terça-feira, 29 de outubro de 2013

Da experiência interior como política da escrita: parte dois


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BATAILLE, Georges. L’expérience intérieur. Gallimard. Paris. 2012 [1954].
______________________. Théorie de la religion. Gallimard. Paris. 2011. 
RANCIÈRE,  Jacques. Políticas da escrita. Editora 34. Rio de Janeiro. (1995)
_______________________. A noite dos proletários: arquivos do sonho operário. Companhia das Letras. São Paulo. 1988.


II-

            O percurso da emancipação operária não segue uma linha reta mesmo quando a trajetória se utiliza de casos individuais exemplares. Não que seja exatamente uma exceção, ainda que possa ser entendido como algo peculiar. O que é possível narrar são coisas feitas aos pedaços, como leitura interrompida porque extinguiu o feixe de luz, elétrica ou combustível; porque alguém lê no fim do dia o sono corta os olhos desse dentro desligando a vontade do seu suporte orgânico culminando no sono; ou simplesmente porque as coisas se dão integralmente em partes. Não estou falando de um impedimento real como algum tipo de censura premeditada mas de outra forma de circulação de edição de textos escritos, apresentados de forma decididamente heterodoxa com relação aos padrões savants. Rancière conta muitos casos, dado que é o arquivo operário que ele apresenta, e os casos são editados em cortes tão abruptos quanto o exercício de leitura apresentado no capítulo A Nova Babilônia.
            Estamos às voltas com as fantasias infantis de fuga e é a formação literária de Charles Pénnekère que chama a atenção. São seus devaneios que abrem a série de histórias dedicadas mais à deambulação operária do que às brincadeiras diversas traçando nos vôos mais irresponsáveis o desejo de aprender – até então compreendido como o negativo da ignorância. Isto porque foi por não saber responder à mãe quanto a paginação de uma determinada lenda, a de La Chapelle de saint Léonard que sua obsessão por constituir para si uma biblioteca se fez. Mas que se entenda que o universo do então pequeno morador da região compreendida entre Glacière e Saint-Marcel, em Paris. Nada de volumes inteiros que compreendam um argumento ou uma narrativa do começo ao fim. Nem mesmo uma história. A biblioteca fora, dados os recursos existentes, uma complexa coleção elaborada folha-a-folha – “aquelas tiradas das embalagens de alimentos consumidos no dia-a-dia” (Rancière, 1988:59). Abrimos aspas, tanto Rancière quanto eu, a Charles Pénnekère:

            Ficou combinado que minha mãe me guardaria os sacos que serviam para embrulhar os cereais que ela comprava. Ah! com que entusiasmo, voltando para casa, à noite, eu explorava esses tesouros dados como restos de discursos, como fragmentos de anais! E com que irritação chegava ao final da página rasgada sem prosseguir a narrativa, que nunca continuava na entrega seguinte que minha mãe me fazia e forma de sacos ou canudos, embora lhe tivesse recomendado para trazer as lentilhas sempre do mesmo comerciante.”(1988:op.cit.)

            E Rancière encerra aí a citação. Logo em seguida uma outra personagem nos é apresentada, Jeanne Deroin, costureira de roupas íntimas engalfinhada com os esforços mais elencados do que descritos na luta para se cercar dos “tesouros da ciência”. Tão rapidamente, o corte como a passagem acelerada de um dia para outro a segunda citação traz outra história parcial e Rancière se converte numa mão metodológica, a mesma de Charles Pénnekère que lhe trouxe lentilhas. O saco com qual carregava os grãos narrava toda uma outra história da qual nos desviamos pela obrigação imposta fisicamente pelo texto e sua ausência repentina.
            A narrativa implícita é dificultosa, dado que responde à inquisição sartreana sobre o que fazemos o que fizeram conosco. Se a temática das ruínas atravessa o tempo do materialismo compondo uma constelação[1] dispersa, esta mesma constelação narra a história moderna a partir do que resta dos outros, a forma presente do passado narrado à forma de uma história do futuro, um futuro que é hoje. As ruínas, sejam simbólicas ou restos empoeirados duramente cortejados por turistas contam a história da depredação do tempo e dos homens ao mesmo tempo em que revela pontos de acesso à fundação de toda arquitetônica, os cálculos e predileções que numa engenharia precisa, deixam a alma de pé. Mas se para a sabedoria que lê de capa à contracapa as ruínas são fruto dos eventos do século, para os leitores da Paris noturna do século XIX o que circula são as ruínas de um tempo de curtíssima duração que toma forma em páginas rotas cedidas gratuitamente para uma função secundária, a contenção de punhados de lentilha, um saco de papel que se transforma numa história interminável porque demasiado breve.
            A inversão da figuração do tempo histórico de tal ou qual duração é o fruto de um plano par arruinar a geração de equívocos sobre o povo guerreiro para o qual muito se fez esforço em converter o proletariado; o povo. Bravo e colossal e então determinado, para o seu próprio bem, à resistir à tudo e seguir sem medo em uma variação delicada das sagas sacrificiais. Os arquivos operários dos quais Rancière se nutre, o que se mostra nesta coleção de páginas rotas é que a busca determinada pelo devaneio operário-poeta de ilustração onívora que não se importa se o texto fora estabelecido por Ernest Renan ou se foi simplesmente jogado fora aos pedaços como papel de embrulho o põe na posição de alguém que pode querer assumir outro papel que não o da resistência. Até porque, neste caso a dor é na carne.

            Que a oficina possa ser pior do que a prisão, eis aí uma opinião que justifica, sem dúvida, todos esses discursos e histórias que moralistas, clérigos e leigos destinam à juventude popular, para descrever a dignidade quase burguesa daquele que tem um bom ofício e a miséria que conduz os pequenos entregadores e vendedores de fósforos, de papel de carta e outros pequenos negócios da ponte Saint-Eustache ao abandono e à vergonha das prisões.”(1988:62)

            Que seja o roubo a rota desviante do massacre diário do trabalho. A prisão ao invés da tortura de entregar a vida vendo no futuro um destino ainda mais fugaz que a história esquartejada com cheiro de lentilha. Ou será que não?

            Será simplesmente a natureza doentia do marceneiro poeta que o faz contradizer o que aprendemos em tantas fontes: o prazer do artesão ou do operário qualificado em ter nas mãos ou diante dos olhos o produto do seu trabalho inteligente – prazer perturbado apenas pela dor de ver tal obra escapar dele par ir engordar o tesouro dos exploradores?”(op.cit.:62)

            Resta então adentrar no mundo em que se come mal, em que o dia demora demasiadamente para terminar e que adia o aparecimento do patrão até o momento derradeiro, momento em que ele faz algo que não a imaginação torpe a respeito da espera ociosa do explorador.

            No mundo às avessas que toma pelo seu reino, o senhor é antes de mais nada um barulho de passos que afasta a alma do sonho da Terra Prometida para devolvê-la ao cativeiro. Ele incomoda porque impede de sonhar tranquilamente com os prazeres dessa boa organização onde ele não tem mais lugar. (op.cit.:69)

            E então irrompe a economia cenobítica aonde, creio, será possível passear pelas figuras da idiotia proletária de anos difíceis como os de sempre.


[1] Que conta com o ideologue Constantin Volney, o exuberante suicida Walter Benjamim e o ontologista da comédia humana Giorgio Agamben, sem deixar de lado as reflexões sobre as ruínas futuras ou planificadas do nazismo de Paul Virilio (Guerra e cinema).

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