domingo, 20 de outubro de 2013

Religião desde a politécnica: porca e parafuso, modo de usar.

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GUMBRECHT,  Hans-Ulrich. A modernização dos sentidos. Editora 34. Rio de
Janeiro.
SIMONDON, Gilbert. Le mode d’existence des objets techniques. Paris. Aubier. 1969.


            O livro sobre os objetos técnicos é, se posso dizer assim, uma ontologia de função do ensemble technique (assembleia ou agrupamento técnico) relativo à infra-estrutura das relações funcionais, especialmente atento à ontogênese da técnica – uma tal ou qual determinada técnica em um quadro evolutivo geral; porque uma técnica, ou uma finalidade objetiva conduz a uma segunda e a uma terceira, etc. – e ao problema da individuação, conceito para o qual dedicou todo um empreendimento reflexivo num outro livro. Não sendo qualquer tipo de consideração sobre a representação produzida sobre o universo tecnológico e seus desdobramentos morais, o trabalho de Simondon introduz  tanto do ponto de vista descritivo quanto do ponto de vista teórico a apreciação do momento como qualificativo das relações no tempo, fazendo com que questões relativas à agência articulem nexos entre movimentos de convergência e dispersão. Este nexo sugere uma reflexão meticulosa quanto aos critérios de descrição das técnicas em sua dada função oferecendo um quadro expandido para temas caros à antropologia social, desde as técnicas corporais e usufruto de objetos à dimensões pouco usuais da vida social das coisas, permitindo compreender a vida reificada da sociedade sem que com isso seja necessário recorrer ao expediente da alienação como uma discussão protocolar.
            Sim, a remissão à antropologia social aparece como de improviso, não sendo introduzida por ninguém, muito menos pelo mesmo Simondon de quem pareço me ocupar. Mas se a antropologia social aparece como de improviso, o “social”  do antropologia não. Especialmente se for lido com o rigor caxias de um manual disciplinar. Sociedade, ao seguirmos o desenho sugerido por parte da sociologia alemã clássica (Weber, Troeltsch e Simmel) designa o coletivo reunido segundo critérios de organização social do trabalho. A colagem entre trabalho e valor, que esta mesma sociologia que tenta responder a Kant e a Marx em igual medida, divorcia ao máximo o contraponto entre economia política e religião (trabalho e valor purificados, um do outro) fazendo com que uma e outra possam se deslocar sem se forçarem em uma mesma direção mútua. Este descolamento é, quero crer, a zona em que se move a possibilidade da alienação como conceito.
            O caso é que a antropologia social tem como ferramenta de base a articulação da distinção de papéis sociais, isto é, das funções exercidas por alguém (como o ego do parentesco) com relação à totalidade das funções exercidas, totalidade esta comprometida com a reprodução social. Visto de outra forma, é a reconstituição do exercício de associação no seio da economia política do ponto de vista da sociedade. Um dos desdobramentos da distinção para  qual eu chamo a atenção está na reconstituição do que se possa chamar de organização social entendendo haver nela um núcleo estável que permita a reprodução dos papéis no tempo, intra ou intergeracionalmente. E assim, a esfera dos valores aparece como a gramática, ainda que sua conexão com os veículos de expansão seja sempre obscuro. A sociedade é algo que opera sempre por indução do agente (como na Sociologie de Simmel) ou por dedução do pesquisador (como no caso das Règles de Durkheim), mas nunca acontece, como temia Jules Michelet. Isto porque a conexão entre valores e trabalhos social (conceitos e coisa-em-si?) sempre opera em um dado paralelismo que obriga a divisão entre idealistas e materialistas em um mundo que, por fim, segue ignorando esta distinção a cada vez que algo banal e irrelevante acontece. Qualquer coisa.
            Pôr em pauta a ontogênese da técnica visa conectar o que em geral é perdido na tradução entre valor e trabalho e que não consegue propiciar de uma forma geral qualquer consideração aguda a respeito do evento, o que em antropologia é grave levando em consideração a relação com o aporte etnográfico, cuja pedra de toque é exatamente a descrição de eventos. O exercício não põe, contudo, o evento em questão.
            O aporte de Simondon é agudo ao oferecer instrumentos ao considerar, por exemplo, que tecnicidade é o emploi d’objets a partir da estruturação da resolução provisória de problemas (1969:156) e que numa mesma ordem histórica este processo evolutivo de adaptação e agrupamento técnico respeita fases – que são ordens de configuração -, tendo a fase mágica como fase inaugural.

            “(...) en prenant ce mot au sens le plus général, et en considérant le mode magique d’existence comme celui qui est pré-technique et pré-religieux, immédiatement au-dessus d’une relation qui serait simplement celle du vivant à sn milieu. Le mode magique de relation au monde n’est pas dépourvu de toute organisation : il est au contraire riche en organisation implicite, attachée au monde et à l’homme : la médiation entre l’homme et le monde n’y est pas encore concrétisé et constituée à part, au moyens d’objets ou d’êtres humains spécialisés, mais elle existe fonctionnellement dans une première structuration, la plus élémentaire de toutes : celle qui fait surgir la distinction entre figure et fond dans l’univers. »  (1969 :156)

            O que Simondon chama de organização implícita é, no mais, algo muito mais importante porque este é um traço do pensamento moderno com relação à atitude crítica, isto é, de observar a observação da mesma forma em que se organiza a organização num jogo hermenêutico de segundo grau tão bem reconstituído por Hans-Ulrich Gumbrecht (1998) sugerindo que por fim haver uma trava nos jogos de linguagem indicando haver um panorama político nas investigações de Ludwig von Wittgenstein. Assim o mundo mágico é aquele em que a mediação não está organizada nos termos de uma organização, o que implica em não estar organizada como tal. O pensamento mágico se organiza como que por efeito colateral e não por um inconsciente fisiocrata imanente. A distinção existente, a de figura e fundo é a que origina algo como “o objeto e o resto” – ou indistinto.
            Outro aspecto importante é que o mágico e o religioso coincidem porque o técnico enquanto meio demanda algum equilíbrio com relação ao religioso e vice-versa exatamente porque o religioso não é um pensamento sobre a técnica, não é informativo – e é exatamente aí que o modelo de Simondon transborda de cristianismo, isto é, afirma que a vida moral não é algo circunscrito ao mundo, assim como a reflexão a seu respeito. Estando os dois domínios apartados, fazendo da técnica o exercício “de la sortie de la religion”, recuperando a fórmula primorosa de Marcel Gauchet sobre o cristianismo, entram em cena as formas de oposição entre convergência técnico-simbólica e a divergência de mesmo tipo em que determinam forças e funções centrífugas; funções centrípetas. A convergência técnica é, por outro lado o evento da individuação por meio de objetos. E se a reflexão sobre a técnica se distingue em teoria e prática, segundo aquilo que ensina a politécnica, a religião se define por ética e dogma, o que reforça a matriz cristã do argumento de Simondon com relação à religião – a que é, talvez, a sua inimiga fiel.

            Il existerait ainsi nos seulement une genèse de la technicité, mais aussi une genèse à partir de la technicité, par dédoublement de la technicité originelle en figure et fond, le fond correspondent aux fonctions de totalité indépendentes de chaque application des gestes techniques, alors que la figure, faite de schèmes définis et particuliers, spécifie chaque technique comme manière d’agir. La réalité de fond des techniques constitue le savoir théorique, alors que les schèmes particuliers donnent la pratique. Ce sont au contraire es réalités figurales des religions qui se constituent en dogme cohérent, alors que la réalité de fond devient techniques et l’éthique issue des religions, comme entre le savoir théorique des sciences, issu des techniques, et le dogme religieux, il existe à la foi une analogie, venant de l’identité de l’aspect représentatif au actif, et une incompatibilité, provenant du fait que ces différents modes de pensée sont issus soit de réalité figurales, soit de réalités de fond. La pensée philosophique, intervenant entre les deux ordres représentatifs et les deux ordres actifs de la pensée, a pour sens de le faire converger et d’instituer entre aux une médiation. » (1969 :158)

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