DE CERTEAU,
Michel. La faiblesse de croire.
Seuil. Paris. 1985.
Serão cinco anos envolvido com a mesma pesquisa. De uma forma
geral eu tenho evitado fórmulas expressas que definam movimentos abrangentes,
com envergadura muito maior do que consigo, de fato, cobrir. Ainda assim,
quando li o artigo de Michel de Certeau sobre a moralidade das práticas e que
ele faz um passeio peculiar sobre a França moderna, o mesmo De Certeau sugere
uma passagem interessante que em muito tem a ver com as correntes marinhas mais
profundas para as quais quero chamar a atenção algum lugar do futuro, quando
souber fazê-lo. Ao descrever uma série de transformações que acompanha parte de
uma historiografia consagrada sobre a modernização das instituições que conta
com nomes como os de Lucien Febvre e Robert Mandrou, em um dado momento leio a
passagem que afirma a transformação não tão lenta assim das considerações sobre
heresia e seu risco para a ordem do mundo sendo lentamente transferidas para a
problematização da alteridade. A modernidade, aqui, marcaria a cessão da forma
territorial da igreja para a constituição do espaço administrado com vistas na
otimização das relações de governo em que o cálculo dos prejuízos das guerras
civis, enormemente marcada pela empreitada das guerras religiosas, transforma
em ordem civil alguns dos predicados que poderíamos encontrar na Lettre sur la tolérance de Voltaire.
Nisso, o movimento de reconhecimento da pluralidade religiosa fortemente
tematizada nas sessões parlamentares sobre a liberdade de culto público durante
a Revolução francesa confere à divergência religiosa o pressuposto de
diversidade de opinião. O primeiro efeito disso, desejaria o Iluminista de
primeira hora, seria de exterminar com a justificativa religiosa para a
violência de larga escala.
Ao ter o
discurso e a vida religiosa mitigada ao plano da variedade das formas de vida
presentes a serem administradas por uma outra estância, impessoal e terrena, a
interrupção fundamental da coesão doutrinal chamada heresia é diluída junto com
o peso da doutrina professada. Nada mais de casos como a dos valdenses ou dos
cátaros, e nada mais de massacres em nome da cruz, reduzida a mera
justificativa. Há quem goste de chamar este período de democratização e,
outros, do gérmen da pluralidade religiosa. Como não sou bom em prognósticos
retroativos, prefiro chamar este movimento de criação de um novo problema. A
questão das seitas religiosas e a suspeição ao seu redor constitui um outro
desdobramento a ser considerado nesta história, a mesma suspeição de toda forma
de experiência que não pode ser livremente comunicada, como a loucura, a
epifania, a certeza e, porque não, o amor.
O tratamento
daquilo que o Estado francês – que em meio ao século XIX se encontrava em
desabrida instabilidade dado à sucessão de processos revolucionários que
reforçaram a tese de repúblicas repressoras e monarquias algo mais
condescendentes – opera de forma particular ao dar vazão à acusação que utiliza
o vocábulo seita. Na verdade, parece
haver uma tensão entre a declaração que afirma todos serem irmãos diante Deus e
a Natureza, signo de universalizado, inclusive do ponto de vista da mediação
técnica na generalização da pedagogia de massa, contraposto ao nacionalismo de
igreja que tanto parece se esforçar em encontrar o estrangeiro como agente
fora-da-lei, e vice-versa. O estrangeiro figura como inimigo e, nos momentos
específicos, como falso filho da pátria, isto é, como traidor que somente pode
sê-lo na medida em que pode ser descoberto – porta uma identidade falsa, ainda
que seja nascido na França e filho de franceses numa linhagem de quinze
gerações. E aquilo que parece precisar de um severo descortino das camadas de
arquivos para demonstrar as implicações tem, numa determinada passagem de
Michel de Certeau, um desenho que quero compreender melhor dado que considero
promissor. Trata-se do ensaio de abertura de La faiblesse de croire, do ensaio chamado Une figure énigmatique. A tradução é minha. Desculpem.
“A atualidade dá à vida religiosa uma nova
fisionomia. Os religiosos e religiosas heroicos, veneráveis, odiosos ou
excepcionais, povoam a história. Todavia todos parecem portar um sinal que
assusta. Como o padre, ainda não exatamente pelas mesmas razões, o religioso intriga mais do que provoca temor ou
respeito. Ele se junta ao selvagem e ao feiticeiro no Folclore que é o próprio
interior da França. Sua personagem tem mais valor como enigma do que como
exemplo. Porta a figura da estranheza, ainda que ambígua que designa a cada vez
um segredo importante e um passado revolvido. Ele fascina como
qualquer coisa escondida ao mesmo tempo em que tem o estatuto de objeto
obsoleto, tal como uma relíquia de sociedades desaparecidas. Quem é esta, a
figura enigmática? “(1987:25)
De acordo
com o signo da estranheza, do que é escondido, a figura selvagem do estrangeiro
mesmo que em seu próprio país, ou do campagnard
sorcier presentes no arco de estudos que vão desde Jules Michelet e Anatole
Le Braz até os mais recentes esforços de Jeanne Favret-Saada, identifica o povo
que segue estrangeiro em seu próprio país, da mesma forma que o religioso que
vive a religião sem necessariamente organiza-la na forma de uma igreja, se
transformando assim num embaraço comunicativo do tipo que diz que Jesus falou comigo. Ele interrompe uma
certa ordem na medida em que atravessa relações de diferenciação de papéis
sociais e faz apelo a uma unidade imprevisível com Deus – este estrangeiro por
excelência, insiste Marcel Gauchet. Uma vez posta a ordem em que são
distribuídos os papéis, toda relação imediata com o sentido refaz o percurso da
heresia ou, no caso mitigado, da heterodoxia. Mas não se trata mais de uma
relação com a hierarquia da igreja, mas de ser parte da população.
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