DELEUZE,
Gilles & GUATTARI, Félix (1980). Mille
plateaux: capitalisme et schizophrénie. Minuit. Paris.
E fiz meu caminho alternativo preferido. Saí do Metro
Denfert-Rocheraut pela saída da rua Daguerre, endereço sintomático e portador
de uma ótica chamada Daguerroptique, além de um ex-namorado de uma amiga
recente cujos olhos nervosos me fazem anotar que lá há sempre algo para se ver,
mas é problemático ser visto. Muitas das fotos que fiz, e algumas das primeiras
agradáveis aos olhos, fiz nesta rua que me é sempre uma passagem agradável,
ainda que eu dobre na primeira esquina, chegando à rua Gassendi. Dela sigo em linha reta até a
esquina da Moulin Vert, outra linha reta que me serve de endereço, até mesmo um
tanto quanto metido pois me vi vizinho do antigo atelier de Giacometti.
É bem após a esquina da Dagurre com
Gassendi que passo em uma bouquiniste que evito entrar. Sempre. É das livrarias
que impõe respeito. Não há prateleiras, mas um universo de pilhas. Bem ao
contrário do monte de lixo feito papel que encontrava nos sebos ao redor da
Praça Tiradentes no Rio de Janeiro, o que assusta é exatamente a qualidade do
acervo. A rua Babylone, em um endereço colado ao Cinema La Pagode, há algo
parecido. Livros esquecidos, ou cuidadosamente guardados das agruras do tempo,
protegidos por imóveis particulares que os guardam de tudo, inclusive da
invasão do Euro. Preços marcados em Francos fazendo da conversão monetária uma
amiga inesperada. Infelizmente não é o caso da bouquiniste anônima da Gassendi.
O proprietário é um sujeito enorme em todas as direções e, como de hábito,
sisudo ao primeiro contato. Até que então, pergunto algo que terminou num
convite. Est-que tu veux prends un verre?
Não, obrigado, há gente me esperando. Mas levo esses três livros, a saber, Les cartes postales de Derrida; Journal d’un voleur de Jean Genet; e Mille Plateaux de Deleuze e Guattari.
Ainda que não tenha a menor vontade de justificar esta compra, e que eu seja
tudo menos um empolgadíssimo com vertentes desconstrutivistas de tudo aquilo
que não sei como funciona. Aprendi também a nutrir alguma desconfiança de Jean Genet,
especialmente sabendo da força dada pelo mesmo Sartre que mereceu a severa
reprimenda tanto de Albert Camus como a sátira aguda proposta na figura de
Jean-Sol Partre em L’Écume des jours,
pela pena de Boris Vian. Hora de perder o ranço, acho eu. Mas em Mille Plateaux, que já havia lido em
português, alguma coisa ainda me chamava a atenção. Muitas coisas, na verdade.
Enquanto escrevo esta nota, estou em
vistas de resolver um problema relativo à impressão que um momento da vida de
alguém determina o corte e o tom da biografia desta mesma pessoa que, de fato
se transforma “nesta mesma pessoa”, ou mesmo nesta “mesma” “pessoa”. Vivendo o
corte denso entre as biografias de Allan Kardec e seu antecessor, Léon-Hippolyte
Dénizrd Rivail me vi buscando alternativas para compreender a projeção do
primeiro sobre o segundo e, no caso, especulando sobre os efeitos de inverter a
relação entre figura e fundo, fazendo de Rivail a figura de proa. Nisso, referências como Alfred Gell e Ludwig Wittgenstein ofereceram um repertório
interessante. O primeiro, com o ensaio penetrante sobre a noção de
eclipsamento, ou sobre como a agência de outrem marca as relações objetivas que
são obstruídas pela própria objetividade da relação. O segundo, com respeito à
noção de familiaridade entre formas de sentido que compreendem algo similar às
regras do jogo e seu potencial transformativo de quando do ato da
interpretação. Tudo isso me sugere um cabedal interessante e intuitivamente aproximado do problema da rostidade,
ou visagéité cuja noção vim a
conhecer em português e que, no momento era somente uma noção sem direção. Sim,
havia esquecido sobre o que o termo tratava ainda que permanecesse convicto de
que o termo poderia dizer alguma coisa, intuição que segui como se por uma palavra de ordem. Afinal, é o conceito do momento
semiótico da dupla contracultural da filosofia, coisa cara, rara. Comprei a edição francesa logo
depois de recusar a bebericagem com o sujeito largo por todos os lados que
vestia um chapéu de palha cheio de furos grandes de rasgados.
Agora, lendo os capítulos elogiosos
à linguística de Louis Hjemslev vi que não foram somente os bárbaros, selvagens
e civilizados que sofrem as agruras da racionalidade revestida de procedimentos
rigorosos de hermenêutica a dois. Ou papai-mamãe. Há mais do que isso no percurso quase que
soviético da expansão da razão procedimental. Descubro que mesmo as abelhas são
sobrecodificadas e, ainda assim, inconscientes do fato surpreendente de que
voam. E voam por um ato místico, por aceitação pura das palavras de ordem.
“Benveniste nie que l’abeille ait un
langage, bien qu’elle dispose d’un encodage organique, et se serve même de tropes. Elle n’a pas de langage, parce qu’elle a vu,
mais non pas de transmettre ce qu’on lui a communiqué. L’abeille qui a perçu un
butin peut communiquer le message à celles qui n’ont a pas perçu ; mais
celle qui n’a pas perçu ne peut pas le transmettre à d’autres qui n’auraient
pas davantage perçu. Le langage ne se contente pas d’aller d’un premier à un
second, de quelqu’un qui a vu à quelqu’un qui n’a pas vu, mais va
nécessairement d’un second à un troisième, ni l’un ni l’autre n’ayant vu. » (1980 :97)
Abelhas jamais foram modernas, ouso
dizer. De alguma forma isso me ajuda a compreender a eterna fábula de que só
voam porque não podem saber que não podem. Abelhas voam porque falam a língua
do Evangelho, a língua que não é, a língua que não é mais. Moderna. Que o diga Mestre Eckhart que voava como se comunicam as abelhas.
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