sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Notas da Torre de Observação: La faiblesse de croire


DE CERTEAU, Michel. La faiblesse de croire. Seuil. Paris. 1985.

Serão cinco anos envolvido com a mesma pesquisa. De uma forma geral eu tenho evitado fórmulas expressas que definam movimentos abrangentes, com envergadura muito maior do que consigo, de fato, cobrir. Ainda assim, quando li o artigo de Michel de Certeau sobre a moralidade das práticas e que ele faz um passeio peculiar sobre a França moderna, o mesmo De Certeau sugere uma passagem interessante que em muito tem a ver com as correntes marinhas mais profundas para as quais quero chamar a atenção algum lugar do futuro, quando souber fazê-lo. Ao descrever uma série de transformações que acompanha parte de uma historiografia consagrada sobre a modernização das instituições que conta com nomes como os de Lucien Febvre e Robert Mandrou, em um dado momento leio a passagem que afirma a transformação não tão lenta assim das considerações sobre heresia e seu risco para a ordem do mundo sendo lentamente transferidas para a problematização da alteridade. A modernidade, aqui, marcaria a cessão da forma territorial da igreja para a constituição do espaço administrado com vistas na otimização das relações de governo em que o cálculo dos prejuízos das guerras civis, enormemente marcada pela empreitada das guerras religiosas, transforma em ordem civil alguns dos predicados que poderíamos encontrar na Lettre sur la tolérance de Voltaire. Nisso, o movimento de reconhecimento da pluralidade religiosa fortemente tematizada nas sessões parlamentares sobre a liberdade de culto público durante a Revolução francesa confere à divergência religiosa o pressuposto de diversidade de opinião. O primeiro efeito disso, desejaria o Iluminista de primeira hora, seria de exterminar com a justificativa religiosa para a violência de larga escala.
            Ao ter o discurso e a vida religiosa mitigada ao plano da variedade das formas de vida presentes a serem administradas por uma outra estância, impessoal e terrena, a interrupção fundamental da coesão doutrinal chamada heresia é diluída junto com o peso da doutrina professada. Nada mais de casos como a dos valdenses ou dos cátaros, e nada mais de massacres em nome da cruz, reduzida a mera justificativa. Há quem goste de chamar este período de democratização e, outros, do gérmen da pluralidade religiosa. Como não sou bom em prognósticos retroativos, prefiro chamar este movimento de criação de um novo problema. A questão das seitas religiosas e a suspeição ao seu redor constitui um outro desdobramento a ser considerado nesta história, a mesma suspeição de toda forma de experiência que não pode ser livremente comunicada, como a loucura, a epifania, a certeza e, porque não, o amor.
            O tratamento daquilo que o Estado francês – que em meio ao século XIX se encontrava em desabrida instabilidade dado à sucessão de processos revolucionários que reforçaram a tese de repúblicas repressoras e monarquias algo mais condescendentes – opera de forma particular ao dar vazão à acusação que utiliza o vocábulo seita. Na verdade, parece haver uma tensão entre a declaração que afirma todos serem irmãos diante Deus e a Natureza, signo de universalizado, inclusive do ponto de vista da mediação técnica na generalização da pedagogia de massa, contraposto ao nacionalismo de igreja que tanto parece se esforçar em encontrar o estrangeiro como agente fora-da-lei, e vice-versa. O estrangeiro figura como inimigo e, nos momentos específicos, como falso filho da pátria, isto é, como traidor que somente pode sê-lo na medida em que pode ser descoberto – porta uma identidade falsa, ainda que seja nascido na França e filho de franceses numa linhagem de quinze gerações. E aquilo que parece precisar de um severo descortino das camadas de arquivos para demonstrar as implicações tem, numa determinada passagem de Michel de Certeau, um desenho que quero compreender melhor dado que considero promissor. Trata-se do ensaio de abertura de La faiblesse de croire, do ensaio chamado Une figure énigmatique. A tradução é minha. Desculpem.
           
            “A atualidade dá à vida religiosa uma nova fisionomia. Os religiosos e religiosas heroicos, veneráveis, odiosos ou excepcionais, povoam a história. Todavia todos parecem portar um sinal que assusta. Como o padre, ainda não exatamente pelas mesmas razões, o religioso intriga mais do que provoca temor ou respeito. Ele se junta ao selvagem e ao feiticeiro no Folclore que é o próprio interior da França. Sua personagem tem mais valor como enigma do que como exemplo. Porta a figura da estranheza, ainda que ambígua que designa a cada vez um segredo importante e um passado revolvido. Ele fascina como qualquer coisa escondida ao mesmo tempo em que tem o estatuto de objeto obsoleto, tal como uma relíquia de sociedades desaparecidas. Quem é esta, a figura enigmática? “(1987:25)

            De acordo com o signo da estranheza, do que é escondido, a figura selvagem do estrangeiro mesmo que em seu próprio país, ou do campagnard sorcier presentes no arco de estudos que vão desde Jules Michelet e Anatole Le Braz até os mais recentes esforços de Jeanne Favret-Saada, identifica o povo que segue estrangeiro em seu próprio país, da mesma forma que o religioso que vive a religião sem necessariamente organiza-la na forma de uma igreja, se transformando assim num embaraço comunicativo do tipo que diz que Jesus falou comigo. Ele interrompe uma certa ordem na medida em que atravessa relações de diferenciação de papéis sociais e faz apelo a uma unidade imprevisível com Deus – este estrangeiro por excelência, insiste Marcel Gauchet. Uma vez posta a ordem em que são distribuídos os papéis, toda relação imediata com o sentido refaz o percurso da heresia ou, no caso mitigado, da heterodoxia. Mas não se trata mais de uma relação com a hierarquia da igreja, mas de ser parte da população. 

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