quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Notas do subterrâneo: o sonho perféctil da bala sem rumo


[REYNAUD, Jean. Terre et ciel. Philosophie Religieuse. Furne et Cie. Éditeurs. Quarta edição. 1863.


NOTA: sonho de um perfeccionário:

 “Quand je juge de ce qui doivent se dérouler devant lui ? Quand je juge de ce qui se fera d’ici à huit ou dix mille ans ou même davantage, d’après ce qui fait depuis une centaine d’années que l’industrie a décidément commencé son mouvement, je n’hésite point, je l’avoue, à lâcher à mon imagination toutes les brides ; et pour l’Océan en particulier, je m’aventure sans peine jusqu’à rêver quelque invention pas laquelle on arriverait à le mettre aux prises avec la chaleur centrale ; et dès lors, du sein de ces masses maintenant inertes, voyons, s’il vous plaît, jaillir à volonté les transformations les plus extraordinaires dans les conditions de l’existence de l’homme sur sa planète. Ne fût-ce même là qu’une fantaisie poétique, que cette fantaisie serve du moins à nous peindre la témérité qu’il y aurait à condamner, comme incommode et inutile, une ordonnance dont nous ne sommes nullement assurés jusqu’ici de connaître le fond. »(op.cit. : 67)]


                O primeiro desdobramento do sonho perféctil é exatamente o da indústria, digo, a capacidade de criar, de produzir, de saber-fazer. O que Reynaud sugere é que não obstante sermos capazes de vivermos num determinado ambiente com o qual temos um dado grau de acordo formal, este mesmo acordo não é suficiente para caracterizar a atividade humana. Isso porque, e o exemplo é do mesmo Reynaud, ao perdermos diariamente a luz solar que nos envolve no breu ou na luz pálida da lua, revestimos outros ambientes mais próximos de nós de forma a produzirmos a luz que então nos é necessária. Não é o caso de simular luz, mas de produzir aonde, sem a indústria não haveria senão breu. De alguma forma, não é difícil estender esta filogênese da indústria até o equipamento laboratorial ou à toda gama de atividades de ensaio que são, nestes termos o mesmo que produção (op.cit.: 70-72). O privado e o público podem sofrer um gradiente delicado que se estende, mais uma vez, até o natural que fará as vezes, ora e vez, de terra selvagem em termos muito precisos.

                   “De plus, comme toutes nos affaires, hors de nos domiciles, ne nous appellent pas nécessairement dans la campagne ; comme les voies publiques sont, aussi bien que nos appartements, un terrain limité dont la fréquentation est continuelle ; comme il y a enfin une sortie d’intermédiaire entre nos possessions domestiques et celles où nous ne pouvons songer à dompter aussi absolument la nature, il nous reste, si je puis ainsi dire, la ressource de prolonger nos toits au delà de nos maisons. »(op.cit. :72)

                   E então a vida moral do laboratório encontra uma forma de filogênese, ao mesmo tempo em que a extensão do espaço doméstico constitui aquilo que, logo mais será a construção de meios para que possa haver o transporte – a transmigração. Contudo, a partir de um determinado ponto, a extensão acaba e então, escreve Reynaud, estamos mais uma vez entregues à tirania da natureza. Contra a tirania, o melhoramento:

                   “Mais, de quelque végétaux que l’homme parvienne à enrichir encore ses champs et ses jardins ; de quelques animaux, transformés pas sa discipline, qu’il imagine d’accroître ses basses-cours, ses haras, ses troupeaux ; en un mot, sans le détailler, quelques acquisitions qu’il lui reste à faire dans le monde sauvage, on ne peut douter qu’il n’y ait un limite à laquelle il doive s’arrêter, et qu’il  ne lui soit par conséquent interdit de tenir jamais sous sa main et à son profit tout ce qui existe autour de lui sur la terre. Ne seraient-ce que ces armées de mollusques et de zoophytes qui habitent dans les incultures de l’Océan, une fraction considérable du peuple de la planète semble trop étrangère à l’homme pour ne pas conserver à perpétuité son indépendance native; et il est même presque évident que, pour achever de nous établir convenablement sur la terre, nous n’avons pas moins de races à éliminer qu’a soumettre.» (op.cit. 85).]

Está em causa a posse da terra. 

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Notas feitas no claustro da torre: o vento sopra, uma folha é uma corda vocal


[NOTA:MICHELET, Jules. La sorcière – nouvelle édition critique avec introduction, variantes et examen du manucrit. Wouter Kusters. Nijmegen. Préface Walterus Albertus Henricus Maria Kusters. 1989.
____________________. Histoire de la Révolution Française. Bouquins Robert Laffont. Paris. 1979.
Como o percurso que eu me permito percorrer incorpora minhas mais do que notórias limitações no exercício historiográfico, isto é, não me dedico à historiografia plenamente, mas a um exercício de investigação que recorre a deslocamentos que se orientam em uma cronologia particular, há algo que tenho sido obrigado a fazer. Entendendo me ser obrigatório um determinado exercício empático que, para todos os efeitos deve se manifestar de forma clara numa determinada expressão, estou me permitindo levar mais a sério algumas ressonâncias que um historiador responsável não se permitiria. Estou atrás de algumas reverberações características de uma conversação cujo assunto eu não estou exatamente consciente de qual é, mas começo a desconfiar que em pouco não somente estarei algo inteirado, como entenderei uma ou outra piada. E tudo começa com minha decepção com as biografias de Allan Kardec que, de uma forma geral, não me permitem participar do papo, me deixam meio que de fora de tudo e fico avulso. Não gosto de ficar avulso. Assim, começo a fazer o exercício de extrapolar Allan Kardec e procura-lo em outras pessoas, inclusive nele mesmo, quando jovem. Forçar a barra na repetição daquele que se consagra como redator de uma doutrina espírita que colige uma enormidade de versões emitidas por vocês mediadas por corpos alheios com a finalidade de capturar de alguma forma aquilo que diz o Espírito da Verdade, fonte inestimável de seus livros – bem ao contrário das fontes irregulares dos artigos da Revue Spirite.

            O caso é que as biografias de Kardec decepcionam. Ou porque são demasiado aliadas do mestre, e tudo o que fazem é narrar como o notável Rivail se transformou em Kardec, ou feitas muito tempo depois, quando os arquivos de Kardec haviam sido majoritariamente destruídos em razão dos conflitos durante a Segunda Guerra Mundial, tudo o que fazem é narrar, de outra forma, como o notável Rivail se transformou em Kardec. Assim, precisei conversar com o sujeito para além da fonte bibliográfica, ainda que não tenha recorrido a nenhuma mesa branca. Ainda não.
            Na verdade, o que estou fazendo, e começa a dar resultado, é procurar as afirmações, métodos e anseios de Kardec em outros redatores que compartilhavam, parcial ou integralmente o mesmo círculo socialista e republicano do qual o ex-Rivail fizera parte. E começo a ler em Michelet a repetição daquilo que vejo em passagens em Le Livre des Esprites. Por exemplo, o caráter de coleção de relatos que o livro supracitado tem. Vejamos o que diz Michelet, no prefácio da Histoire de la Révolution Française, sobre os procedimentos de pesquisa:

            “Pour le fait capital, mon récit, identique aux actes mêmes, est aussi immuable qu’eux. J’ai fait plus que d’extraire, j’ai copié de ma main (et sans y employer personne) les textes dispersés, et les ai réunit. Il en est résulté une lumière, une certitude, auxquelles on ne changera rien. Qu’on m’attaque sur le sens des faits, c’est bien. Mais on devra d’abord reconnaître qu’on tient de moi les faits dont on veut user contre moi. » (1979 :44-45).

            Encontrar Kardec neste trecho demanda um pouco de exercício. E se o processo de demonstração é longo de mais é porque a analogia existe mais deste lado do que do lado de lá. Estaria forçando a barra, obrigando Michelet a dizer coisas que ele não disse. Assim, diz  a boa educação, e um determinado método humanista de interrogatório, que é melhor deixar falar. No mesmo prefácio à edição de 1868, um ano antes da morte de Kardec, ele segue, ainda, sobre os arquivos:

            “La poussière du temps reste. Il est bon de la respirer, d’aller, venir, à travers ces papiers, ces dossiers, ces registres. Ils ne sont pas muets, et tout cela n’est pas si mort qu’il semble. Je n’y touchais jamais sans que certaine chose sortît, s’éveillât… C’est l’âme. » (op.cit. :45)

            Michelet fala com a alma. Tanto no sentido da empatia que se traveste numa expressão refletida e bem medida quanto àquilo que deve dizer, como no sentido positivo do termo, isto é, que há algo na crítica das fontes que é falar com as fontes do outro lado, que é contatar diretamente o evento do registro sendo que isso é uma conversa com alguém. Seguramente não oferece, por esta via a totalidade dos testemunho possíveis, mas apresenta a totalidade dos testemunhos dados, o que já é muito ainda que seja sempre a fonte da decepção da historiografia em geral para quem o empírico sempre fala pouco demais, como se um documento estivesse lá para responder aos nossos próprios problemas e não aos problemas deles. Por isso é importante deixar falar. Porque só assim, se eu deixar de lado a metáfora da citação acima, ou ao menos não trata-la como tal exatamente como o fez Robert Darnton na introdução de seu Iluminismo como negócio, que uma terceira passagem de Michelet ganha uma outra dimensão, deixando mais claro o que é preciso saber para conversar a conversa que se conversa lá – que não é como gorjeiam cá.
            Michelet, em La Sorcière, enfrenta a empreitada de revigorar a impressão a respeito do paganismo que, de uma forma geral é entendido como a religião natural,  ou da natureza. Em outras palavras, é a forma privilegiada de compreender os percursos da vida moral do povo, a quem dedica outra obra de primeira grandeza. O paganismo vive sob a égide do satanismo que, todavia, não sendo senão uma acusação operada por um dogma da igreja – digo, da instituição sociológica com relação à qual Troeltsch classifica como a conformação das formas eclesiásticas -, uma vez livre do impedimento inquisitorial pode voltar a ser o que fora antes. O mesmo pode ser feito pelo diabo que, na vida pagã do espírito volta a ser o senhor dos mortos, definindo um outro caminho para a escatologia.

            « Maintenant qu’on l’a précipité tellement vers son déclin, sait-on ben ce qu’on fait là ? – N’était-il pas un acteur nécessaire, une pièce indispensable de la grande machine religieuse, un peu détraquée aujourd’hui ? – Tout organisme qui fonctionne bien est double, a deux côtés. La vie ne va guère autrement. C’est un certain balancement de deux forces, opposées, symétriques, mais inégales ; l’inférieure s’impatiente, et veut la supprimer. – A tort.
            Lorsque Colbert (1672) destitua Satan avec peu de façon en défendant aux juges de recevoir les procès de sorcellerie, le tenace parlement Normand, dans sa bonne logique, montra la portée dangereuse d’une telle décision. Le Diable n’est pas moins qu’un dogme, qui tient à tous les autres. Toucher à l’éternel vaincu, n’est-ce pas toucher au vainqueur ? Douter des actes du premier, cela mène à douter des actes du second, des miracles qu’il fit précisément pour combattre le Diable. Les colonnes du ciel ont leur pied dans l’abîme. L’étourdi qui remue cette base infernale, peut lézarder le paradis.
            Colbert n’écouta pas. Il avait tant d’autres affaires. – Mais le diable peut-être entendit. Et cela le console fort. Dans les petits métiers où il gagne sa vie (spiritisme ou tables tournantes), il se résigne, et croit que du moins il ne meurt pas seul. » (1989 :146-147)

O resto se dá como segue, em que, imagino, uma conversa direta com o espírito se dá; minha com Michelet; Michelet com Kardec; Kardec com os espíritos, todos nós numa mesa de bar, ou mesmo numa cave, às escondidas, que é pra ninguém nos ouvir e nos internar em selas químicas injetáveis. 

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Antropólogo de boutique, filósofo de boutique, antropólogo de gabinete


            O exercício é já coisa antiga, ainda que para dizê-lo eu tenha que pedir permissão aos modernos. É antiga porque já dura algum tempo, contam-se mais de 3 séculos. Para os antigos, por sua vez, é coisa nova e marca a data de uma exceção histórica e, no final das contas estão todos querendo bater o martelo. Não à moda de Nietzsche, mas encapuzados de perucas de fios brancos e uma toga encharcada pelo odor de naftalina. Imediatamente apelo aos nomes de Charles de Brosses e de David Hume – são meus exemplos do excesso de juízo. Isso porque cada um faz demandas exaltadas com relação àquilo que hoje, depois de um longo processo de diluição das heresias, há quem venha chamar de alteridade. Como a palavra é cara, e dura tão pouco quanto a remissão à identidade, tenho preferido evita-la. Mas aqui, é impossível.
            Hume redigiu, dentre tantas coisas, seu Dialogues on Natural Religion ainda no começo do século XVIII. Quando este opúsculo veio à luz muita água já havia passado de baixo da ponte, inclusive o rio. Seu Treatise on human nature já havia sido esquartejado em dois tratados mais leves – sobre o entendimento humano e sobre a moral. Ele mesmo já havia redigido uma carta em que assinava com um nome falso, na qual veio a defender sua própria obra, não raramente acusada de herética, ímpia ou outro sinônimo parcial– assinara como cônego anônimo. Ao mesmo tempo a mesma obra soara redentora para outro grupo, aqueles que acordaram do sono dogmático, como é o caso de Immanuel Kant. Nos diálogos, encontramos um caso particular de dois pesos, duas medidas. Este caso nos interessa, porque é um movimento que é característico da formulação moderna, seja ela relativista ou não. Os ecos são, para todos os efeitos, bastante frequentes.
            Os diálogos retratam o problema do ensino religioso, seu lugar diante da emergência de uma diversidade disciplinar que coloca a revelação, a eucaristia e o conteúdo dos milagres sob severa suspeição. Entendendo que existe uma diferença substantiva entre o Natural e o Revelado, Philo, Demea e Cleanthes travam neste diálogo uma batalha nada banal com relação à educação dos mais jovens, assim como com relação àquilo que deveria ser priorizado: a leitura abstrusa dos símbolos e exegeses de textos sagrados ou a orientação por via da investigação das leis que regem a vida natural. Em outras palavras, caberia seguir pela via da exceção que preside a intervenção divina direta ou singrar pela natureza e sua regularidade mais doce e previsível? Ainda que o diálogo mostre com clareza qual é a posição de Hume – aliás muito bem definida no capítulo sobre os milagres em Essay concerning human understanding -, no final do livro ele prefigura aquilo que chamaremos, nos anos 1990 de terceira via. Ne um, nem outro para fugir da condenação expressa, a mesma que o fez produzir a farsa de sua defesa pública por via de uma identidade falsa. O mesmo capítulo dos milagres no Essay segue por esse caminho do meio, porque ainda que juízos sobre a intervenção divina merecessem ser considerados meros erros de analogia da parte de um ente cognicente qualquer, o episódio longo do jansenismo em Paris sugeria alguns obstáculos para a exclusão da exceção como terreno relevante. O que marca o percurso de Hume, ou ao menos o que é mais conveniente para aquilo que quero dizer, é que o mesmo Hume redige uma série de demandas à cognição a ponto de estar inaugurando, junto a uma série de outras figuras do Aufklarüng, o que veio a ser batizado como teoria do conhecimento que, à moda das exceções pretendia ser imune à metafísica.
            Contemporâneo, ainda que francês numa França parcamente existente na dispersão de regiões em conflito administrativo – para dizer o mínimo -, Charles de Brosses toma a forma de uma versão materialista do mesmo movimento. É dele o pequeno livro que estabelece o conceito de fetiche que veio a se transformar numa festa moderna em que marxistas e cristão puderam comungar numa orgia láctea, risonha e acusatória com relação à ignorância alheia. Quero notar que em geral a acusação de fetichismo culmina num teatro mutualista em que as tentativas de extermínio um do outro se desdobram em uma forma perversa de retroalimentação, que se repete no retorno persistente da polícia dos erros de analogia. O fetiche é um conceito que serve a este propósito ao apontar para este tipo de erro, que imputa a um objeto qualquer capacidade de agência, o que em geral também recebe o nome de animismo. A modernidade se transforma na era em que se expande e se acelera o aggiornamento do pecado da idolatria fazendo com que a exceção seja o legado da contra-acusação protestante, assim como a eliminação de todo o erro que não seja científico seja a oferenda da parte do Aufklarüng – porque a questão não é mais sobre quem está certo, mas sim sobre quem é que pode errar, ou qual erro se justifica. Seguramente, não os negros africanos.
            O Petit reflexion sur les dieux fetiches de De Brosses faz uma investigação meticulosa nas fontes documentais da Nigritia, território compreendido em boa parte da faixa centro-oeste da áfrica subsaariana de onde os documentos de exploradores e viajantes de fins do século XVII e do século XVII traziam novidades. Dado que De Brosses era filólogo do tipo que precipitou na França orientalista, e ele mesmo um libertino, não é difícil imaginar que a crítica à instituição eclesiástica se transformou na condenação moral, digo, epistemológica da variedade das formas religiosas. Assim, os cultos aos deuses fetiches, cuja forma materialista se resume a um conjunto de homens cometendo o equívoco performático de falar com uma pedra, são reunidos à condenação da ordem eclesiástica e de todos os discursos promovidos em favor de sua justificação. Invariavelmente, porém, a fonte dos desmandos eclesiásticos e a transformação da ordem religiosa em Guerras de mesmo nome reside no mesmo problema, na falta de exercício da inteligência, na instituição dos erros de analogia. De Brosses produz um protótipo da filosofia da história positivista em que toda a humanidade parece estar dedicada a resolver os mesmos problemas e, por isso, tentando responder às mesmas questões de base. Infelizmente, algumas com pouco sucesso. Mas aqui, não me refiro aos negros africanos presentes no libelo racionalista de De Brosses, mas sim ao próprio De Brosses que, eivado da mesma ignorância que condenava discute elementos de um país que só existiu na cartografia européia. No termos que o próprio De Brosses condena o fetichismo, seu tratado é resultado da mais simples das imperícias: não sabia de quem estava falando.
            Não é preciso ser nenhum gênio para perceber que há uma dessimetria neste caso – digo, mesmo Bruno Latour percebeu haver um problema neste movimento. Quando Hume faz a acusação contra os milagres, o animismo que vige na esfera do meramente primitivo é colocado no mesmo pacote da condenação do religioso. E aquilo que Hume faz por reflexo, De Brosses faz com dedicação monográfica. Contudo, nesta ordem da acusação mais dedicada à polícia dos erros de analogia percebe-se o caminho que conduz ao mais agressivo modo de vigília dos relatos em história natural e ciências laboratoriais que serve de modelo de conduta dos nossos dois heróis. Contudo, eles mesmos não tiveram o mesmo cuidado com a descrição dos diversos povos espalhados num globo terrestre que sofria a intervenção europeia das navegações, da mercancia e, por fim, da sifilização. A crítica de todas as formas de análise e dos relatos de observadores que soube descortinar relatos mais ou menos adequados sobre o gelo ártico, como o fez Robert Boyle, não se preocupou em  questionar o modo de análise dos viajantes em coisas básicas como: eles sabem que vivem na Nigritia?  Foi preciso esperar que alguém como De Gérando redigisse um manual da observação dos povos para que a discussão atingisse um outro tipo de problematização, não vindo a reduzir a variedade da conduta moral aos erros crassos fazendo da variedade humana um apêndice da péssima compreensão que Hume e De Brosses tinham da vida religiosa e, no pacote, toda forma de alteridade. Não que isso fosse um problema porque, como já disse, a história moderna é a história de quem pode errar, e não a de quem tem razão.
            O caso é que a variedade moral dos povos continua refém de uma disputa de tipo Antigos e Modernos segundo os termos postos pelos modernos. E não é difícil entender isso. Quando cito a reticência de Hume diante o jansenismo e o caso das convulsões milagrosas na Paris do século XVIII, é porque é a qualidade dos relatos e a lisura daqueles que atestam a ocorrência de curas milagrosas ao redor do túmulo de De Paris é que faz com que Hume possa recuar, ou ao menos desacelerar o avanço da nova epistemologia em mares desde antes navegados. Há coisas que talvez mereçam uma segunda análise. Nisso incluo os milagres e, seguramente, os relatos que descrevem a vida moral dos povos mais diversos – especialmente aqueles que não desenvolveram, muitas vezes por uma escolha ético-moral, não desenvolver a forma monumental do império.
            É de Marshall Sahlins a afirmação de que a história dos povos americanos não começou em 1492, com a chegada de Colombo, assim como é de Eduardo Viveiros de Castro a emenda, mais do que adequada, de que é aí que a história de muitos deles acabou. A marca de 1492 não indica um ano fatídico somente, mas o começo de um processo no qual, no decorrer de 5 séculos, o extermínio seguiu com desenvoltura e graça, para não dizer com a mais deslavada campanha publicitária. Desde as de colonização sanguinolentas conduzidas à toque de cavalaria nos Estados Unidos da América e na Argentina do pampa e planalto pré-andino até  a incorporação à nova ordem colonial que se deu na Nova Espanha, o rumo da história colonial tem notas que são tão diversas quanto esta diversidade é, como sói ao mundo, cruel. O mundo é vasto e a fortuna das populações americanas, para me restringir somente à elas, é profundamente desigual. Do extermínio real e da impossibilidade de se declarar autóctone sob pena de morrer, até a constituição de linhagens em posse de haciendas e cassinos, uma coisa deve ser marcada: a vida moderna não lhes deu trégua. Não que tenha dado a alguém, mas no caso esta é uma festa em que foram obrigados a entrar justamente para serem acusados de penetras. Afinal de contas, são eles os exemplos fracos daquilo que a Igreja Católica é o exemplo forte. Erro de analogia, um erro a ser corrigido, ignorado ou, como na maioria dos casos, apagado.
            Algumas perguntas muito simples poderiam, contudo, ter evitado esse tipo de interpretação mal-ajambrada de que seria possível reduzir a diversidade dos povos autóctones ao redor do globo a uma forma pálida de fraca de moral religiosa fetichista. Para qualquer pessoa que tenha passado 3, 4 dias em ambiente amazônico – sem mesmo entrar na floresta -, cabe perguntar como é possível que se possa viver nu e cercado por algo cuja beleza só pode ser equiparada à quantidade de riscos. E nu, aqui, ainda que com ressalvas de adorno e notas sobre estojos penianos que fariam qualquer articulista da Folha de São Paulo ter os sonhos mais selvagens, tem um valor importante no que diz respeito ao lugar do corpo humano na história natural. Afinal, se há algo que se repete à exaustão é justamente a ausência de aparelhos especializados em tarefas na composição da morfologia humana, como potência muscular, garras, presas, asas, ou mesmo o mais tolo caso de impermeabilidade da pele ou da capa de gordura que precisou esperar o advento da civilização americana para se constituir como característica morfológica da espécie. Recorrendo ao jargão de Georg Simmel, nascemos com péssimos a priori corporais porque são demasiado genéricos nos dando muito poucas soluções prontas. Assim, como é possível meramente sobreviver em ambientes inóspitos sendo, como determina a média da opinião moderna cristã ou iluminista, um imbecil que só faz produzir erros de analogia, ou uma criança? Esta questão que poderia ser lida como um apelo ao relativismo cultural é, no final das contas, coisa de outra sorte porque não é de mera sobrevivência que estamos falando. O que marca o juízo moderno com relação à esses povos em geral sequer dá conta do fato de que, de alguma forma, eles sobreviveram. O que dizer que, para além da sobrevivência, estes povos que, entre americanos, africanos, oceânicos e asiáticos – não esquecendo os exemplares europeus de populações selvagens – pareciam viver muito bem sem a presença da vida moderna vindo a produzir uma economia e um sistema de ornamentação da vida bastante independentes de tudo aquilo que as instituições basilares da vida moderna consideram absolutamente indispensáveis?
            Que se entenda que dar vazão a este tipo de problema abre margem para todo tipo de especulação, especialmente às de caráter utópico para as quais em artigo de 12 de outubro de 2012, Luiz Felipe Pondé chamou a atenção. Ressalta ele que atentar para a diversidade da manifestação da vida e reconhece-la como constituinte evoca, à forma do que ele chama de antropologia de boutique, uma pulsão irritante para que se mude o mundo à forma das heresias movidas pelo gnosticismo que tanto estiveram presentes na emergência da consciência revolucionária moderna. E quando alguém faz apelo para a atenção à diversidade da vida e o cuidado com ela, a repetição desta mesma acusação chega antes do que a própria atenção à vida. O peculiar é que parece impossível que se entenda que a atenção à vida pode simplesmente partir da constatação de que o mundo é grande sem querer muda-lo, ou pregar essa mudança segundo a exegese revolucionária. Ainda que seja ambiente para as formas caídas da existência, como pregaria o tipo de teologia dolorosa que agrada a figura de Pondé – Pascal, Dostoiévski, Cioran, Eliade -, o mundo segue grande e o repertório de motivações e interesses escapam da necessidade de conservar ou mudar o mundo no mesmo impulso que crava a modernidade indecisa entre Antigos e Modernos. Até porque, a relação entre mortos e vivos é muito mais interessante, incluindo aquela entre quem mata e quem morre e, não menos importante, a de quem deixa morrer. O que pode estar em questão é que a dilemas que evocam a prudência  em que é preciso ser prudente e em questões de urgência, para bom entendedor meia palavra basta.
            Mas é importante ressaltar uma coisa. Pondé não é importante. Nunca foi e nem pode ser. Ser importante como intelectual de opinião é, para todos os efeitos, a forma de fazer a inteligência escorrer lentamente incorporando toda forma de mau odor até chegar ao esgoto que lhe serve de destino. É isso que deveríamos considerar ao entendermos Pondé segundo Pondé. Não importa porque não há valor mais corrompido do que ser humano – e estou partindo do pressuposto de que ele o seja, humano e portanto, corrompido, mas não sei até onde seu ego lhe alçou. O que importa é outra coisa. O que importa é ver antipatias das mais comenzinhas se projetarem como algo mais importante que um massacre que reproduz em tempo real aquilo que muita gente imagina que somente os marxistas do comunismo real poderiam produzir. O que importa é ver disputas no seio dos corredores da USP serem mais decisivas do que as coincidências que fazem do texto de Pondé sobre os neo-Guarani Kayowa incrivelmente convenientes, e falo pasmado, ao modo desenvolvimentista a toque de caixa do Brasil contemporâneo que não escolhe partido e produz a aliança de todas as máfias que conheço feitas de forma devidamente contingente e em proporções cuidadosamente regionais, constituindo uma máquina de governo assustadora. Importa que por fim, haja concordância naquilo que gera uma aliança difícil de aceitar, que repete numa escala de valores própria da exceção moderna a ladainha monótona e assassina daqueles que tem o direito de errar. 


ou


É fácil ignorar um problema ao escolher o pior representante do mesmo - especialmente quando este  não existe.