“Confesso
que não entendo bem. Li quando era mais novo numa edição daquelas que levamos a
sério porque parecem feitas no escuro, às escondidas enquanto as tropas passam
na rua. Quando comprei já estava cheia de vincos.”
“Você
sempre fala um negócio horroroso nessas horas.”
“É.
Estou tentando lembrar como foi que eu escrevi sobre o livro. Algo do tipo:
capa em vinho com um projeto gráfico apressado feito por quem queria gritar ao
invés de desenhar.”
“Sério?”
“E
li aquilo que parecia uma daquelas traduções de urgência, um plano secreto...
com 3 mil exemplares impressos. Esse tipo de segredo posto a público.”
“Se
quiser esconder um segredo, revele a verdade? É sério que estamos falando sobre
isso?”
“E
aí tinha aquela história sobre revelar a potência do corpo quando da doença.”
“Olha.
Não acho que é a melhor hora.”
“Dá
pra conversar feito gente ou vai ficar me censurando? Incrível!”
“...”
“Porque
gosto da idéia. Nem me lembro de quem é o livro...”
“Nietzsche.
Ecce Homo.”
“Não
importa. Não importa quem era. Aliás, a única coisa lúcida que este sujeito fez
foi abraçar o cavalo açoitado antes de simplesmente vegetar. Mas eu acho que
isso começa a fazer algum sentido pra mim, digo, só haver saúde na doença.
Porque algumas coisas ficam mais urgentes quando se está aqui, sem urgência
alguma. Tempo tirado da caixa d’água a golpes de colher de café. E nisso, de
comer e dormir, eu fico suscetível. Desde sempre. Uma camada da pele evapora e
tudo começa a transitar, não importa a distância, tudo fica mais sensível.
Ficar doente sempre me transformou num pervertido moral e começo a acreditar
que a perversão é a evaporação de uma camada da pele. Tudo dói mais, tudo
reverbera e transborda. Ficar doente tira dois palmos de altura da borda da
piscina, sabe? Não tem mais certo e errado com clareza porque entra tudo, de
perto e de longe, e sai tudo. Vulnerável e insaciável podem ser postos no
dicionário de sinônimos. Sempre arrisquei delirar em febre por causa de um
toque a mais. Cada micro-orifício da pele é um foco de dor e uma zona erógena.
É o que a evaporação de uma camada da pele faz e é ela que precisamos
restabelecer quando a doença vai embora. Senão viramos doentes morais querendo
tocar a tudo e a todos com tudo o que temos, exatamente como quando da doença.”
“Gênio.
Você é simplesmente genial.”
“Sei
que isso não é assim, diabos. Sei que não é assim e que não é real, que a pele
não evapora. Mas a figura faz sentido, digo, que doente o corpo fica permeável.
Fico imaginando a hora da morte, especialmente de uma morte violenta como o
corpo deve ficar poderoso antes de se desfazer imediatamente. Deve ficar
calcinado pelo próprio vapor que libera.”
“Vou
procurar um cavalo pra você.”
“Vá
se foder.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário