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terça-feira, 14 de julho de 2015

De oito

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“Sinceramente, eu não sei o que dizer. Não sei por onde começar.” 

Deveríamos estar caminhando. Não conseguimos ainda dar o primeiro passo. A verdade é que quase começamos a chorar assim que colocamos os pés na rua. De minha parte, confesso, que me senti pressionado a fazer de seu choro o meu e então, chorar em coro. Da parte dele, não sei dizer. Não sei por onde começar.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Notas da Torre de Observação: La faiblesse de croire


DE CERTEAU, Michel. La faiblesse de croire. Seuil. Paris. 1985.

Serão cinco anos envolvido com a mesma pesquisa. De uma forma geral eu tenho evitado fórmulas expressas que definam movimentos abrangentes, com envergadura muito maior do que consigo, de fato, cobrir. Ainda assim, quando li o artigo de Michel de Certeau sobre a moralidade das práticas e que ele faz um passeio peculiar sobre a França moderna, o mesmo De Certeau sugere uma passagem interessante que em muito tem a ver com as correntes marinhas mais profundas para as quais quero chamar a atenção algum lugar do futuro, quando souber fazê-lo. Ao descrever uma série de transformações que acompanha parte de uma historiografia consagrada sobre a modernização das instituições que conta com nomes como os de Lucien Febvre e Robert Mandrou, em um dado momento leio a passagem que afirma a transformação não tão lenta assim das considerações sobre heresia e seu risco para a ordem do mundo sendo lentamente transferidas para a problematização da alteridade. A modernidade, aqui, marcaria a cessão da forma territorial da igreja para a constituição do espaço administrado com vistas na otimização das relações de governo em que o cálculo dos prejuízos das guerras civis, enormemente marcada pela empreitada das guerras religiosas, transforma em ordem civil alguns dos predicados que poderíamos encontrar na Lettre sur la tolérance de Voltaire. Nisso, o movimento de reconhecimento da pluralidade religiosa fortemente tematizada nas sessões parlamentares sobre a liberdade de culto público durante a Revolução francesa confere à divergência religiosa o pressuposto de diversidade de opinião. O primeiro efeito disso, desejaria o Iluminista de primeira hora, seria de exterminar com a justificativa religiosa para a violência de larga escala.
            Ao ter o discurso e a vida religiosa mitigada ao plano da variedade das formas de vida presentes a serem administradas por uma outra estância, impessoal e terrena, a interrupção fundamental da coesão doutrinal chamada heresia é diluída junto com o peso da doutrina professada. Nada mais de casos como a dos valdenses ou dos cátaros, e nada mais de massacres em nome da cruz, reduzida a mera justificativa. Há quem goste de chamar este período de democratização e, outros, do gérmen da pluralidade religiosa. Como não sou bom em prognósticos retroativos, prefiro chamar este movimento de criação de um novo problema. A questão das seitas religiosas e a suspeição ao seu redor constitui um outro desdobramento a ser considerado nesta história, a mesma suspeição de toda forma de experiência que não pode ser livremente comunicada, como a loucura, a epifania, a certeza e, porque não, o amor.
            O tratamento daquilo que o Estado francês – que em meio ao século XIX se encontrava em desabrida instabilidade dado à sucessão de processos revolucionários que reforçaram a tese de repúblicas repressoras e monarquias algo mais condescendentes – opera de forma particular ao dar vazão à acusação que utiliza o vocábulo seita. Na verdade, parece haver uma tensão entre a declaração que afirma todos serem irmãos diante Deus e a Natureza, signo de universalizado, inclusive do ponto de vista da mediação técnica na generalização da pedagogia de massa, contraposto ao nacionalismo de igreja que tanto parece se esforçar em encontrar o estrangeiro como agente fora-da-lei, e vice-versa. O estrangeiro figura como inimigo e, nos momentos específicos, como falso filho da pátria, isto é, como traidor que somente pode sê-lo na medida em que pode ser descoberto – porta uma identidade falsa, ainda que seja nascido na França e filho de franceses numa linhagem de quinze gerações. E aquilo que parece precisar de um severo descortino das camadas de arquivos para demonstrar as implicações tem, numa determinada passagem de Michel de Certeau, um desenho que quero compreender melhor dado que considero promissor. Trata-se do ensaio de abertura de La faiblesse de croire, do ensaio chamado Une figure énigmatique. A tradução é minha. Desculpem.
           
            “A atualidade dá à vida religiosa uma nova fisionomia. Os religiosos e religiosas heroicos, veneráveis, odiosos ou excepcionais, povoam a história. Todavia todos parecem portar um sinal que assusta. Como o padre, ainda não exatamente pelas mesmas razões, o religioso intriga mais do que provoca temor ou respeito. Ele se junta ao selvagem e ao feiticeiro no Folclore que é o próprio interior da França. Sua personagem tem mais valor como enigma do que como exemplo. Porta a figura da estranheza, ainda que ambígua que designa a cada vez um segredo importante e um passado revolvido. Ele fascina como qualquer coisa escondida ao mesmo tempo em que tem o estatuto de objeto obsoleto, tal como uma relíquia de sociedades desaparecidas. Quem é esta, a figura enigmática? “(1987:25)

            De acordo com o signo da estranheza, do que é escondido, a figura selvagem do estrangeiro mesmo que em seu próprio país, ou do campagnard sorcier presentes no arco de estudos que vão desde Jules Michelet e Anatole Le Braz até os mais recentes esforços de Jeanne Favret-Saada, identifica o povo que segue estrangeiro em seu próprio país, da mesma forma que o religioso que vive a religião sem necessariamente organiza-la na forma de uma igreja, se transformando assim num embaraço comunicativo do tipo que diz que Jesus falou comigo. Ele interrompe uma certa ordem na medida em que atravessa relações de diferenciação de papéis sociais e faz apelo a uma unidade imprevisível com Deus – este estrangeiro por excelência, insiste Marcel Gauchet. Uma vez posta a ordem em que são distribuídos os papéis, toda relação imediata com o sentido refaz o percurso da heresia ou, no caso mitigado, da heterodoxia. Mas não se trata mais de uma relação com a hierarquia da igreja, mas de ser parte da população. 

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Discurso de Morte de Matei Candea


“Hoje eu morro pela ação da forca. Estou diante de vocês, agora, sem máscara que impeça que vejam meu sofrimento derradeiro, pelo quê peço paciência. Logo mais, minha face será coberta para que não se veja que sorte de espetáculo meu rosto fará diante de vocês. Abusado, pode ofendê-los e então, antes que o momento de borrar a visagem com um capuz fedorento, peço, repito, um tempo de sua atenção. Porque não quero declarar inocência e tampouco pedir perdão, não pretendo chorar e tampouco negar, alegar falta de clareza em algum momento ou passagem do processo. Seria ocioso, desnecessário e não seria, de outra forma, honesto. Não sou inocente, ainda que não seja culpado daquilo que irá me matar, e isto quero notar. Não quero pedir perdão no momento derradeiro porque há muito troquei minha horas de sono pelas preces, pela redação das cartas em que pedi perdão sem nunca realizar o pedido de absolvição. Não tenho mais forças para chorar, o que se tornou um exercício ocioso desde então, chegando mesmo a me fazer acreditar que seria incapaz de produzir uma lágrima a mais. Não tenho mais fôlego para este último soluço. Não tenho como negar aquilo que é fato, é evidente e nunca neguei, assim como compreendo que o processo que me trouxe até aqui foi conduzido na mais profunda normalidade. E talvez, por isso, pretendo dizer minhas últimas palavras atravessando os seus olhos com os meus. São minhas últimas palavras, peço atenção. Não se trata de eu merecer ou não a pena, e nem se o mundo ficará mais leve, mais seguro com a minha ausência. A bem da verdade, essa alternativa é decididamente peculiar e não há muito a dizer quanto a ingenuidade de uma hipótese como esta. O caso é que farão comigo algo muito semelhante daquilo o que fiz, o que parece ser uma compensação adequada, no que no final das contas é de fato, uma soma, e não uma subtração. Serei mais um morto. O que quero saber, e morro sem jamais ter ouvido algo a respeito, é se estou em vias de morrer por ter sido condenado porque eu não tive forças de fazer a coisa certa na hora certa, ou se falta a vocês esta força que me faltou no derradeiro momento. Sei que agora é tarde. Nem espero que pensem sobre isso, a roda deve girar. Mas não estou seguro quanto a quem está em julgamento no ato de minha morte. Mas desconfio que aqui, amarrado a uma tábua prestes a morrer pelo pescoço, acabei me transformando num alvo fácil, e isso decididamente fere até mesmo minha condição animal. Isso não se faz.”

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

A vida com alarme


Era uma noite fria e escura. Ainda que tivéssemos aquecedor, luz elétrica, fonte regular de energia. Fria e escura. Não era menos noite fria e escura porque não estava, eu, no frio e no escuro. Ou que o frio e o escuro estivessem frequentemente fora de vista, intocados. Fazia frio, eu sabia. Ainda que inerte, encostado no canto do quarto, digitando toda sorte de coisas com vistas em passar o tempo lento das petites chambres, suando ao som das ondas de calor ejetadas de uma máquina seca, não era difícil induzir que algo ainda persistia, o que era o mesmo do que fora há 2, 3 horas atrás. As massas de ar são tão estáveis quanto os notórios limites da minha inteligência que, ainda que acorrentada pelo desinteresse, sabia. Era uma noite fria e escura. Era tudo o que eu poderia saber, tudo o que poderia passar, era tudo. Não era uma noite seca, não o suficiente para que fosse, noite e seca. Não chovia, não ventava, não se movia de si. Nem eu. E assim seguiu até que viesse a manhã que, por uma razão peculiar às longas noites de inverno, permitiu dizer que era um dia frio e escuro. O contágio se dá, às vezes, por inspiração, por um suspiro, por um espirro. E ficamos todos encostados no canto, frios e escuros protegidos pelo calor parado de um quarto pequeno, quente e iluminado. A isto quero chamar de laboratório. E ao resto, a vida de laboratório. Tão imediatamente quanto possível é preciso atentar à marca de que são quartos, quartos de dormir, salas de jantar, quartos, cuja regra básica de conduta está na observância das normas de segurança. Podem pegar fogo, e ninguém quer que isso aconteça. 

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Antropólogo de boutique, filósofo de boutique, antropólogo de gabinete


            O exercício é já coisa antiga, ainda que para dizê-lo eu tenha que pedir permissão aos modernos. É antiga porque já dura algum tempo, contam-se mais de 3 séculos. Para os antigos, por sua vez, é coisa nova e marca a data de uma exceção histórica e, no final das contas estão todos querendo bater o martelo. Não à moda de Nietzsche, mas encapuzados de perucas de fios brancos e uma toga encharcada pelo odor de naftalina. Imediatamente apelo aos nomes de Charles de Brosses e de David Hume – são meus exemplos do excesso de juízo. Isso porque cada um faz demandas exaltadas com relação àquilo que hoje, depois de um longo processo de diluição das heresias, há quem venha chamar de alteridade. Como a palavra é cara, e dura tão pouco quanto a remissão à identidade, tenho preferido evita-la. Mas aqui, é impossível.
            Hume redigiu, dentre tantas coisas, seu Dialogues on Natural Religion ainda no começo do século XVIII. Quando este opúsculo veio à luz muita água já havia passado de baixo da ponte, inclusive o rio. Seu Treatise on human nature já havia sido esquartejado em dois tratados mais leves – sobre o entendimento humano e sobre a moral. Ele mesmo já havia redigido uma carta em que assinava com um nome falso, na qual veio a defender sua própria obra, não raramente acusada de herética, ímpia ou outro sinônimo parcial– assinara como cônego anônimo. Ao mesmo tempo a mesma obra soara redentora para outro grupo, aqueles que acordaram do sono dogmático, como é o caso de Immanuel Kant. Nos diálogos, encontramos um caso particular de dois pesos, duas medidas. Este caso nos interessa, porque é um movimento que é característico da formulação moderna, seja ela relativista ou não. Os ecos são, para todos os efeitos, bastante frequentes.
            Os diálogos retratam o problema do ensino religioso, seu lugar diante da emergência de uma diversidade disciplinar que coloca a revelação, a eucaristia e o conteúdo dos milagres sob severa suspeição. Entendendo que existe uma diferença substantiva entre o Natural e o Revelado, Philo, Demea e Cleanthes travam neste diálogo uma batalha nada banal com relação à educação dos mais jovens, assim como com relação àquilo que deveria ser priorizado: a leitura abstrusa dos símbolos e exegeses de textos sagrados ou a orientação por via da investigação das leis que regem a vida natural. Em outras palavras, caberia seguir pela via da exceção que preside a intervenção divina direta ou singrar pela natureza e sua regularidade mais doce e previsível? Ainda que o diálogo mostre com clareza qual é a posição de Hume – aliás muito bem definida no capítulo sobre os milagres em Essay concerning human understanding -, no final do livro ele prefigura aquilo que chamaremos, nos anos 1990 de terceira via. Ne um, nem outro para fugir da condenação expressa, a mesma que o fez produzir a farsa de sua defesa pública por via de uma identidade falsa. O mesmo capítulo dos milagres no Essay segue por esse caminho do meio, porque ainda que juízos sobre a intervenção divina merecessem ser considerados meros erros de analogia da parte de um ente cognicente qualquer, o episódio longo do jansenismo em Paris sugeria alguns obstáculos para a exclusão da exceção como terreno relevante. O que marca o percurso de Hume, ou ao menos o que é mais conveniente para aquilo que quero dizer, é que o mesmo Hume redige uma série de demandas à cognição a ponto de estar inaugurando, junto a uma série de outras figuras do Aufklarüng, o que veio a ser batizado como teoria do conhecimento que, à moda das exceções pretendia ser imune à metafísica.
            Contemporâneo, ainda que francês numa França parcamente existente na dispersão de regiões em conflito administrativo – para dizer o mínimo -, Charles de Brosses toma a forma de uma versão materialista do mesmo movimento. É dele o pequeno livro que estabelece o conceito de fetiche que veio a se transformar numa festa moderna em que marxistas e cristão puderam comungar numa orgia láctea, risonha e acusatória com relação à ignorância alheia. Quero notar que em geral a acusação de fetichismo culmina num teatro mutualista em que as tentativas de extermínio um do outro se desdobram em uma forma perversa de retroalimentação, que se repete no retorno persistente da polícia dos erros de analogia. O fetiche é um conceito que serve a este propósito ao apontar para este tipo de erro, que imputa a um objeto qualquer capacidade de agência, o que em geral também recebe o nome de animismo. A modernidade se transforma na era em que se expande e se acelera o aggiornamento do pecado da idolatria fazendo com que a exceção seja o legado da contra-acusação protestante, assim como a eliminação de todo o erro que não seja científico seja a oferenda da parte do Aufklarüng – porque a questão não é mais sobre quem está certo, mas sim sobre quem é que pode errar, ou qual erro se justifica. Seguramente, não os negros africanos.
            O Petit reflexion sur les dieux fetiches de De Brosses faz uma investigação meticulosa nas fontes documentais da Nigritia, território compreendido em boa parte da faixa centro-oeste da áfrica subsaariana de onde os documentos de exploradores e viajantes de fins do século XVII e do século XVII traziam novidades. Dado que De Brosses era filólogo do tipo que precipitou na França orientalista, e ele mesmo um libertino, não é difícil imaginar que a crítica à instituição eclesiástica se transformou na condenação moral, digo, epistemológica da variedade das formas religiosas. Assim, os cultos aos deuses fetiches, cuja forma materialista se resume a um conjunto de homens cometendo o equívoco performático de falar com uma pedra, são reunidos à condenação da ordem eclesiástica e de todos os discursos promovidos em favor de sua justificação. Invariavelmente, porém, a fonte dos desmandos eclesiásticos e a transformação da ordem religiosa em Guerras de mesmo nome reside no mesmo problema, na falta de exercício da inteligência, na instituição dos erros de analogia. De Brosses produz um protótipo da filosofia da história positivista em que toda a humanidade parece estar dedicada a resolver os mesmos problemas e, por isso, tentando responder às mesmas questões de base. Infelizmente, algumas com pouco sucesso. Mas aqui, não me refiro aos negros africanos presentes no libelo racionalista de De Brosses, mas sim ao próprio De Brosses que, eivado da mesma ignorância que condenava discute elementos de um país que só existiu na cartografia européia. No termos que o próprio De Brosses condena o fetichismo, seu tratado é resultado da mais simples das imperícias: não sabia de quem estava falando.
            Não é preciso ser nenhum gênio para perceber que há uma dessimetria neste caso – digo, mesmo Bruno Latour percebeu haver um problema neste movimento. Quando Hume faz a acusação contra os milagres, o animismo que vige na esfera do meramente primitivo é colocado no mesmo pacote da condenação do religioso. E aquilo que Hume faz por reflexo, De Brosses faz com dedicação monográfica. Contudo, nesta ordem da acusação mais dedicada à polícia dos erros de analogia percebe-se o caminho que conduz ao mais agressivo modo de vigília dos relatos em história natural e ciências laboratoriais que serve de modelo de conduta dos nossos dois heróis. Contudo, eles mesmos não tiveram o mesmo cuidado com a descrição dos diversos povos espalhados num globo terrestre que sofria a intervenção europeia das navegações, da mercancia e, por fim, da sifilização. A crítica de todas as formas de análise e dos relatos de observadores que soube descortinar relatos mais ou menos adequados sobre o gelo ártico, como o fez Robert Boyle, não se preocupou em  questionar o modo de análise dos viajantes em coisas básicas como: eles sabem que vivem na Nigritia?  Foi preciso esperar que alguém como De Gérando redigisse um manual da observação dos povos para que a discussão atingisse um outro tipo de problematização, não vindo a reduzir a variedade da conduta moral aos erros crassos fazendo da variedade humana um apêndice da péssima compreensão que Hume e De Brosses tinham da vida religiosa e, no pacote, toda forma de alteridade. Não que isso fosse um problema porque, como já disse, a história moderna é a história de quem pode errar, e não a de quem tem razão.
            O caso é que a variedade moral dos povos continua refém de uma disputa de tipo Antigos e Modernos segundo os termos postos pelos modernos. E não é difícil entender isso. Quando cito a reticência de Hume diante o jansenismo e o caso das convulsões milagrosas na Paris do século XVIII, é porque é a qualidade dos relatos e a lisura daqueles que atestam a ocorrência de curas milagrosas ao redor do túmulo de De Paris é que faz com que Hume possa recuar, ou ao menos desacelerar o avanço da nova epistemologia em mares desde antes navegados. Há coisas que talvez mereçam uma segunda análise. Nisso incluo os milagres e, seguramente, os relatos que descrevem a vida moral dos povos mais diversos – especialmente aqueles que não desenvolveram, muitas vezes por uma escolha ético-moral, não desenvolver a forma monumental do império.
            É de Marshall Sahlins a afirmação de que a história dos povos americanos não começou em 1492, com a chegada de Colombo, assim como é de Eduardo Viveiros de Castro a emenda, mais do que adequada, de que é aí que a história de muitos deles acabou. A marca de 1492 não indica um ano fatídico somente, mas o começo de um processo no qual, no decorrer de 5 séculos, o extermínio seguiu com desenvoltura e graça, para não dizer com a mais deslavada campanha publicitária. Desde as de colonização sanguinolentas conduzidas à toque de cavalaria nos Estados Unidos da América e na Argentina do pampa e planalto pré-andino até  a incorporação à nova ordem colonial que se deu na Nova Espanha, o rumo da história colonial tem notas que são tão diversas quanto esta diversidade é, como sói ao mundo, cruel. O mundo é vasto e a fortuna das populações americanas, para me restringir somente à elas, é profundamente desigual. Do extermínio real e da impossibilidade de se declarar autóctone sob pena de morrer, até a constituição de linhagens em posse de haciendas e cassinos, uma coisa deve ser marcada: a vida moderna não lhes deu trégua. Não que tenha dado a alguém, mas no caso esta é uma festa em que foram obrigados a entrar justamente para serem acusados de penetras. Afinal de contas, são eles os exemplos fracos daquilo que a Igreja Católica é o exemplo forte. Erro de analogia, um erro a ser corrigido, ignorado ou, como na maioria dos casos, apagado.
            Algumas perguntas muito simples poderiam, contudo, ter evitado esse tipo de interpretação mal-ajambrada de que seria possível reduzir a diversidade dos povos autóctones ao redor do globo a uma forma pálida de fraca de moral religiosa fetichista. Para qualquer pessoa que tenha passado 3, 4 dias em ambiente amazônico – sem mesmo entrar na floresta -, cabe perguntar como é possível que se possa viver nu e cercado por algo cuja beleza só pode ser equiparada à quantidade de riscos. E nu, aqui, ainda que com ressalvas de adorno e notas sobre estojos penianos que fariam qualquer articulista da Folha de São Paulo ter os sonhos mais selvagens, tem um valor importante no que diz respeito ao lugar do corpo humano na história natural. Afinal, se há algo que se repete à exaustão é justamente a ausência de aparelhos especializados em tarefas na composição da morfologia humana, como potência muscular, garras, presas, asas, ou mesmo o mais tolo caso de impermeabilidade da pele ou da capa de gordura que precisou esperar o advento da civilização americana para se constituir como característica morfológica da espécie. Recorrendo ao jargão de Georg Simmel, nascemos com péssimos a priori corporais porque são demasiado genéricos nos dando muito poucas soluções prontas. Assim, como é possível meramente sobreviver em ambientes inóspitos sendo, como determina a média da opinião moderna cristã ou iluminista, um imbecil que só faz produzir erros de analogia, ou uma criança? Esta questão que poderia ser lida como um apelo ao relativismo cultural é, no final das contas, coisa de outra sorte porque não é de mera sobrevivência que estamos falando. O que marca o juízo moderno com relação à esses povos em geral sequer dá conta do fato de que, de alguma forma, eles sobreviveram. O que dizer que, para além da sobrevivência, estes povos que, entre americanos, africanos, oceânicos e asiáticos – não esquecendo os exemplares europeus de populações selvagens – pareciam viver muito bem sem a presença da vida moderna vindo a produzir uma economia e um sistema de ornamentação da vida bastante independentes de tudo aquilo que as instituições basilares da vida moderna consideram absolutamente indispensáveis?
            Que se entenda que dar vazão a este tipo de problema abre margem para todo tipo de especulação, especialmente às de caráter utópico para as quais em artigo de 12 de outubro de 2012, Luiz Felipe Pondé chamou a atenção. Ressalta ele que atentar para a diversidade da manifestação da vida e reconhece-la como constituinte evoca, à forma do que ele chama de antropologia de boutique, uma pulsão irritante para que se mude o mundo à forma das heresias movidas pelo gnosticismo que tanto estiveram presentes na emergência da consciência revolucionária moderna. E quando alguém faz apelo para a atenção à diversidade da vida e o cuidado com ela, a repetição desta mesma acusação chega antes do que a própria atenção à vida. O peculiar é que parece impossível que se entenda que a atenção à vida pode simplesmente partir da constatação de que o mundo é grande sem querer muda-lo, ou pregar essa mudança segundo a exegese revolucionária. Ainda que seja ambiente para as formas caídas da existência, como pregaria o tipo de teologia dolorosa que agrada a figura de Pondé – Pascal, Dostoiévski, Cioran, Eliade -, o mundo segue grande e o repertório de motivações e interesses escapam da necessidade de conservar ou mudar o mundo no mesmo impulso que crava a modernidade indecisa entre Antigos e Modernos. Até porque, a relação entre mortos e vivos é muito mais interessante, incluindo aquela entre quem mata e quem morre e, não menos importante, a de quem deixa morrer. O que pode estar em questão é que a dilemas que evocam a prudência  em que é preciso ser prudente e em questões de urgência, para bom entendedor meia palavra basta.
            Mas é importante ressaltar uma coisa. Pondé não é importante. Nunca foi e nem pode ser. Ser importante como intelectual de opinião é, para todos os efeitos, a forma de fazer a inteligência escorrer lentamente incorporando toda forma de mau odor até chegar ao esgoto que lhe serve de destino. É isso que deveríamos considerar ao entendermos Pondé segundo Pondé. Não importa porque não há valor mais corrompido do que ser humano – e estou partindo do pressuposto de que ele o seja, humano e portanto, corrompido, mas não sei até onde seu ego lhe alçou. O que importa é outra coisa. O que importa é ver antipatias das mais comenzinhas se projetarem como algo mais importante que um massacre que reproduz em tempo real aquilo que muita gente imagina que somente os marxistas do comunismo real poderiam produzir. O que importa é ver disputas no seio dos corredores da USP serem mais decisivas do que as coincidências que fazem do texto de Pondé sobre os neo-Guarani Kayowa incrivelmente convenientes, e falo pasmado, ao modo desenvolvimentista a toque de caixa do Brasil contemporâneo que não escolhe partido e produz a aliança de todas as máfias que conheço feitas de forma devidamente contingente e em proporções cuidadosamente regionais, constituindo uma máquina de governo assustadora. Importa que por fim, haja concordância naquilo que gera uma aliança difícil de aceitar, que repete numa escala de valores própria da exceção moderna a ladainha monótona e assassina daqueles que tem o direito de errar. 


ou


É fácil ignorar um problema ao escolher o pior representante do mesmo - especialmente quando este  não existe.