BATAILLE, Georges.
L’expérience intérieur. Gallimard.
Paris. 2012 [1954].
______________________.
Théorie de la religion. Gallimard.
Paris. 2011.
RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Editora 34. Rio de
Janeiro. (1995)
_______________________. A
noite dos proletários: arquivos do sonho operário. Companhia das Letras.
São Paulo. 1988.
II-
O percurso
da emancipação operária não segue uma linha reta mesmo quando a trajetória se
utiliza de casos individuais exemplares. Não que seja exatamente uma exceção,
ainda que possa ser entendido como algo peculiar. O que é possível narrar são
coisas feitas aos pedaços, como leitura interrompida porque extinguiu o feixe
de luz, elétrica ou combustível; porque alguém lê no fim do dia o sono corta os
olhos desse dentro desligando a vontade do seu suporte orgânico culminando no
sono; ou simplesmente porque as coisas se dão integralmente em partes. Não
estou falando de um impedimento real como algum tipo de censura premeditada mas
de outra forma de circulação de edição de textos escritos, apresentados de
forma decididamente heterodoxa com relação aos padrões savants. Rancière conta muitos casos, dado que é o arquivo operário
que ele apresenta, e os casos são editados em cortes tão abruptos quanto o
exercício de leitura apresentado no capítulo A Nova Babilônia.
Estamos às
voltas com as fantasias infantis de fuga e é a formação literária de Charles
Pénnekère que chama a atenção. São seus devaneios que abrem a série de
histórias dedicadas mais à deambulação operária do que às brincadeiras diversas
traçando nos vôos mais irresponsáveis o desejo de aprender – até então
compreendido como o negativo da ignorância. Isto porque foi por não saber
responder à mãe quanto a paginação de uma determinada lenda, a de La Chapelle de saint Léonard que sua
obsessão por constituir para si uma biblioteca se fez. Mas que se entenda que o
universo do então pequeno morador da região compreendida entre Glacière e
Saint-Marcel, em Paris. Nada de volumes inteiros que compreendam um argumento ou uma narrativa do começo ao
fim. Nem mesmo uma história. A biblioteca fora, dados os recursos existentes,
uma complexa coleção elaborada folha-a-folha – “aquelas tiradas das embalagens
de alimentos consumidos no dia-a-dia” (Rancière, 1988:59). Abrimos aspas, tanto Rancière
quanto eu, a Charles Pénnekère:
“Ficou combinado que minha mãe me guardaria
os sacos que serviam para embrulhar os cereais que ela comprava. Ah! com que
entusiasmo, voltando para casa, à noite, eu explorava esses tesouros dados como
restos de discursos, como fragmentos de anais! E com que irritação chegava ao
final da página rasgada sem prosseguir a narrativa, que nunca continuava na
entrega seguinte que minha mãe me fazia e forma de sacos ou canudos, embora lhe
tivesse recomendado para trazer as lentilhas sempre do mesmo comerciante.”(1988:op.cit.)
E Rancière
encerra aí a citação. Logo em seguida uma outra
personagem nos é apresentada, Jeanne Deroin, costureira de roupas íntimas engalfinhada com os
esforços mais elencados do que descritos na luta para se cercar dos “tesouros
da ciência”. Tão rapidamente, o corte como a passagem acelerada de um dia para
outro a segunda citação traz outra história parcial e Rancière se converte numa
mão metodológica, a mesma de Charles Pénnekère que lhe trouxe lentilhas. O saco
com qual carregava os grãos narrava toda uma outra história da qual nos
desviamos pela obrigação imposta fisicamente pelo texto e sua ausência
repentina.
A narrativa
implícita é dificultosa, dado que responde à inquisição sartreana sobre o que
fazemos o que fizeram conosco. Se a temática das ruínas atravessa o tempo do
materialismo compondo uma constelação[1]
dispersa, esta mesma constelação narra a história moderna a partir do que resta
dos outros, a forma presente do passado narrado à forma de uma história do
futuro, um futuro que é hoje. As ruínas, sejam simbólicas ou restos empoeirados
duramente cortejados por turistas contam a história da depredação do tempo e
dos homens ao mesmo tempo em que revela pontos de acesso à fundação de toda
arquitetônica, os cálculos e predileções que numa engenharia precisa, deixam a
alma de pé. Mas se para a sabedoria que lê de capa à contracapa as ruínas são
fruto dos eventos do século, para os leitores da Paris noturna do século XIX o
que circula são as ruínas de um tempo de curtíssima duração que toma forma em
páginas rotas cedidas gratuitamente para uma função secundária, a contenção de
punhados de lentilha, um saco de papel que se transforma numa história
interminável porque demasiado breve.
A inversão
da figuração do tempo histórico de tal ou qual duração é o fruto de um plano
par arruinar a geração de equívocos sobre o povo guerreiro para o qual muito se
fez esforço em converter o proletariado; o povo. Bravo e colossal e então
determinado, para o seu próprio bem, à resistir à tudo e seguir sem medo em uma
variação delicada das sagas sacrificiais. Os arquivos operários dos quais
Rancière se nutre, o que se mostra nesta coleção de páginas rotas é que a busca
determinada pelo devaneio operário-poeta de ilustração onívora que não se
importa se o texto fora estabelecido por Ernest Renan ou se foi simplesmente
jogado fora aos pedaços como papel de embrulho o põe na posição de alguém que
pode querer assumir outro papel que não o da resistência. Até porque, neste
caso a dor é na carne.
“Que a oficina possa ser pior do que a
prisão, eis aí uma opinião que justifica, sem dúvida, todos esses discursos e
histórias que moralistas, clérigos e leigos destinam à juventude popular, para
descrever a dignidade quase burguesa daquele que tem um bom ofício e a miséria
que conduz os pequenos entregadores e vendedores de fósforos, de papel de carta
e outros pequenos negócios da ponte Saint-Eustache ao abandono e à vergonha das
prisões.”(1988:62)
Que seja o
roubo a rota desviante do massacre diário do trabalho. A prisão ao invés da
tortura de entregar a vida vendo no futuro um destino ainda mais fugaz que a
história esquartejada com cheiro de lentilha. Ou será que não?
“Será simplesmente a natureza doentia do
marceneiro poeta que o faz contradizer o que aprendemos em tantas fontes: o
prazer do artesão ou do operário qualificado em ter nas mãos ou diante dos
olhos o produto do seu trabalho inteligente – prazer perturbado apenas pela dor
de ver tal obra escapar dele par ir engordar o tesouro dos exploradores?”(op.cit.:62)
Resta então
adentrar no mundo em que se come mal, em que o dia demora demasiadamente para
terminar e que adia o aparecimento do patrão até o momento derradeiro, momento
em que ele faz algo que não a imaginação torpe a respeito da espera ociosa do explorador.
“No mundo às avessas que toma pelo seu reino,
o senhor é antes de mais nada um barulho de passos que afasta a alma do sonho
da Terra Prometida para devolvê-la ao cativeiro. Ele incomoda porque impede de
sonhar tranquilamente com os prazeres dessa boa organização onde ele não tem
mais lugar. (op.cit.:69)
E então
irrompe a economia cenobítica aonde, creio, será possível passear pelas figuras
da idiotia proletária de anos difíceis como os de sempre.
[1]
Que conta com o ideologue Constantin
Volney, o exuberante suicida Walter Benjamim
e o ontologista da comédia humana Giorgio Agamben, sem deixar de lado as
reflexões sobre as ruínas futuras ou planificadas do nazismo de Paul Virilio (Guerra e cinema).
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