ser orientados segundo a ordem do método, a uma espécie de administração tutelar:

The Maori may give a sample of the character of its rules: they hold it unlucky in an owl hoots during a consultation, but a council of war is encouraged by prospect of victory when a hawk flies overhead; a flight of birds to the right of the war-sacrifice is propitious if the villages of the tribe are in the quarter, but if the omen is in the enemy direction, the war will be given up.”(Tylor, 1873:108)

O vôo do falcão é índice de um certo futuro emitidos desde o presente àquele que testemunha, transmitido desde alhures. A crítica que a antropologia contemporânea poderia fazer a esta passagem, e a todas as demais, culminaria em super-inflar o problema do contexto, fazendo com que os requisitos de uma teoria do conhecimento baseado no conceito de representação como duplo das séries empíricas apreendidas pelos órgãos dos sentidos e organizadas conceitualmente sofram de hipertrofia. Dito de outra forma, Tylor estaria agindo como os primitivos que ele classifica como tal ao isolar toda uma relação possivelmente complexa entre os maori e as corujas, considerando-a um erro de atribuição reduzindo causalidade às relações de caráter indiciário. Assim, relações de caça, orientação meteorológica, espacial que seguramente compreendem um complexo de relações entre corujas e maori – e o contrário – não estariam sendo considerados. Grande parte do esforço etnográfico comprometido com a temática do realismo da descrição etnográfica persiste na tarefa, para todos os efeitos ética, em descrever com vistas em dizer e comprovar que o primitivo vitoriano – algo semelhante ao religioso dos libertinos – não existe. Contudo, o primitivo é algo mais difícil de capturar porque ele sempre tende a ser alguma outra coisa.

sábado, 6 de dezembro de 2014

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.

TYLOR, Edward Burnett. Primitive Culture: researches into the development of mythology, philosophy, religion, language, art and custom. John Murray. Londres. 1873 [1871]

 
5- Se me permito repetir exaustivamente o termo pós-revolucionário, que não se compreenda contudo se tratar de uma espécie de cronologia de tipo fiat no qual, a partir de um determinado momento tudo é diferente. Este corte, que seguramente faz parte não somente da imaginação conceitual mas também da ordem dos eventos, não é exatamente o que pretendo chamar de pós-revolucionário. Se estou me valendo em grande parte da biografia e pensamento de reformistas mais ou menos radicais, como o são François Guizot, Vicor Cousin e Charles Renouvier, e os mesmos são epígonos de um momento que responde à tarefa, tanto auto-proclamada como parte de uma economia de relacionamentos, de tomar as rédeas de um enorme complexo político-intelectual; é porque esta tarefa corresponde a um problema em particular muito especial que é, nesta caricatura, o que compreendo ser a atitude pós-revolucionária por excelência: a mudança de hábitos.
Nunca é demais enfatizar que Tylor não é francês. E se for, o é à sua própria maneira. No entanto, é inglês, antropólogo cuja vida intelectual toma lugar na segunda metade do século XIX. Longe o suficiente e afastado o suficiente para que possamos desempossá-lo de qualquer relação direta com o exercício revolucionário de indiferença com o lugar a ser ocupado pela religião francesa. Eis o que uma precaução metodológica historiográfica recomendaria, isto é, talvez seja melhor deixar Tylor fora desta história. Contudo, as pretensões do modelo de antropologia que ele defende em seu Primitive Culture o habilita a sair de contexto, penetrar nas fronteiras outras e advogar contrariamente a toda e qualquer opinião que não reconheça o artificio do exercício comparativo da antropologia que opera, antes de mais nada, por analogias selvagens. Estas são analogias produzidas por selvagens; mas também aquelas analogias que se relacionam com voracidade selvagem; e por fim, analogias que produzem selvagens fora do ambiente de selvageria. Como tenho reiterado, uma região de indiferença que opera, em grande parte, como uma reserva de conservação. Eis aqui a dialética da mudança de hábitos que convém reconstituir, pois ela tem muito a dizer sobre os paradoxos da religião no universo após a Revolução Francesa, mesmo que por meio de alegorias.
Digamos que diante de uma posição ultramontana, Tylor estaria na frente inimiga, propriamente libertina. E com “libertino” eu quero dizer “ceticismo interessado”, restando com isso desvendar o objeto de interesse que, no caso se trata do pensamento religioso então tratado como opinião. E assim, a mudança de hábitos vista pelo prisma de Tylor é expressamente uma mudança de opinião sobre o estatuto da opinião. São, assim, muitas histórias que podem ser contatadas com vistas em relacionar a redação de Primitive Culture com a Revolução Francesa sem cometermos com isso alguma espécie fabulação vã. Creio que dois linhas narrativas merecem atenção, até mesmo para que possamos voltar ao momento Guizot com algum proveito. A primeira linha diz respeito à leitura de Tylor como libertino. A segunda diz respeito a Tylor como um leitor de Hume, o que significa ser um pensador da experiência, dos hábitos de pensamento, do ceticismo mitigado e, obviamente, da religião natural que é, antes de mais nada, para-doutrinária ou fundamentalmente heterodoxa.
Quero evitar aqui a polêmica a respeito da origem da linguagem, em especial com relação à teologia e o problema da linguagem adâmica. Seria um desvio enorme com pouco proveito para o momento em que o que se pretende a elucidação do desenho que se opõe à investigação com este teor. O quinto capítulo de Primitive Culture é dedicado ao problema da linguagem. Numa sucessão algo inebriante em que Tylor destila analogias entre música e linguagem, com precisão e estilo notáveis, o debate sobre a linguagem emocional e imitativa tem uma preocupação maior. Partindo da premissa de que a aquisição de linguagem se dá por processos associativos que partem de partículas elementares de forma a se desdobrarem em associações mais complexas, porque propriamente abstratas, o modelo antropológico em questão é fundamentalmente mimético. Mimético na medida em que todas as línguas então inspecionadas contém alguns traduzem sons articulados a partir de tipos de sons imediatamente naturais ou imediatamente inteligíveis – no caso, interjeições, fazendo com que Tylor possa ser incorporado na já extensa bibliografia a respeito dos atos de fala. O desenvolvimento filogenético da linguagem não são fruto de qualquer herança, mas do processo de aquisição no qual se dá a transferência (transdúctil?) do mundo dos sons para o mundo dos sentidos. Assim, a língua é um ente tão arbitrário quanto dedutível e, portanto, pertencente ao universo da cognição.

Like the pantomimic gestures, they are capable of conveying their meaning of themselves, without reference to the particular language they are used in connexion with. From the observation of these, there have arisen speculations as to the origin of language, treating such expressive sounds as the fundamental constituents of language in general, considering those of them which are still plainly recognizable as having remained more or less in their original state, long courses of adaptation and variation having produced from such the great mass of words in all languages, in which no connexion between idea and sound can any longer certainly made. Thus grew up from the doctrines of a “natural” origin of language, which, dating from classic times, were developed in the eighteenth century into a system by that powerfull thinker, the President Charles de Brosses, and in our own time are being expanded and solidified by a school of philologers, among whom Mr. Hensleigh Wedgewood is the most prominent.” (1873:146)

Deixemos o contemporâneo de lado. Quem nos chama a atenção é o libertino Charles de Brosses, este pensador poderoso que estabelecera as bases de uma linguística mecânica, isto é, materialista e, não menos, aquele que estabelecera o conceito de fetichismo. Presidente da Assembléia de Dijon é um ancestral respeitável dos antropólogos de gabinete – como eu, inclusive. Leitor de diários e relatos de viagens no percurso dos anos 1750-1760, é por via deste material, dentre os quais aquele redigido pelo missionário jesuíta Lafitau, que que suas diversas sumas histórico-etnográficas são escritas. Assim, para além de Lèttres familières sur l’Italie, De Brosses escreveu o Traité sur la formation mécanique de la langue – indicado por tantos, como Tylor, como primeiro tratado moderno de filologia – e Histoire des navigations aux terres australes. Neste que é um tratado de história da expansão colonial no oceano pacífico coube convir a primeira remissão às crenças selvagens (ou crenças dos selvagens) como fetichismo. E é a estrutura deste conceito que interessa aqui, tal como formulada por De Brosses uma vez que é nela que a região de indiferença recebe nome e geografia. Estamos falando, então, da Nigrícia.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.


 
CERTEAU, Michel de; JULIA, Dominique; REVEL, Jacques. Une politique de la langue: la Révolution française et les patois – l’enquête de Gregoire. Paris. Gallimard. 1975.
 
FRÉGIER, H.-A. Des classes sociales dangereuses de la population des grandes villes. Libraire Académie Royale de Médecine. Paris. 1838.

TYLOR, Edward Burnett. Primitive Culture: researches into the development of mythology, philosophy, religion, language, art and custom. John Murray. Londres. 1873 [1871]
 

4- Retomando: selvagerismo e barbarismo são regiões, não propriamente conceitos; são províncias carentes de sentido que exprimem, por sua vez, carência de sentido; como o são os bairros operários que serviriam, de alguma forma, de prova factual (matters of fact) das teses sobre a degenerescência da raça humana. Aqui não estaríamos falando, contudo, de Tylor cujo trabalho em grande parte trabalha na dissociação entre bárbaro e selvagem, e favor do segundo que por sua vez, tem os seus bárbaros também. No entanto, fica claro que a selvageria é compreendida, e aqui me repito, como uma região.  Vale a ressalva de que uma região não implica por sua vez uma distância, seja ela espacial ou temporal.

            What kind of evidence can direct observation and history give us to the degradation of men from civilized condition toward that of savagery? In our great cities, the so-called “dangerous classes” are sunk in hideous misery and depravity. If we have to strike a balance between the Papuans of New Caledonia and the communities of European beggars and thieves, we may sadly acknowledge that we have in our midst something worse than savagery. But is not savagery; it is broken-down civilization.”(Tylor, 1873:38)

            Permita-me, no entanto, que eu me corrija. Fosse uma errata eu diria: “em regiões, leia-se biomas” – ou environment.

            Thus, the savage life is essentially devoted to gaining subsistence from nature, which is just what proletarian life is not. Their relations to civilized life – the one of independence, the other of dependence – are absolutely opposite. To my mind the popular phrases about “city savages” and “street Arabs” seem like comparing a ruined house to a builder’s  yard. It is more to the purpose to notice how war and misrule, famine and pestilence, have again and again devastated countries, reduced their population to miserable remnants, and lowered their level of civilization, and how the isolated life of wild country  districts seems sometimes tending toward a state of savagery. So far as we know, however, none of these causes have ever really reproduced a savage community.”(Tylor, 1873:38-39)

            Convém recuperar, aproveitando o jargão inaugurado por Pierre Clastres e, fundamentalmente, Marshall Sahlins, a respeito da caracterização do selvagem como ser vivo em estado de carência. Se de alguma forma há analogia com o proletariado, o é no sentido rigoroso ainda que pese certa diferença constitutiva. Vejamos. O fato de haver alguma diferença entre selvagens e a classe operária (uma versão sob controle das classes sociais perigosas, que abrange todo tipo de gente) implica em dizer que uma possível degenerescência não é fruto direto da história humana como tal, mas de carências específicas produzidas ao longo do curso. Um exemplo disso é o que Frégier determina como sendo a falta de instrução o que faz do proletariado uma classe sociale dangereuse[1]. No limite, o que Tylor defende é que o barbarismo moderno não é imanente à condição humana em um determinado estágio evolutivo, mas um efeito marginal da civilização que os selvagens também produzem (“outcasts of savage life”, in Tylor, 1873:42). Civilizações específicas produzem marginais enquanto o progresso humano é, não somente inexorável, mas se dá em outras bases. O progresso é a marca da expansão (propagation) – e não algo como o desenvolvimento criativo – o que me leva a reconhecer que a excelência é fruto de um certo imperialismo, a saber aquele difundido pelo Império.

            As the evidence stands at present, it appears that when in any race some branches much excel the rest in culture, this more often happens by elevation than by subsistence. But this elevation is much more apt to be produced by foreign than native action. Civilization is a plant much oftener propagated than developed. As regards to the lower races, this accords with the results of European intercourse with savage tribes have survived the process, they have assimilated more or less of European culture and rise towards the European level, as in Polynesia, South Africa. Another important point becomes manifest from this ethnological survey. The fact that, during so many thousand years of known existence, neither the Aryan nor the Semitic stock appears to have thrown any direct savage off shot recognizable by the age-enduring test of language, tells, with some force, against the probability of degradation to the savage level ever happening from high-level civilization.”(Tylor, 1873:48)

            A distinção entre civilização e cultura, se retomarmos em parte as lições de Norbert Elias, que trafega pela região de indiferença, se dá finalmente por quem assimila os valores de excelência. A história do progresso dificilmente pode ser distinguida da história da tutela.


[1] Convém notar que o termo “classes sociais perigosas” que Tylor utiliza sem citação de fonte repete o título do estudo-panfleto de pedagogia de H.-A. Frégier publicado em 1838, que disserta sobre o melhoramento das mesmas classes sociais que põem a vida social em perigo. As preocupações de Frégier eram, antes de mais nada, de caráter policial uma vez que o mesmo era chefe da prefeitura do Sena (órgão policial). A apresentação dos limites da instrução pública em sua extensão com vista em atingir às populações mais pobres implica obviamente na proliferação de multidões emotivas uma vez que o uso da razão não lhes é impulsionado. Repetindo a fórmula de Geoffrey Sutton, não têm método, uma outra forma de dizer que não são suficientemente franceses – aquele que considerar esta fórmula abusiva, recomendável a leitura de Certeau (1975). Mesmo que Frégier não definisse as tais classes sociais por via do critério da ignorância, não seria difícil imaginar, especialmente após os processo revolucionário de 1879, quem poderiam ser e como são perigosas as classes às quais se refere. Um pouco de imaginação retórica permite imaginar ser desnecessário dizer quem são – da mesma forma que a solução apresentada diz respeito a uma determinada fórmula de tutela, aquela que emprega internatos públicos fortalecendo as ferramentas do Estado tutelar, o mesmo que se desdobra sobre os selvagens na diversidade da empresa colonial que fornece para Tylor seus dados e seus pesquisadores.

domingo, 5 de outubro de 2014

Matéria e Memória

"LEMBRA do auto-escárnio?
Pois é. Você matou."

- e você lê a sentença no silêncio em que é uma fórmula pela qual eu te acuso de algo.
- e você lê, só, em voz alta, e diz algo para si mesmo.
- e você lê em voz alta, bem ou mal acompanhado, e você acusa alguém.

E começa tudo de novo.


Lembra?

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Da experiência interior como política da escrita: parte dois


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BATAILLE, Georges. L’expérience intérieur. Gallimard. Paris. 2012 [1954].
______________________. Théorie de la religion. Gallimard. Paris. 2011. 
RANCIÈRE,  Jacques. Políticas da escrita. Editora 34. Rio de Janeiro. (1995)
_______________________. A noite dos proletários: arquivos do sonho operário. Companhia das Letras. São Paulo. 1988.


II-

            O percurso da emancipação operária não segue uma linha reta mesmo quando a trajetória se utiliza de casos individuais exemplares. Não que seja exatamente uma exceção, ainda que possa ser entendido como algo peculiar. O que é possível narrar são coisas feitas aos pedaços, como leitura interrompida porque extinguiu o feixe de luz, elétrica ou combustível; porque alguém lê no fim do dia o sono corta os olhos desse dentro desligando a vontade do seu suporte orgânico culminando no sono; ou simplesmente porque as coisas se dão integralmente em partes. Não estou falando de um impedimento real como algum tipo de censura premeditada mas de outra forma de circulação de edição de textos escritos, apresentados de forma decididamente heterodoxa com relação aos padrões savants. Rancière conta muitos casos, dado que é o arquivo operário que ele apresenta, e os casos são editados em cortes tão abruptos quanto o exercício de leitura apresentado no capítulo A Nova Babilônia.
            Estamos às voltas com as fantasias infantis de fuga e é a formação literária de Charles Pénnekère que chama a atenção. São seus devaneios que abrem a série de histórias dedicadas mais à deambulação operária do que às brincadeiras diversas traçando nos vôos mais irresponsáveis o desejo de aprender – até então compreendido como o negativo da ignorância. Isto porque foi por não saber responder à mãe quanto a paginação de uma determinada lenda, a de La Chapelle de saint Léonard que sua obsessão por constituir para si uma biblioteca se fez. Mas que se entenda que o universo do então pequeno morador da região compreendida entre Glacière e Saint-Marcel, em Paris. Nada de volumes inteiros que compreendam um argumento ou uma narrativa do começo ao fim. Nem mesmo uma história. A biblioteca fora, dados os recursos existentes, uma complexa coleção elaborada folha-a-folha – “aquelas tiradas das embalagens de alimentos consumidos no dia-a-dia” (Rancière, 1988:59). Abrimos aspas, tanto Rancière quanto eu, a Charles Pénnekère:

            Ficou combinado que minha mãe me guardaria os sacos que serviam para embrulhar os cereais que ela comprava. Ah! com que entusiasmo, voltando para casa, à noite, eu explorava esses tesouros dados como restos de discursos, como fragmentos de anais! E com que irritação chegava ao final da página rasgada sem prosseguir a narrativa, que nunca continuava na entrega seguinte que minha mãe me fazia e forma de sacos ou canudos, embora lhe tivesse recomendado para trazer as lentilhas sempre do mesmo comerciante.”(1988:op.cit.)

            E Rancière encerra aí a citação. Logo em seguida uma outra personagem nos é apresentada, Jeanne Deroin, costureira de roupas íntimas engalfinhada com os esforços mais elencados do que descritos na luta para se cercar dos “tesouros da ciência”. Tão rapidamente, o corte como a passagem acelerada de um dia para outro a segunda citação traz outra história parcial e Rancière se converte numa mão metodológica, a mesma de Charles Pénnekère que lhe trouxe lentilhas. O saco com qual carregava os grãos narrava toda uma outra história da qual nos desviamos pela obrigação imposta fisicamente pelo texto e sua ausência repentina.
            A narrativa implícita é dificultosa, dado que responde à inquisição sartreana sobre o que fazemos o que fizeram conosco. Se a temática das ruínas atravessa o tempo do materialismo compondo uma constelação[1] dispersa, esta mesma constelação narra a história moderna a partir do que resta dos outros, a forma presente do passado narrado à forma de uma história do futuro, um futuro que é hoje. As ruínas, sejam simbólicas ou restos empoeirados duramente cortejados por turistas contam a história da depredação do tempo e dos homens ao mesmo tempo em que revela pontos de acesso à fundação de toda arquitetônica, os cálculos e predileções que numa engenharia precisa, deixam a alma de pé. Mas se para a sabedoria que lê de capa à contracapa as ruínas são fruto dos eventos do século, para os leitores da Paris noturna do século XIX o que circula são as ruínas de um tempo de curtíssima duração que toma forma em páginas rotas cedidas gratuitamente para uma função secundária, a contenção de punhados de lentilha, um saco de papel que se transforma numa história interminável porque demasiado breve.
            A inversão da figuração do tempo histórico de tal ou qual duração é o fruto de um plano par arruinar a geração de equívocos sobre o povo guerreiro para o qual muito se fez esforço em converter o proletariado; o povo. Bravo e colossal e então determinado, para o seu próprio bem, à resistir à tudo e seguir sem medo em uma variação delicada das sagas sacrificiais. Os arquivos operários dos quais Rancière se nutre, o que se mostra nesta coleção de páginas rotas é que a busca determinada pelo devaneio operário-poeta de ilustração onívora que não se importa se o texto fora estabelecido por Ernest Renan ou se foi simplesmente jogado fora aos pedaços como papel de embrulho o põe na posição de alguém que pode querer assumir outro papel que não o da resistência. Até porque, neste caso a dor é na carne.

            Que a oficina possa ser pior do que a prisão, eis aí uma opinião que justifica, sem dúvida, todos esses discursos e histórias que moralistas, clérigos e leigos destinam à juventude popular, para descrever a dignidade quase burguesa daquele que tem um bom ofício e a miséria que conduz os pequenos entregadores e vendedores de fósforos, de papel de carta e outros pequenos negócios da ponte Saint-Eustache ao abandono e à vergonha das prisões.”(1988:62)

            Que seja o roubo a rota desviante do massacre diário do trabalho. A prisão ao invés da tortura de entregar a vida vendo no futuro um destino ainda mais fugaz que a história esquartejada com cheiro de lentilha. Ou será que não?

            Será simplesmente a natureza doentia do marceneiro poeta que o faz contradizer o que aprendemos em tantas fontes: o prazer do artesão ou do operário qualificado em ter nas mãos ou diante dos olhos o produto do seu trabalho inteligente – prazer perturbado apenas pela dor de ver tal obra escapar dele par ir engordar o tesouro dos exploradores?”(op.cit.:62)

            Resta então adentrar no mundo em que se come mal, em que o dia demora demasiadamente para terminar e que adia o aparecimento do patrão até o momento derradeiro, momento em que ele faz algo que não a imaginação torpe a respeito da espera ociosa do explorador.

            No mundo às avessas que toma pelo seu reino, o senhor é antes de mais nada um barulho de passos que afasta a alma do sonho da Terra Prometida para devolvê-la ao cativeiro. Ele incomoda porque impede de sonhar tranquilamente com os prazeres dessa boa organização onde ele não tem mais lugar. (op.cit.:69)

            E então irrompe a economia cenobítica aonde, creio, será possível passear pelas figuras da idiotia proletária de anos difíceis como os de sempre.


[1] Que conta com o ideologue Constantin Volney, o exuberante suicida Walter Benjamim e o ontologista da comédia humana Giorgio Agamben, sem deixar de lado as reflexões sobre as ruínas futuras ou planificadas do nazismo de Paul Virilio (Guerra e cinema).