quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Religião desde a politécnica: porca e parafuso, modo de usar - Segunda Parte

Porca e Parafuso e a pragmática posta em jogo.
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ELIADE,  Mircea. O sagrado e o profano : a essência das religiões. Martins Fontes. São Paulo.  1992.
GUMBRECHT,  Hans-Ulrich. A modernização dos sentidos. Editora 34. Rio de
Janeiro.
SIMONDON, Gilbert. Le mode d’existence des objets techniques. Paris. Aubier. 1969.




O que Simondon chama de organização implícita é, no mais, algo muito mais importante porque este é um traço do pensamento moderno com relação à atitude crítica, isto é, de observar a observação da mesma forma em que se organiza a organização num jogo hermenêutico de segundo grau tão bem reconstituído por Hans-Ulrich Gumbrecht (1998) sugerindo que por fim haver uma trava nos jogos de linguagem indicando haver um panorama político nas investigações de Ludwig von Wittgenstein. Assim o mundo mágico é aquele em que a mediação não está organizada nos termos de uma organização, o que implica em não estar organizada como tal. O pensamento mágico se organiza como que por efeito colateral e não por um inconsciente fisiocrata imanente. A distinção existente, a de figura e fundo é a que origina algo como “o objeto e o resto” – ou indistinto.
            Outro aspecto importante é que o mágico e o religioso coincidem porque o técnico enquanto meio demanda algum equilíbrio com relação ao religioso e vice-versa exatamente porque o religioso não é um pensamento sobre a técnica, não é informativo – e é exatamente aí que o modelo de Simondon transborda de cristianismo, isto é, afirma que a vida moral não é algo circunscrito ao mundo, assim como a reflexão a seu respeito. Estando os dois domínios apartados, fazendo da técnica o exercício “de la sortie de la religion”, recuperando a fórmula primorosa de Marcel Gauchet sobre o cristianismo, entram em cena as formas de oposição entre convergência técnico-simbólica e a divergência de mesmo tipo em que determinam forças e funções centrífugas; funções centrípetas. A convergência técnica é, por outro lado o evento da individuação por meio de objetos. E se a reflexão sobre a técnica se distingue em teoria e prática, segundo aquilo que ensina a politécnica, a religião se define por ética e dogma, o que reforça a matriz cristã do argumento de Simondon com relação à religião – a que é, talvez, a sua inimiga fiel.

            Il existerait ainsi nos seulement une genèse de la technicité, mais aussi une genèse à partir de la technicité, par dédoublement de la technicité originelle en figure et fond, le fond correspondent aux fonctions de totalité indépendentes de chaque application des gestes techniques, alors que la figure, faite de schèmes définis et particuliers, spécifie chaque technique comme manière d’agir. La réalité de fond des techniques constitue le savoir théorique, alors que les schèmes particuliers donnent la pratique. Ce sont au contraire es réalités figurales des religions qui se constituent en dogme cohérent, alors que la réalité de fond devient techniques et l’éthique issue des religions, comme entre le savoir théorique des sciences, issu des techniques, et le dogme religieux, il existe à la foi une analogie, venant de l’identité de l’aspect représentatif au actif, et une incompatibilité, provenant du fait que ces différents modes de pensée sont issus soit de réalité figurales, soit de réalités de fond. La pensée philosophique, intervenant entre les deux ordres représentatifs et les deux ordres actifs de la pensée, a pour sens de le faire converger et d’instituer entre aux une médiation. » (1969 :158)

            Não faltaria com a verdade aquele que dissesse que este esquema evolucionista cheira a Auguste Comte. Considerando que a ojeriza produzida pela dialética, ou pela teologia negativa impede que saibamos sequer como ler a obra do politécnico por excelência sem que antes o acusemos de responsável de todos os males. Ao mesmo tempo é esta mesma postura a que impede que se enxergue em eventos posteriores uma genealogia, uma relação de aliança com outros empreendimentos algo considerados como inovadores, frescos ou ao menos, criativos. Michel Serres, Claude Lévi-Strauss, André Leroi-Gourham, Bruno Latour e Jean Pouillon são somente alguns daqueles que anotam com admiração suas passagens preferidas do namorado de Marianne. O esquema  “magia-religião-ciência” presente em Du mode d’exitstence des objets techniques não é exceção, ainda seja um exercício distinto de periodização por comparação à linearidade do esquema comteano, que confunde fases com cronologia. Aqui a fase mágica não é, como se poderia esperar, a filogênese inaugurada mas um modo de individuação imanente à distinção entre figura e fundo. A fase é, assim, um momento de um sistema recíproco de fases (1969:159) independente de quaisquer definições de gênero e espécie. Uma fase é resultado de relações de força que compreendem, antes que uma dialética da superação ou uma evolução progressiva, a emergência de casos de estrutura de duas fases cujo centro é neutro cumprindo uma função de grau-zero.
            Fase e defasagem entram em questão como a mobilidade ou atualização dos modos compreendidas numa noção de evolução técnica que Simondon procura desenvolver em que procede uma concepção vitalista algo bergsoniana a partir da qual as técnicas só podem ser definidas com relação à vida que lhe anima – assim como a linguagem em certa filosofia, como a de Wittgenstein, uma ferramenta utilizada enquanto a comunicação não acontece.  O desdobramento prático-teórico em técnica e religião parte deste eixo neutro, assim como as questões para as quais podemos remeter à estética são ao mesmo tempo ruptura e busca da unidade futura do modo de ser mágico, isto é, de um modo de ser em que a convergência se dê como ponto de partida.

            “(...) la méditation entre l’homme et le monde s’objective en objet technique comme elle se subjective en médiateur religieux ; mais ces subjectivations opposées et complementaires sont précédées par une première étape de la relation au monde, l’étape magique dans laquelle la médiation n’est encore ni subjectivée ni objectivée, ni fragmentée ni universalisée, et n’est que la plus simple et la plus fondamentale des structurations du milieu d’un vivant : la naissance d’un réseau de points privilégiés d’échange entre l’être et le milieu. » (1969 :164)

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Qual o tamanho do contraste deste elaboração inicial com aquela da precipitação do sagrado nas hierofanias de Mircea Eliade, um e outro orientados pela orientação e pela premissa fundamental do ser? Talvez a mesma distinção entre as noções de retroalimentação da cibernética e a de evento de ruptura no que Revelação e Revolução dividem algo mais do que uma estrutura em comum. Esta tensão merece ser aprofundada com maior vagar, até mesmo o futuro dura muito tempo e é necessário deixar aquilo que fermenta envelhecer a fim de distinguir vinagre e vinho, saliva de cerveja. Até porque certas distinções tomadas com o tempo oferecem diferenças, não de grau mas de natureza, o mesmo tipo de distingue espaço de milieu, ou ambiente como circunvizinhança a partir do qual a reticulação se oferece como um problema para a orientação enquanto tal. Mas porque Eliade no contraste? Porque Eliade disserta sobre a orientação do homem religioso, exatamente o mesmo que se recusa a orientar-se no mundo enquanto tal – e esta não é, vale dizer, uma atitude revoltada mas um tanto quanto resignada, ou mesmo amorosa.
            A tensão pode e deve ser desdobrada de uma questão importante, tão importante quanto a raridade de eventos em que é pronunciada: qual é o tamanho do mundo. De todas as qualidade fundamentais da emergência da ecologia como fronteira conceitual, aquela que oferece a herança mais perigosa é a confusão astronômica entre mundo (welt) e planeta, confusão que obrigara o relativismo – no caso de ser este agente coerente que nem mesmo uma pessoa biografada pode ser – a atingir fórmulas como “vários mundos, um só planeta” . O mundo não é o planeta, mas não por exclusão. A relação é possível, mas não é exclusiva. Um mundo não precisa ter circunscrição atmosférica, não precisa ter massa, e tampouco estar imerso numa navegação espacial em que a quantificação tenha produzido uma politécnica inédita do sonho hermético no qual aquilo que está em cima é como o que está em baixo o que e uma certa tradução enviesada pode dizer, tudo se mede lá em cima como é possível medir aqui em baixo porque o espaço é homogêneo.
           
            Para o homem religioso, o espaço não é homogêneo: o espaço apresenta roturas, quebras; há porções de espaço qualitativamente diferentes das outras. “Não te aproximes daqui, disse o Senhor a Moisés; tira as sandálias de teus pés, porque o lugar onde te encontras é uma terra santa.” (Êxodo, 3:5). Há, portanto, um espaço sagrado, e por consequência “forte”, significativo, e há outros espaços não-sagrados, e por consequência sem estrutura nem consistência, amorfos. Mais ainda: para o homem religioso essa não-homogeneidade espacial traduz-se pela experiência de uma oposição entre os espaços sagrado – o único que é real, que existe realmente – e todo o resto, a extensão informe, que o cerca.” (1992:21)
           

            A experiência do sagrado precipitado em fontes hierofânicas é a precipitação da diferença qualitativa no seio do espaço homogêneo – assim como faz do homem regular, mundano, um homem de verdade fazendo de homem religioso uma forma peculiar de pleonasmo. A experiência do sagrado é a fundação do espaço em sua heterogeneidade, isto é, na composição do sentido que orienta a ação humana, orientação que o homem não-religioso recusa fazendo da tipificação uma forma de exclusão dogmática, ou daquele que não reconhece o sagrado nos termos postos. Assim, há o homem dedicado aos assuntos profanos que vive imerso no espaço indiferenciado da homogeneidade infinita purificado da religião e aquele em que vive no mundo real. Mas, é claro, esta é uma tipologia.

            É preciso acrescentar que uma tal existência profana jamais se encontra em estado puro. Seja qual for o grau de dessacralização do mundo a que tenha chegado, o homem que optou por uma vida profana não consegue abolir completamente o religioso.” (1992:23)

            Isto porque o mundo começa religioso e a profanação é um esforço produtivo de divórcio e, necessariamente de decaimento quando não de degenerescência. Isto porque a experiência de mundo profana (algo próximo de weltverstehen) é fragmentária uma vez que se dá em porções, incapaz de incorporar a totalidade cujo fundamento é o sentido, seja como causa, seja como fundamento, seja como finalidade. Dito de outra forma, não há Mundo que só pode ser Mundo pelo estabelecimento de uma fronteira primordial, a que cinde a homogeneidade naquilo que é a gênese da heterogeneidade da ordem espacial: o sagrado e o profano. A analogia parcial entre as habitações humanas e o espaço ritual, por exemplo, confere uma distinção importante ao entender que um templo é a forma forte de uma casa que, por sua vez, é a alternativa radical do indiferenciado selvagem da vulgata newtoniana – e aqui aparece em Eliade a voga do evolucionismo sociológico que determina, como em Durkheim, Simmel e Luhmann a analogia radical entre o primitivo e o indiferenciado.
            Este desenho é, por fim, a recuperação da dimensão técnica da arquitetura em que o espaço é recortado em espaços de relevância e habitação que instituem uma ordem transcendente que, por fim, emana dela mesmo em sinais produzindo uma analogia radical entre espaço consagrado (lugar) e cosmogonia respondendo de chofre como compreender a relação entre mito e ritual que tantas dores de cabeça causa nas pesquisas sobre religião.

            Segue-se daí que toda construção ou fabricação tem como modelo exemplar a cosmogonia. A Criação do Mundo torna-se o arquétipo de todo gesto criador humano, seja qual for o seu plano de referencia. Já vimos que a instalação num território reitera a cosmogonia. Agora, depois de termos captado o valor cosmogônico o Centro, compreendemos melhor por que todo estabelecimento humano repete a Criação de Mundo a partir de um ponto central (o “umbigo”). Da mesma forma que o Universo se desenvolve a partir de um Centro e se estende na direção dos quatro pontos cardeais, assim também a aldeia se constitui a partir de um cruzamento. Em Bali, tal como em certas regiões da Ásia, quando se empreende a construção de uma nova aldeia, procura-se um cruzamento natural, onde se cortam perpendicularmente dois caminhos. O quadrado construído é uma imago mundi. A divisão da aldeia em quatro setores – que implica aliás uma partilha similar da comunidade – corresponde à divisão do Universo em quatro horizontes. No meio da aldeia deixa-se muitas vezes um espaço vazio: ali se erguerá mais tarde a casa cultual, cujo telhado representa simbolicamente o Céu (em alguns casos, o Céu é indicado pelo cume de uma árvore ou pela imagem de uma montanha). Sobre o mesmo eixo perpendicular encontra-se, na outra extremidade, o mundo dos mortos, simbolizado por certos animais (serpente, crocodilo, etc.) ou pelos ideogramas das trevas.” (1992:41)

            A imago mundi não é, contudo, uma máquina de habitar mas uma constante na vida do homem religioso que ao habitar se orienta segundo as premissas da ordem cósmica em que habita. E orienta porque induz aos valores cuja precipitação impõe ao caos contínuo uma ordem discreta, tensão muito familiar à sociologia kantiana de fins do século XIX e mesmo ao estruturalismo do século XX, a mesma que faz conformar evolução social com diferenciação de papéis e sofisticação da organização humana. Nenhum desses temas é inexistente no trabalho de Eliade, convocado aqui como um contraponto à leitura de Simondon. A presença abreviada, contudo, não tem como objetivo diminuir Eliade posto notadamente como coadjuvante em seu próprio domínio. Isto porque a noção de reticulação do mundo tal como proposto pela fase mágica do esquema de Simondon não necessariamente oferece um modelo alternativo de religião, que é, também o que está em questão aqui. O caso é que oferece uma noção diferente de tempo evolutivo, implicando em um outro desdobramento da relação entre vida e desenvolvimento que trabalhos como Eliade absorvem, extremamente críticos ao evolucionismo como doutrina da existência ao mesmo tempo em que permissivos quanto ao evolucionismo sociológico que só faz sentido porque nada acontece senão o evento originário.

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