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domingo, 16 de agosto de 2015

Hoje, limpei a horta


Ainda são outros dias, os que figuram no mesmo calendário que persiste inalterado e que eu insisto em ignorar, inclusive, a sua localização e disposição na casa. Os meses perdidos em outras tantas inventivas em que corri o risco de aliar a busca pela sobrevivência com o resto de vergonha na cara que ainda tenho não conseguem encontrar expressão alguma no movimento das folhas, na determinação dos nomes e números das frações do tempo. Talvez ainda seja setembro do ano passado, inclusive. Não sei. Não há muito para saber quanto a isto. Estes dias de calendário são, antes de mais nada, repetição que não se move. É sempre o mesmo dia, n+1. Nele o tempo não é uma seta e tampouco o que é sólido se desmancha. A permanência do calendário não se permite desfrutar de qualquer estado da matéria. Não sendo tampouco nenhuma gaiola de ferro, é um incômodo frequente, a sombra do esquecimento que se faz vulto a periferia da visão, o fator insuperável na consolidação de todos os calendários e sua existência que sempre beira a inutilidade. E da beirada, convém lembrar, despendem-se os suicidas e os excepcionais. Enfim, só para dizer que a diferença entre os dias está em outro lugar. Não no calendário.
            Ainda assim é a dificuldade de desfazer uma determinada impressão é realmente muito difícil. A de que a sincronia é suficientemente importante. São muitos os fatores que promulgam sua centralidade inescapável. É o motor dos Estados modernos, é a mola dos sistemas produtivos, é a marca das formas narrativas romanescas mais realistas. A vida de todos acontece ao mesmo tempo, o que implicaria em dizer que o fim do mundo viria numa mesma onda, como a triste torcida pelo calendário maia falsificado parecia determinar. Esta sincronia, no entanto, que em suas primeiras expressões movia suas engrenagens a custo de incontáveis vidas já não carrega as mesmas feições de um dragão devorador. Já devidamente engordado, hoje come provavelmente na mesma hora em que todos dividem seus dias entre as refeições usufruindo os benefícios da doçura da domesticação. Nada de importante parece acontecer ao mesmo tempo – especialmente o fim do mundo, ou o começo de tudo.
            Pode dar a impressão de que coisas extremamente importantes acontecem sem que se preste atenção e que outros eventos, fruto da mais soberba orquestração e visibilidade não sejam mais do que pantomima da vida coletiva, quando não um capítulo entristecedor de comunicação esquizofrênica. Se dou esta impressão, e se com isso pareço ser indiferente a tamanho esforço que ora e vez colorem avenidas e tingem todas as conversas com sua orientação bicolor e monotemática, não sou então tão mal redator. Afinal de contas, novelas televisivas também perduram sua indiferença temporal na enorme mancha da sincronia, o fazem todos os dias, e ainda assim... na verdade, exatamente por isso, refazem o mesmo dia que deve se repetir sem intervalos, salvo em caso de doença. E então, a doença. Eis, finalmente, um outro dia, desses que não voltam nunca mais. Saudades.

domingo, 30 de novembro de 2014

MÔNADA, díade, tríade, tétrade: números inteiros.

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Era somente um. Numeral. Ponto. Não que seja coisa simples, digo, algo próximo de um número inteiro. Próximo, porque nunca foi algo que eu pudesse olhar no espelho e garantir, mesmo que fosse no espelho que eu já considerei enorme, na porta do armário do quarto de mamãe. De qualquer forma, cresci com esta marca que, até onde sei, sempre foi mais ou menos comum. Minha primeira visita em um parque de diversões a interdição do prosseguimento do movimento da fila para entrar na montanha-russa sempre vinha com a instrução de que nem mais uma criança entraria e que teríamos que esperar pela próxima leva. Muitas vezes fui sozinho, outras fiquei para trás enquanto meus amigos se davam as mãos, dois a dois, gritando o que outra vezes gritei com eles – a mais longa e alta vogal que eu pudesse encontrar garganta adentro. Com gosto. Não somente eu mas

Cada
Um
De
Nós.

            Hoje eu concordo o número da frase com algum receio de estar errando. Poucas vezes tive a impressão de que de alguma forma vivi como mais de um, em algum mecanismo de acoplamento marginal que engata o enunciado num caldo só, devidamente temperado pela circunstância. Não que se deva confiar em coisas como “a memória” ou mesmo “a primeira vez em que percebi isso”. Nem um, nem outro farão nada por mim ou por esta prosa sobre números inteiros. Não tem nada a dize sobre este que é um assunto meramente geométrico e, desconfio que o papel que se pode atribuir, ou mesmo usufruir nestes dois termos em nada tem a ver com um garante narrativo ou qualquer outra coisa que possa ser dita. Enfim, dizemos para manter a banca da casa e fazer com que haja movimento, mas no limite não são importantes, nem a memória faz, nem a primeira vez em que percebi isso. O que importa é que nós só fez inteiramente sentido quando meu irmão e eu resolvemos roubar o pequeno supermercado que existiu no galpão ainda existente a pouco mais de meio quarteirão de onde ainda moro. Fugir e, principalmente, ser pego. Diria então, “eis o momento em que pude perceber que éramos nós”, mas não é nada disso. O que é efetivo é que hoje sinto que este é um “nós” plausível, especialmente na instância da fuga que até hoje persiste dado que não só mascamos todas as gomas de mascar como redundamos em manter o castigo que se abateria sobre nós à distância. Em qualquer combinatória, vale dizer, seríamos nós. Eu pego e ele não, a delação possível e, então, o medo da delação. Nós dois pegos.  4 alternativas e em todas elas, nós. Nós dois. Que digam algo sobre a paixão, o sexo, a amizade como produtor desta unidade dual. Que interfiram recusando o resto desta prosa, não me incomodaria em nada porque a paixão é o momento da fuga, eterna enquanto dura. Enquanto houver o furor da existência ardente da contraparte, e for paixão, o sentimento é aquele que atravessa o corpo de alguém que, em trânsito em provável fuga de seu país, chegando em um hotel no estrangeiro com os olhos arregalados e respiração ligeiramente ofegante o atendente pergunta, sorridente, se está fugindo e incapaz de compreender a mais sutil ironia, esvaziado do senso de humor. Foi pego mesmo que por um segundo; pegaram seu comparsa; desbarataram a operação – vi meu cúmplice (ah, a cumplicidade dos casais) sendo preso ao assistir a televisão e logo percebi que seria e minha vez, logo em seguida e estaríamos, nós dois, presos. Nós dois, não importam quantos. Nós é dois. Eles, três. Foi assim que me cercaram e agora, escrevo da prisão, à huis clos.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Da experiência como política da escrita





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BATAILLE, Georges. L’expérience intérieur. Gallimard. Paris. 2012 [1954].
______________________. Théorie de la religion. Gallimard. Paris. 2011. 
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RANCIÈRE,  Jacques. Políticas da escrita. Editora 34. Rio de Janeiro.



I-
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Bataille condena a noção de projeto, sumariamente, exatamente porque tudo o que viver produz é sua condenação explícita e eficaz. Não uma condenação de caráter jurídico, vale dizer, mas a que aponta para a danificação de uma determinada estrutura, que seja, de concreto armado que seja possível chamar de edifício. As vigas algo corroídas desde a base, rachaduras que indicam que onde reinava a unidade monolítica sobrarão pedaços desarticulados e menores que mal contarão a história do futuro que poderia ter sido. O projeto é condenado na medida em que não ofereça morada ao submeter ao habitante risco ainda maior que na vida selvagem dado que a probabilidade de ruína joga contra ele – e nada mais selvagem do que a probabilidade jogando contra. E é contra a arquitetônica, contra o grundsatz, contra o projeto a partir de um livro fortemente antipático que não aceitará a companhia estabilizadora que uma igreja qualquer. Nem mesmo a experiência mística é imediatamente bem-vinda dado que a desestabilização que promove poderá assumir a figura ou narrativa de revelação que ao mesmo tempo em que funda a relação fundamenta o discurso futuro sobre o futuro – é a fundamentação que Bataille coloca em questão. A experiência relata, não a mística ciência doutrinaria, mas o interior que até então incomunicável é posto em comunhão. O meramente idiota que falava na confusão do balbucio se presta à comunicação infantil que aponta para tudo e ri; meramente idiota, termo irredutível que resistirá à servidão dogmática porque não compreende os termos a definirem o discurso futuro sobre o futuro.
            Do lado filosófico a intenção é a de “acabar com a divisão analítica das operações e assim, escapar da sensação de vazio das questões inteligentes”. Do lado religioso, em que pesem a autoridade e os valores tradicionais – de forma alguma primeiros com relação à experiência interior – o esforço é o de fazer recuar a inteligência até o domínio que lhe parecia estrangeiro, exatamente o da experiência interior. De outra forma o livro não é senão uma introdução ao oral, a palavra que morre no momento seguinte.

            Comme une insensée merveilleuse, la mort ouvrait sans cesse ou fermait les portes du possible. Dans ce dédale, je pouvais à volonté me perdre, me donner au ravissement, mais à volonté je pouvais discerner les voies, ménages à la démarche intellectuelle un passage précis. L’analyse du rire m’avait ouvert un champ de coïncidences entre les données d’une connaissance émotionnelle commune et rigoureuse et celles de la connaissance discursive. Les contenus se perdant les uns dans les autres des diverses formes de dépense (rire, héroïsme, extase, sacrifice, poésie, érotisme ou autres) définissaient d’eux-mêmes une loi de communication réglant les jeux de l’isolement et de la perte des êtres. La possibilité d’unir en un point précis deux sortes de connaissances jusqu’ici ou étrangères l’une à l’autre ou confondues grossièrement donnait à cette ontologie sa consistance inespérée : tout entier le mouvement de la pensée se perdaient, mais tout entier se retrouvait, en un point où rit la foule unanime. » (2012 :11)

            O método da redação, intermitente e fortemente digressivo, visa dissimular o discurso à forma da comédia que fará deste livro um livro que parodia um livro e reduz o humano à ação humana, ao erro – ao equívoco que é percorrer e em fazer o que há para fazer, algo peculiarmente reincidente na precipitação do sentido na versão pragmática de felicidade. Isto porque o idiota, aquele que é sujeito às mais agressivas idiossincrasias, só pode dizer algo que se assemelha a um discurso não sendo possível levar a sério, ao mesmo tempo, o idiota e o seu discurso. Ao eleger a experiência interior como o centro de tudo o que conta é o idiota e não a mística que se professa a seu respeito – o idiota que se é; não mais o enunciado sobre o vento, mas o vento; o hálito confuso da boca de quem lambe o chão em busca de restos, migalhas de pão no monastério. Bataille é particularmente enfático quanto ao exercício da impotência na qual “si –mesmo” não é “o sujeito se isolando do mundo” sem condições de aceder à coisa-em-si mas sim “lugar de comunicação, de fusão do sujeito e do objeto” – forma de ateologia negativa em que sujeito e objeto serão o que não está lá onde há comunicação.
            Mas é isto uma política da escrita? Na verdade não imagino que a coisa possa sequer ser posta em outros termos, em especial  imaginando a trajetória anti-fascista do proponente. Mas o que seria uma política da escrita – e a volta do parafuso, para defini-la como tal eu deveria aceitar a autoridade de Jacques Rancière? Questões à parte que compõem o quadro o que é definitivamente relevante é a escrita como produção de comunidade – restando saber qual a comunidade em questão. De forma indisfarçável será preciso ler e, com algum esforço, procurar o idiota em Rancière.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Mestre Eckhart, um abelhudo voando pelos mil platôs.


DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix (1980). Mille plateaux: capitalisme et schizophrénie. Minuit. Paris.
           

            E fiz meu caminho alternativo preferido. Saí do Metro Denfert-Rocheraut pela saída da rua Daguerre, endereço sintomático e portador de uma ótica chamada Daguerroptique, além de um ex-namorado de uma amiga recente cujos olhos nervosos me fazem anotar que lá há sempre algo para se ver, mas é problemático ser visto. Muitas das fotos que fiz, e algumas das primeiras agradáveis aos olhos, fiz nesta rua que me é sempre uma passagem agradável, ainda que eu dobre na primeira esquina, chegando à  rua Gassendi. Dela sigo em linha reta até a esquina da Moulin Vert, outra linha reta que me serve de endereço, até mesmo um tanto quanto metido pois me vi vizinho do antigo atelier de Giacometti.
            É bem após a esquina da Dagurre com Gassendi que passo em uma bouquiniste que evito entrar. Sempre. É das livrarias que impõe respeito. Não há prateleiras, mas um universo de pilhas. Bem ao contrário do monte de lixo feito papel que encontrava nos sebos ao redor da Praça Tiradentes no Rio de Janeiro, o que assusta é exatamente a qualidade do acervo. A rua Babylone, em um endereço colado ao Cinema La Pagode, há algo parecido. Livros esquecidos, ou cuidadosamente guardados das agruras do tempo, protegidos por imóveis particulares que os guardam de tudo, inclusive da invasão do Euro. Preços marcados em Francos fazendo da conversão monetária uma amiga inesperada. Infelizmente não é o caso da bouquiniste anônima da Gassendi. O proprietário é um sujeito enorme em todas as direções e, como de hábito, sisudo ao primeiro contato. Até que então, pergunto algo que terminou num convite. Est-que tu veux prends un verre? Não, obrigado, há gente me esperando. Mas levo esses três livros, a saber, Les cartes postales de Derrida; Journal d’un voleur de Jean Genet; e Mille Plateaux de Deleuze e Guattari. Ainda que não tenha a menor vontade de justificar esta compra, e que eu seja tudo menos um empolgadíssimo com vertentes desconstrutivistas de tudo aquilo que não sei como funciona. Aprendi também a nutrir alguma desconfiança de Jean Genet, especialmente sabendo da força dada pelo mesmo Sartre que mereceu a severa reprimenda tanto de Albert Camus como a sátira aguda proposta na figura de Jean-Sol Partre em L’Écume des jours, pela pena de Boris Vian. Hora de perder o ranço, acho eu. Mas em Mille Plateaux, que já havia lido em português, alguma coisa ainda me chamava a atenção. Muitas coisas, na verdade.
            Enquanto escrevo esta nota, estou em vistas de resolver um problema relativo à impressão que um momento da vida de alguém determina o corte e o tom da biografia desta mesma pessoa que, de fato se transforma “nesta mesma pessoa”, ou mesmo nesta “mesma” “pessoa”. Vivendo o corte denso entre as biografias de Allan Kardec e seu antecessor, Léon-Hippolyte Dénizrd Rivail me vi buscando alternativas para compreender a projeção do primeiro sobre o segundo e, no caso, especulando sobre os efeitos de inverter a relação entre figura e fundo, fazendo de Rivail a figura de proa. Nisso, referências como Alfred Gell e Ludwig Wittgenstein ofereceram um repertório interessante. O primeiro, com o ensaio penetrante sobre a noção de eclipsamento, ou sobre como a agência de outrem marca as relações objetivas que são obstruídas pela própria objetividade da relação. O segundo, com respeito à noção de familiaridade entre formas de sentido que compreendem algo similar às regras do jogo e seu potencial transformativo de quando do ato da interpretação. Tudo isso me sugere um cabedal interessante e intuitivamente aproximado do problema da rostidade, ou visagéité cuja noção vim a conhecer em português e que, no momento era somente uma noção sem direção. Sim, havia esquecido sobre o que o termo tratava ainda que permanecesse convicto de que o termo poderia dizer alguma coisa, intuição que segui como se por uma palavra de ordem. Afinal, é o conceito do momento semiótico da dupla contracultural da filosofia, coisa cara, rara. Comprei a edição francesa logo depois de recusar a bebericagem com o sujeito largo por todos os lados que vestia um chapéu de palha cheio de furos grandes de rasgados.
            Agora, lendo os capítulos elogiosos à linguística de Louis Hjemslev vi que não foram somente os bárbaros, selvagens e civilizados que sofrem as agruras da racionalidade revestida de procedimentos rigorosos de hermenêutica a dois. Ou papai-mamãe. Há mais do que isso no percurso quase que soviético da expansão da razão procedimental. Descubro que mesmo as abelhas são sobrecodificadas e, ainda assim, inconscientes do fato surpreendente de que voam. E voam por um ato místico, por aceitação pura das palavras de ordem.

            “Benveniste nie que l’abeille ait un langage, bien qu’elle dispose d’un encodage organique, et se serve même de tropes. Elle n’a pas de langage, parce qu’elle a vu, mais non pas de transmettre ce qu’on lui a communiqué. L’abeille qui a perçu un butin peut communiquer le message à celles qui n’ont a pas perçu ; mais celle qui n’a pas perçu ne peut pas le transmettre à d’autres qui n’auraient pas davantage perçu. Le langage ne se contente pas d’aller d’un premier à un second, de quelqu’un qui a vu à quelqu’un qui n’a pas vu, mais va nécessairement d’un second à un troisième, ni l’un ni l’autre n’ayant vu. » (1980 :97)

            Abelhas jamais foram modernas, ouso dizer. De alguma forma isso me ajuda a compreender a eterna fábula de que só voam porque não podem saber que não podem. Abelhas voam porque falam a língua do Evangelho, a língua que não é, a língua que não é mais. Moderna. Que o diga Mestre Eckhart que voava como se comunicam as abelhas. 

quarta-feira, 24 de abril de 2013

O lado onírico que dá na mesma


“Bom. Acho que não me fiz claro.” – disse com a força de quem havia acordado de um sono longo transbordando convicção. A bem da verdade, tinha o hábito de dormir em meio às conversas somente para poder, em manobras sutis de manipulação da mente, interromper o falatório num despertar súbito com alguma intervenção precisa oferecendo a resposta mais adequada, o comentário mais decisivo ou mesmo somente a informação correta mesmo no mais delicado dos detalhes: “3 dias depois, 5 dia antes e 2,5 litros de água jogados de uma altura de 15 metros”. No caso, o assunto era outro, e sempre era outro. Havia dormido em plena conversação, tomado por uma espécie de torpor que já lhe era habitual, vindo a adormecer todas as notas musicais que permeiam a indócil música da perda de tempo usual das conversas inúteis. Escusado dizer que quase já não tinha amigos, que seus hábitos se transformaram em uma atitude hostil e que, ainda que preciso e, em determinadas horas quase que necessário, aos poucos sua narcolepsia premonitória o jogava em um estágio eremita de articulação social no qual tudo era quase a solidão relativa de seu pequeno apartamento, meia dúzia de encontros amorosos, uma outra dose de lembranças mais ou menos presentes na forma de encontros em bares e cafés, e a dose de cobranças manifestas em envelopes brancos e largos preenchidos com todo tipo de conexão entre bens e serviços. Cacofonia era prenúncio de sono e de, também, alguma nova solução seguramente tomada com um tom de voz e uma conduta considerada mais ou menos inconveniente. “Se não me fiz claro da primeira vez, vai a segunda, em nome da sua burrice”. Estapeou um dos assaltantes que logo lhe acertou o fígado com mais um tiro descuidado, dando tempo para que seu filho fugisse, dobrasse a esquina e perdesse contato com o evento atormentado que significou mais um episódio de sono de seu pai. No velório, em meio ao bavardeio impenitente que ora e vez assombra as beiradas de caixões, o óbvio aconteceu. Nada. "Morrer e dormir não é a mesma coisa. Esqueça". 

quinta-feira, 7 de março de 2013

Então, depois.


Dormir e acordar com o sol
Para então, já calejado pelo trabalho,
Torto, arranhado pelo calor,
Arquejado pela lida longa,
Convertendo trabalho em dia,
Canção em apelo, dor em
Ornamento, esforço em carinho,
Diário e penitente, o sol, ele mesmo,
Freqüente e implacável logo mais
desce longe, até seguir para outra jornada
Na qual desaparece e dá lugar à lua
Sem jamais deixar de transmitir
A luz, que é sua, e que a lua só é
Toda nua quando alguém intervém. 

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Notas do subterrâneo: O FUTURO DURA MUITO TEMPO e as questões do século.

[Nota redigida durante a longa jornada em que, depois de três dias ainda me via emaranhado com a responsabilidade de ler Ernst Troeltsch com vistas em sanar um pouco da assustadora lacuna de leitura que tenho. Foram três as vezes que, enquanto passava as páginas que, ou por desatenção ou pressa eram viradas, que Carlo Ginzburg passou ao meu lado. Quis convidá-lo para um café, coisa que não fiz. A vontade era falar algo sobre o artigo Les Gobelins que encontrei na Revue Spirite e que reforçava parcialmente algumas das teses de História Noturna, livro pelo qual tenho adoração injustificada. Num dos vários equívocos de minha vida, permaneci sentado no mesmo lugar M.81 aonde estou há dois dias buscando compreender algo sobre os ensinamentos éticos dos Evangelhos de Paulo. Sem santo. Troeltsch é protestante. Joguei a sorte para o lado para redigir uma nota pífia sobre um detalhe incerto. Publico para dar as mãos e descobrir as nádegas para a palmatória de quem deveria ter mais vergonha nas faces. Nas duas. 

A arrogância está em querer minar uma dimensão crucial do argumento com a finalidade de fazer gracinha. Há quem diga, e eu concordo, que é particularmente perigoso fazer esse tipo de exercício com as questões da Graça. Mas é particularmente interessante quando o argumento de um sociólogo que preza pela autonomia da religião precisa produzir uma justificativa temporal para as dimensões em ajuste e desajuste da igreja histórica com relação ao cristianismo primitivo. A mudança de escala das relações surge como a principal dimensão dos ajustes necessários para que a versão primitiva se transforme na instituição moderna, mas a coisa vai mais além. De uma forma geral, Ernst Troeltsch, parceiro e amigo de Max Weber a ponto oferecer um ciclo de palestras publicado como Protestantisme et modernité pela editora Gallimard quando seu amigo estava em mais uma de suas severíssimas crises nervosas, se esforça em demonstrar com relativo sucesso como as instituições da ecclesia paulina se desdobra da comunidade (gemeinschaft) do amor de Deus. Esta comunidade é a comunidade de irmãos que de forma graciosa a edição americana de The Social Teachings of Christian Churches traduz em suas mais de mil páginas como fellowship. A questão é que Troelstch considera não haver qualquer premissa paulina, e muito menos no Evangelho que consiga justificar com a devida precisão qualquer justificativa para a hierarquia produzida no seio do poder secular. A igreja da igualdade negativa, cuja a diferenciação dentre os irmãos em Cristo se dá somente pela via da graça e salvação, não poderia justificar e sequer interferir em nenhuma instituição mundana. Nem precisaria, pois sua comunidade tem vistas no outro mundo, a cisão de Marcel Gauchet chama de au-delà e  ici-bas.
No capítulo em que comenta o ascetismo como um dos desdobramentos não previstos da negação do mundo como um desdobramento da igualdade negativa, Troeltsch entrega à Cristo uma leitura fenomenológica do tipo “erro de cálculo” com relação ao futuro, o que permite entender a distância encontrada por diversos comentaristas entre o Evangelho e alguns desdobramentos doutrinários fornecidos pela patrística e, mais notadamente, com relação aos filósofos cristãos do medievo. O futuro dura muito tempo até mesmo para Jesus Cristo:

The Gospel and the teaching of Jesus were of this kind. The Hope of the Kingdom of God which Jesus proclaimed, and the radicalism of his ethical and religious demand, simply destroyed the power of worldly interests by the demand for trust in God and simplicity of life; otherwise, however, Jesus accepted the Jewish faith in the Creation, and with that He unquestioningly accepted the word and its simple and innocent joys. The fact that the mind of Jesus and of the most primitive period of the Church was full of the hope that the ideal would very soon be realized in a marvelous way also helped to lessen the value of the short remaining span of the world; the depreciation, however, did not take the form of denial of the world, of the senses, or of the nature; it was rather an attitude of indifference towards an order which, in any case, is about to pass away.”(op.cit..:102)

Heroísmo ansioso ao invés de ascetismo, cujo erro de cálculo do tempo futuro que, como diz uma certa biografia, dure longtemps, aponta para um Reino que no final das contas demorara demais para chegar, o que talvez demandasse outros Evangelhos. As coisas não se deram como planejado – se é que Providência e planejamento podem, de alguma forma, coincidir, o que ressuscita o problema do governo dos outros. O problema, e não a solução.]