sábado, 23 de fevereiro de 2013

Notas da Torre de Observação: la faiblesse de croire


DE CERTEAU, Michel. La fable mystique, I – XVIe-XVIIe siècle. Gallimard. Paris.
1982.
________________________. La faiblesse de croire. Seuil. Paris. 1985.



III- La distance sociale et la proximité du dit.


            Há algo de admirável na obra de Michel de Certeau e, mais do que na obra como um conjunto de escritos sujeitos a uma unidade autoral sempre imprecisa e questionável, no ímpeto que parece tomar forma a cada começo de empreitada, cada livro e cada artigo que veio a redigir. E gostaria de parar um pouco para falar sobre isso, digo, tanto sobre o que penso ser admirável no trabalho de Michel de Certeau quanto sobre o ímpeto que se traveste, de uma forma geral naquilo que reconheço ser sua assinatura. É aonde a leitura do historiador jesuíta é uma conversa que tenho com ele e como esta conversa é, por outra via algo que cria alguma tensão com a  noção de distância por via de um louvor que versa sobre a saudade.
            A figuração da mística e da vida religiosa como um componente fortemente pautado pela instituição das dimensões de um território cercado por uma determinada ordem moral expressa em leis e institucionalização do controle de fronteiras é aquilo que provavelmente serve como linha transversal da historiografia em questão. Esta fronteira que define as dimensões internas de uma dada ordem se cruza com a série de fronteiras internas que tanto pautam discussões sobre cidadania, direitos e, quando postos em um cenário mais grave, a mera circulação de pessoas. Fronteiras operam como distâncias multiplicadas por uma linha cartográfica, o que implicará em reconhecer que conhecemos muito pouco do ofício cartográfico e suas implicações. Por exemplo, e aí volto a me aproximar do historiador jesuíta, uma fronteira distancia no espaço da mesma forma que distancia no tempo.
            Na introdução de seu livro La fable mystique, De Certeau faz uma confissão que é tão arrebatadora quanto incômoda e que, antes mesmo de citá-la me faz perguntar por que não se resignar então ao silêncio. Cito:

            “Ce livre se présente au nom d’une incompétence : il est exilé de ce qu’il traite. L’écriture que je dédie aux discours mystiques de (ou sur) la présence (de Dieu) a pour le statut de ne pas en être. Elle se produit à partir de ce deuil, mais un deuil inaccepté, devenu la maladie d’être séparé, analogue peut-être au mal constituait déjà au XIVe siècle un secret ressort de la pensée, la Melancholia. Un manquant fait écrire. Il ne cesse de s’écrire en voyages dans un pays dont je suis éloigné. À préciser le lieu de sa production, je voudrais éviter d’abord à ce récit de voyage le « prestige » (impudique et obscène, dans son cas) d’être pris pour un discours accrédité par une présence, autorisé à parler en son nom, en somme supposé savoir ce qu’il en est. »(1982 :09)

            O historiador moderno já cruzou a fronteira que o permitiria falar a língua que não se fala e assim participar da Unidade provida pela experiência imediata da revelação, a mesma que recebe a alcunha de “mística”. Assim, deve escrever sobre o que não é possível escrever e ser o guardião de um segredo que não sabe qual é – a figura é a do próprio Michel de Certeau, retirada de um conto de Franz Kafka, Diante da Lei. O caso, e aí a dificuldade da postura de De Certeau, é: porque o historiador deve escrever sobre o que não pode? Que distância é esta que uma linha no papel e o percurso de alguns séculos impede atingir? E porque ele deve se esforçar em cruzar uma linha que ele notadamente não pode? Que esforço é este? O caso é que aquilo que será considerado o conteúdo da mística é, antes de mais nada o exercício impossível de recuperar o que já está perdido há muito tempo. E Michel de Certeau parece ter saudades da Unidade que não está mais lá, que transformou o irmão, o semlehante em um estrangeiro e que aparece, no mais das vezes em sua forma fantasmal e fugidia, sempre pela redação daqueles que se refugiam neste passado que é, à sua vez, um país.

            “ En fait, ces auteurs anciens introduisent dans notre actualité le langage d’une « nostalgie » relative à cet autre pays. Ils y créent et ils gardent une place pour quelque chose comme la saudade brésilienne, un mal du pays, s’il est vrai que ce pays autre reste aussi le nôtre mais que nous en sommes séparés. » (1982:10)

            Saudades de onde não foi e não pode ir e, mesmo, não sabe se é. E assim, a postura soaria verdadeiramente patética. Na verdade, não aposto nesta alternativa e, ainda mais, não creio haver aí qualquer utopia ou devaneio. No caso, quando ele se pergunta se é verdade que este país que tanta falta faz está de fato separado de nós em distância insuperável, o que Michel de Certeau parece querer dizer, mas não há voz que o diga de fato, é que esta separação é fruto de um movimento. E movimentos estão entregues ao sabor de outros movimentos, ao atrito e cessam quando há ausência deste último elemento. A precaução metodológica do historiador que culmina num exercício impossível que o obrigaria ao voto de silêncio tem, por outra via o valor de ser um exercício de elogio da relação disciplinada com a  inspiração contemplativa da qual a verdade surge nos rompantes de tudo aquilo que deve, logo mais, caber no exemplo do silêncio – ou das palavras que induzem o ouvinte a tal. E isto, vale dizer, é o exato oposto daquilo que a instituição da secularização e seu desdobramento técnico, o exercício do desencantamento, produziram.
Triunfo de Silésia. Foto de Refrator de Curvelo.
            Este rumor que soa tanto quanto parece exalar em tudo o que se move. Se há algo que se anima em meio a uma paisagem estática, move-se de lá para cá. O caminho é percorrido por quem não somos e se há algo que pode ser feito com relação à fronteira, é em favor do trânsito do estrangeiro, e não na fúria da expansão. Há de se repatriar o estrangeiro e violar o solo sagrado do território. Se não de fato, ao menos direito – distinção tão cara! É preciso que seja possível deixar entrar para que as peças possam se mover de outra forma, como num jogo de tarot. E então o discurso místico transforma o detalhe em mito numa verdadeira paixão pelo detalhe que seduziu não poucas expressões modernas, seja nos exercícios da mecanologia futurista, na apreciação mais detalhada da natureza morta, na composição de gestos sempre menores que receberam a mesma alcunha de balet dos exercícios de outrora até que tudo pudesse se converter em dança, e a odisséia numa história a ser narrada num só e mesmo dia. Mesmo que fosse por um segundo. Instante extático, clarão de insignificância, esse fragmento do desconhecido introduz silêncio na proliferação hermenêutica (1982:19).
            Se há um percurso a ser trilhado é o que nos entrega à paranóia que abre os olhos de que não vê em busca de sinais ocultos que nos leve à conciliação, buscando apreender (saisir) o mundo nos seus atos falhos. É assim que ele nos leva, inadvertido, para o terreno escondido pela fronteira traçada que nos aparta como se houvessem entre os extremos todo um continente indevassável.  Esta é, contudo, também uma crônica política republicana que serve igualmente peça nesta história que, se comete algum pecado, o faz por excesso de movimentos. Não poderia ser diferente. É uma história do entusiasmo.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

As regras do jogo: psiquiatria


Aqui começo uma série de confissões. Recomendo atenção. Mas antes dos assuntos mais graves convém confessar algo mais simples, sobre o que não sei e não posso dizer ainda que protegido pelo silêncio da escrita – porque o silêncio é então uma camada a partir de onde eu não me movo mais de mim. E é uma confissão muito simples e que oferece uma falsa sensação de segurança. O caso é que eu não sei nada sobre esquizofrenia e pretendo escrever sobre o tema a partir de um grau zero impossível. Não tenho nenhuma experiência clínica real, não participei de experiências em terapia cognitiva, não escrevi artigos com a revisão bibliográfica acerca do tema. Não tenho nenhuma experiência com a questão que mereça ser reputada como tal. Mas, e aí começa a confissão mais grave, não sou particularmente afetado por todas as coisas que vejo, escuto e considero, ainda que seja particularmente afetado pela beleza do que vem e aparece, quando beleza há.
            Deslumbrado. Há quem me defina assim. E quem o faz intenta eufemizar aquilo que é, de outra forma aquilo que opera como classificação – que sabemos só ser efetiva quando ofende, que é quando se presta à defesa ou à caça, como bem demonstraram Émile Durkheim e seu sobrinho, Marcel Mauss. Assim, a ofensa disserta que deslumbrado é bem outra coisa pois significará doravante “patético”, ou conduzido pelas paixões, demasiado atrelado à superfície, à aparição das coisas. E se é ofensivo que me chegue aos ouvidos o caso de eu ser patético, nele eu não vejo nada de ofensivo. E assim, acabo de fazer uma distinção que é tudo aquilo que me importa enquanto escrevo estas linhas. Porque não sendo eu exatamente um quadro clínico de doente mental, ou por jamais eu ter me submetido a uma junta médica que pudesse me declarar como tal, começo a entender o valor dos serviços prestados por intelectuais como Gregory Bateson e Paul Watzlawick. Dedicados por um período significativo de suas pesquisas à etiologia de algo como a esquizofrenia, seu papel se torna particularmente notável por se tratar de um exercício analítico que privilegia quem sofre, e não quem acusa. Este exercício de ambos – de mais tantos outros que o grau zero impede de recordar, dado que nunca soube – permite que eu reitere a sugestão acima de que é possível distinguir, ainda que sem justificar, a enorme diferença entre a ofensa e ser ofendido. Como é de hábito, é o mesmo problema da magia posta em prática na cena da flecha que chega e que não é a mesma flecha que partiu do arco.
            O que os exercícios das pesquisas produzidas em Palo Alto me oferecem, as mesmas produzidas nos anos 1960-1970, é a idéia de que, uma vez incorporando métodos e fundamentação característicos da teoria dos sistemas – cuja fonte são Ludwig von Bertanlanfy, aluno de Martin Heidegger – a etiologia das doenças mentais passa a demandar um certo descentramento de suas propriedades hilemórficas, o que muita gente confunde com “a morte do sujeito”, o mesmo que Maurice Blanchot chegou a chamar de “quem?”. Dito de outra forma, o tipo de sofrimento que caracteriza a esquizofrenia – e que sigo sem ter a menor idéia quanto ao que de fato é; bom para mim – só pode ser apreendido com justiça (melhor do que com precisão analítica) quando um certo conjunto de linhas de força que instituem o lugar em que se dá a individualidade não antecedam a precipitação do sofrimento individual. A emergência do quadro esquizofrênico não permitiria qualquer exercício filogenético como forma de diagnóstico. Ao contrário, é como história que a filogênese opera sem conseguir sugerir mesmo que de soslaio as intensidades que convergem ao produzirem, junto aos esforços do indivíduo, os males da alucinação – que também espero conseguir entender como uma das formas desprivilegiadas de sair de si.
            A emergência do quadro esquizofrênico como tal demanda um encadeamento de intensidades sincronizadas que individuem a esquizofrenia, demandando que se compreenda que a própria emergência não tem prefiguração, seja em quem sofre, seja em qualquer outro lugar específico. Não por acaso que o signo sugerido para descrever o movimento para o qual chamo a atenção é o de comunicação esquizofrênica, isto é, de uma forma de trocas na qual um dos termos não consegue se reconhecer como participante ainda que o seja de pleno direito e esforço, vindo a se transformar num fantasma no sistema, um termo ativo ausente que, do ponto de vista do sofrimento é a própria forma de estar fora de si. Isto porque aquilo que o sujeito que sofre diz, o que ele comunica é constantemente tomado como outra coisa, como outro ente impondo à conversação, fazendo com que os esforços em dizer tudo o que ele diz ser – e a frustração é um sentimento imperialista que converte tudo à sua versão, indiferente às injustiças que promove – o transforme em qualquer outra coisa, menos no que ele diz e ser. Ele não é como diz, sua presença não faz sentido, vindo a fazer companhia aos demais objetos impossíveis.
            Sei que em nome de uma solução dramática acabei atropelando o que uma exposição coerente demanda, como uma coleção, senão exaustiva, ao menos interessante de casos com vistas em criar intimidade com o tema. No entanto, isto eu não sei fazer. De outra forma eu poderia partir para uma história familiar, ou várias, que me dão entusiasmo para redigir estas linhas. Seguramente não saberia ser justo com os envolvidos, por não saber fazer o relato com justeza. E isso me é proibido. Resta então inventar uma história verossímil o que, no momento significa me cercar ainda mais de tudo aquilo que não pode ser, o que frequentemente recebe o nome absurdo de “ficção”. No caso, foi o que acabei de fazer. 

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Com a carne trêmula


Acordar do sono que não veio ainda e revelar o sonho não sonhado, sabendo-se ser ausente da justa medida e deixar seguir adiante exatamente aquilo que se quer conter. Mover os olhos para os lados perseguindo o objeto impossível que só faz fugir desde a inauguração do afeto. Agarrar pelos braços, não o tenro toque pleno do vôo, mas os braços mesmos que não podem, não devem voar e, tampouco, impedir que o afeto siga, doce e pleno, no vento que ele mesmo produz. E voa. E o que resta é uma escrita sem figuração em que os lábios umedecem ao odor de outrem ao ler um bilhete solto na brisa aonde, em redação honesta deixara como rastro uma simples palavra, “beijo”. Nem despedida e nem promessa, o ato mesmo feito à forma em que o gesto não trai a palavra e se faz assíntota fazendo emergir o momento em que não se imagina mais nada, não se dorme, não se acorda. Meramente, acontece, ainda que não.


*             *              *


Em sua ocorrência diária, toda história quotidiana necessita da linguagem em ato, do discurso e da palavra, da mesma forma que uma história de amor é impensável sem ao menos três palavras – tu, eu e nós. Em seus múltiplos correlatos, todo acontecimento social repousa numa prestação preliminar ou concomitante de comunicações linguísticas (langagières). Instituições e organizações – desde a mais simples associação, até a ONU – aí têm seus recursos, sejam em forma oral, sejam em forma escrita.

(Reinhart Koselleck; L'Experience de l'histoire.)