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domingo, 4 de novembro de 2018

Promener pour la méthode: mimesis interspecífica, hermenêutica de ouvido, e o perfectível Conde de Buffon, parte II

O fragmento foi redigido em 1950. Discute o conceito de política no mesmo momento em que redigia seu livro maior, Origens do totalitarismo, prefaciado no mesmo ano. Assumindo a tarefa de introduzir o público leigo ao conceito aos temas fundamentais da política, Hannah Arendt escreve uma espécie de manifesto do tempo presente em um planeta que via parte das principais instituições ocidentais ruir sob o peso do totalitarismo. Começar a discussão a respeito do fragmento em questão, aquele que disserta sobre o que é política, tem como principal horizonte tomar como ponto de partida o conceito, e o problema do conceito do comum como fundamento da vida política. A expectativa primeira é que poucas coisas são tão difíceis de compreender quanto o que podemos chamar de comum.

Ainda que seja nosso ponto de partida, o problema do comum, convém estabelecermos que é somente enquanto orientador para uma reflexão sobre a política que o comum vai nos orientar. E, se seguirmos o primeiro fragmento, de agosto de 1950, vemos que a política se baseia em 7 elementos. E não, Hannah Arendt não nos oferece uma definição. E se Jacques Rancière estiver certo (2018) como acredito que esteja, é porque a política é antes um acontecimento que danifica as relações, que coloca algo a perder, que não tem nenhuma definição propriamente positiva - assim como o comum. De um comum como algo indeterminado, como um conceito que faz precipitar a atividade política, o comum é fonte de uma certa indeterminação na exata medida em que é possível dizer que o conceito sofre do mesmo mal da política propriamente dita: não consegue irromper que não seja por interrupção do ordenamento posto, por um desacordo quanto ao fato de que o comum não se concretiza nas relações postas. Esta dificuldade maior nos coloca então no horizonte de que a reflexão sobre a política em suas diversas manifestações é uma reflexão que, na medida em que é exclusivamente teórica, ou mesmo meta-teórica, propicia um momento de concórdia ou, lembrando uma reflexão maussiana, de conciliação que não compactua com a radicalidade do desentendimento para o qual a política se presta. 

Digo tudo isso porque Hannah Arendt introduz sua reflexão na fórmula a política se baseia na pluralidade dos homens (1999:21). Nisso, a política tem como base, sustenta-se a partir da constatação fática, do fato de que há diversidade humana que é, para todos os fins, irredutível. Esta irredutibilidade é o horizonte de sua pesquisa sobre o totalitarismo e sobre o fim da política na propaganda totalitária. E ainda assim, é daqui que partimos. Em primeiro lugar, a política parte da constatação de que há algo de irredutível na humanidade, e ela é exatamente a diversidade existencial humana. Esta diversidade existencial constrange o pensamento na forma pela qual a política não é, e não pode ser um exercício de taxinomia: 

A política baseia-se na pluralidade dos homens. Deus crio o homem, os homens são um produto humano mundano, e produto da natureza humana. A filosofia e a teologia sempre se ocupam do homem, e todas as suas afirmações seriam corretas mesmo se houvesse apenas uym homem, ou apenas dois homens, ou apenas homens idênticos. Por isso, não encontraram nenhuma resposta filosoficamente válida para a pergunta: o que é política? Mas, ainda: para todo o pensamento científico existe apenas o homem - na biologia ou na psicologia, na filosofia e na teologia, da mesma forma como para a zoologia só exite o leão. Os leões seriam, no caso, uma questão que só interessaria aos leões. (ARENDT, 1999:21) 
 
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Quatre petits fils proprement comparés
 A figura zoológica do homem no singular tem uma trajetória importante na medida em que, ao mesmo tempo em que produz uma alternativa às formas de racismo poligenista, que consistiam em mais de uma variação sobre a modernidade escravocrata e o regime de apartheid, ela faz da variação monogenista uma versão alocrônica de formas distintas de racismo. Por exemplo, na figura dos três estágios evolutivos presentes na filosofia da história do positivismo de Comte. Neste caso estaríamos, contudo, na seara de arranjos mais ou menos metafóricos, em que a zoologia humana seria mais uma apreciação sobre a conformação as ciências da vida - as ciências que instituem enunciados que orbitam ao redor da vida como um conceito, ou seja, como uma classe de fenômenos estabelecida -, seria importante encontrar um exemplo literal do que estamos falando, que servisse como fonte de um arquivo que, contra teológico, reafirmasse a unidade humana nas bases da anatomia comparada. Felizmente, estas fontes remontam exatamente à Enciclopédie, editada por Denis Diderot e Jean le Rond D’Alembert e encontram seu momento pinacular na obra De l’homme, de Buffon. Uma remissão para a tradição francesa de pensamento não é meramente um exercício de erudição. É, no limite, a reconstituição do arquivo político onde se expressa o sujeito constituído que terá na lei o seu reconhecimento. Na lei humana e, obviamente, nas leis da natureza. Fazer coincidir um com o outro é, bem sabemos, uma obsessão moderna sem precedentes e é com ela que nos havemos, ainda que de forma bastante incipiente. 
 
 O verbete da Encilopédie que versa sobre a antropologia de um ponto de vista propriamente moderno é o de anatomia. Escrito por Diderot, acompanha o interesse do mesmo pelas ciências da vida e pela proliferação de metáforas políticas na descrição do funcionamento do corpo. Diderot, entusiasta das luzes em seu formato enciclopédico, endossa a atividade da anatomia - a dissecação - pela atividade imediata, isto é, conhecer a figura, a posição e as conexões dos ossos, das cartilagens, das membranas, dos nervos, dos ligamentos, dos tendões, os vasos arteriais, venosos, linfáticos, etc (DIDEROT, 2015:253). Tendo como horizonte compreender a correlação entre fluidos e sólidos no corpo, faz da correlação entre diferentes estados da matéria como dinâmica da conservação e restabelecimento da máquina (DIDEROT, op.cit.), reiterando parte da enteléquia cartesiana e La Méttrie e antevendo uma das noções caras dos máquinas movidas a combustão. 
 
 O caminho do Iluminismo, convém notar, tem notas ardilosas em que é possível antever o futuro nada animador para a vida em comum. Ao considerar as opiniões sobre a prática da dissecação dos chamados médicos dogmáticos, eis como Diderot dá prosseguimento ao verbete: 
 
 ’É preciso’, diziam eles, ‘abrir cadáveres, examinar as vísceras, esfoliar as entranhas, estudar as partes diminutas do animal', e nunca é demais elogiar a coragem de Herófilo e Erasístrato, a quem eram entregues malfeitores que eles dissecavam ainda vivos, bem como a sabedoria dos príncipes que sacrificaram um pequeno número de malfeitores em benefício de uma multidão de inocentes, de todas as condições, e todas as idades e de todos os séculos que estão por vir. (DIDEROT, 2015:254)
 
 Eis a passagem que nos obriga a recuperar a urgência de uma nova ética, tal como proposta por Hans Jonas, para quem uma ética prática envolta nos modos gregos, que resolve questões eivadas de imediaticidade - a esfera da política de Hannah Arendt - vê na responsabilidade uma forma de antecipar a atividade técnica com seu resultado, assumindo um compromisso com a possibilidade da consumação do futuro. A utopia do pleno conhecimento enciclopédico, ainda que tenha produzido uma esfera moral produtiva decisiva para a produção do conhecimento positivo e fundamental para a corrosão das relações de trabalho, parece ver no balanço entre mortos e vivos resultantes de uma operação técnica a razão suficiente para uma tomada de decisão. É impossível não perceber aqui o tipo de prenúncio que conforma a administração total das práticas institucionais nas quais absolutamente tudo está em jogo. Não estamos falando, obviamente, somente de conhecimento. Mas desconfio que aquilo que toma a forma de uma matriz ideológica é muito mais o desdobramento da administração de uma cultura material que, a esta altura, ou funciona nesta correlação de escalas ou tende a travar. Com o imperativo do crescimento como índice de desenvolvimento - o que nos coloca diante de questões de economia política -, a desconfiança carrega consigo uma maré de corpos que recebe o nome de humanidade. Afinal, com vistas em um conhecimento anatomicamente preciso, o objeto passado é o cadáver e sua predisposição para a manipulação. Quando encarnada, a humanidade transforma-se em uma outra coisa. É a disposição habitual do coração para empregar nossas faculdades em benefício do gênero humano. E aqui, a ética reclama seu lugar de direito uma vez que o anatomista, é ele desumano? E aqui o iluminismo mostra-se praticante de uma forma aguda de poder e de ajuizamento na qual permite-se pensar no lugar de outrem: 
 
 De minha parte, não gostaria de ser nem cirurgião nem anatomista, pois tenho algo de pusilânime; mas nem por isso me parece menos desejável que fosse instituída entre nós a prática de entregar a profissionais que tivessem a coragem de realizar a operação a serem vivisseccionados. Não importa como se considera a morte de um malfeitor, seria muito mais útil à sociedade que ela ocorresse num auditório do que no cadafalso, e esse suplício seria tão medonho quanto qualquer outro. Haveria um meio de administrar a conduta do espectador, do anatomista e do paciente; o espectador e o anatomista não realizariam no paciente operações que não fossem úteis ou cujas consequências não fossem claramente funestas; e o paciente, confiando somente nos homens mais esclarecidos, receberia a vida como prêmio, caso sobrevivesse à operação nele realizada. A Anatomia, a Medicina e a cirurgia, não teriam a ganhar com isso? Quantas vezes não nos instruiriam mais as consequências da operação do que a operação mesma? Quanto aos criminosos; quem não preferiria uma operação dolorosa à morte certa? Ou quem não preferiria, em vez de ser executado, se submeter à injeção de líquidos no sangue, à transfusão deste, à amputação de uma perna, à extirpação do baço, à extração de um tecido o cérebro, à ligação das artérias mamárias às epigástricas, ao corte de uma seção do intestino, à abertura do esôfago, à ligação entre os vasos espermáticos, com extirpação do nervo, ou à intervenção noutra víscera qualquer?” (DIDEROT, 2015:256)
 
 Diderot faz a escolha. O risco à morte de uma minoria, não em nome de uma maioria, mas em nome de um futuro que pode nunca vir a acontecer. A questão ética, e a abertura para a política que recusa o homem como uma forma unitária indistinta visa prevenir, ou ao menos recusar tomar decisões como a que Diderot toma, ainda que mediante a redação de um verbete de um empreendimento editorial. Afinal, a desumanidade de um malfeitor o qualifica para morrer porque sua morte possível, à luz do futuro, é um mal menor. No sentido dado por Hannah Arendt, se há algo que o prisioneiro não é, se há um lugar em que ele não está, é entre homens - e  a anatomia é útil, mas aos magistrados. Os homens estão fora, movendo a burocracia da morte. E, no entanto, o regime de corpos sob tutela não é a forma de produção das instituições médicas? Por fim, há alguma diferença entre uma doutrina como esta e qualquer uma outra, que vê na vida alheia rifada por uma solução prognóstica a noção acabada de aprimoramento? 
 
 No final das contas, o que importa é o progresso. O aprimoramento das descobertas sempre conjugadas com o que poderia ter consequências surpreendentes (DIDEROT, 2015:263). O que é francamente decepcionante para avaliarmos o humor e a capacidade diagnóstica de Diderot, que não percebe o papel ambíguo daquilo que ele mesmo promove. Aparentemente, este é o nosso papel. 

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. Companhia das Letras. São Paulo. 1990
ARENDT, Hannah. O que é Política? - fragmentos das obras póstumas. Bertrand Brasil. Rio de Janeiro. 1999
BUFFON. De l’homme. François Maspero. Paris. 1971
DIDEROT, Denis & D’ALEMBERT, Jean Le Rond (dir.). Enciclopédia - ciências da natureza (vol. 3). Unesp. São Paulo. 2015
RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. Editora 34. São Paulo. 2018

domingo, 20 de outubro de 2013

Religião desde a politécnica: porca e parafuso, modo de usar.

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GUMBRECHT,  Hans-Ulrich. A modernização dos sentidos. Editora 34. Rio de
Janeiro.
SIMONDON, Gilbert. Le mode d’existence des objets techniques. Paris. Aubier. 1969.


            O livro sobre os objetos técnicos é, se posso dizer assim, uma ontologia de função do ensemble technique (assembleia ou agrupamento técnico) relativo à infra-estrutura das relações funcionais, especialmente atento à ontogênese da técnica – uma tal ou qual determinada técnica em um quadro evolutivo geral; porque uma técnica, ou uma finalidade objetiva conduz a uma segunda e a uma terceira, etc. – e ao problema da individuação, conceito para o qual dedicou todo um empreendimento reflexivo num outro livro. Não sendo qualquer tipo de consideração sobre a representação produzida sobre o universo tecnológico e seus desdobramentos morais, o trabalho de Simondon introduz  tanto do ponto de vista descritivo quanto do ponto de vista teórico a apreciação do momento como qualificativo das relações no tempo, fazendo com que questões relativas à agência articulem nexos entre movimentos de convergência e dispersão. Este nexo sugere uma reflexão meticulosa quanto aos critérios de descrição das técnicas em sua dada função oferecendo um quadro expandido para temas caros à antropologia social, desde as técnicas corporais e usufruto de objetos à dimensões pouco usuais da vida social das coisas, permitindo compreender a vida reificada da sociedade sem que com isso seja necessário recorrer ao expediente da alienação como uma discussão protocolar.
            Sim, a remissão à antropologia social aparece como de improviso, não sendo introduzida por ninguém, muito menos pelo mesmo Simondon de quem pareço me ocupar. Mas se a antropologia social aparece como de improviso, o “social”  do antropologia não. Especialmente se for lido com o rigor caxias de um manual disciplinar. Sociedade, ao seguirmos o desenho sugerido por parte da sociologia alemã clássica (Weber, Troeltsch e Simmel) designa o coletivo reunido segundo critérios de organização social do trabalho. A colagem entre trabalho e valor, que esta mesma sociologia que tenta responder a Kant e a Marx em igual medida, divorcia ao máximo o contraponto entre economia política e religião (trabalho e valor purificados, um do outro) fazendo com que uma e outra possam se deslocar sem se forçarem em uma mesma direção mútua. Este descolamento é, quero crer, a zona em que se move a possibilidade da alienação como conceito.
            O caso é que a antropologia social tem como ferramenta de base a articulação da distinção de papéis sociais, isto é, das funções exercidas por alguém (como o ego do parentesco) com relação à totalidade das funções exercidas, totalidade esta comprometida com a reprodução social. Visto de outra forma, é a reconstituição do exercício de associação no seio da economia política do ponto de vista da sociedade. Um dos desdobramentos da distinção para  qual eu chamo a atenção está na reconstituição do que se possa chamar de organização social entendendo haver nela um núcleo estável que permita a reprodução dos papéis no tempo, intra ou intergeracionalmente. E assim, a esfera dos valores aparece como a gramática, ainda que sua conexão com os veículos de expansão seja sempre obscuro. A sociedade é algo que opera sempre por indução do agente (como na Sociologie de Simmel) ou por dedução do pesquisador (como no caso das Règles de Durkheim), mas nunca acontece, como temia Jules Michelet. Isto porque a conexão entre valores e trabalhos social (conceitos e coisa-em-si?) sempre opera em um dado paralelismo que obriga a divisão entre idealistas e materialistas em um mundo que, por fim, segue ignorando esta distinção a cada vez que algo banal e irrelevante acontece. Qualquer coisa.
            Pôr em pauta a ontogênese da técnica visa conectar o que em geral é perdido na tradução entre valor e trabalho e que não consegue propiciar de uma forma geral qualquer consideração aguda a respeito do evento, o que em antropologia é grave levando em consideração a relação com o aporte etnográfico, cuja pedra de toque é exatamente a descrição de eventos. O exercício não põe, contudo, o evento em questão.
            O aporte de Simondon é agudo ao oferecer instrumentos ao considerar, por exemplo, que tecnicidade é o emploi d’objets a partir da estruturação da resolução provisória de problemas (1969:156) e que numa mesma ordem histórica este processo evolutivo de adaptação e agrupamento técnico respeita fases – que são ordens de configuração -, tendo a fase mágica como fase inaugural.

            “(...) en prenant ce mot au sens le plus général, et en considérant le mode magique d’existence comme celui qui est pré-technique et pré-religieux, immédiatement au-dessus d’une relation qui serait simplement celle du vivant à sn milieu. Le mode magique de relation au monde n’est pas dépourvu de toute organisation : il est au contraire riche en organisation implicite, attachée au monde et à l’homme : la médiation entre l’homme et le monde n’y est pas encore concrétisé et constituée à part, au moyens d’objets ou d’êtres humains spécialisés, mais elle existe fonctionnellement dans une première structuration, la plus élémentaire de toutes : celle qui fait surgir la distinction entre figure et fond dans l’univers. »  (1969 :156)

            O que Simondon chama de organização implícita é, no mais, algo muito mais importante porque este é um traço do pensamento moderno com relação à atitude crítica, isto é, de observar a observação da mesma forma em que se organiza a organização num jogo hermenêutico de segundo grau tão bem reconstituído por Hans-Ulrich Gumbrecht (1998) sugerindo que por fim haver uma trava nos jogos de linguagem indicando haver um panorama político nas investigações de Ludwig von Wittgenstein. Assim o mundo mágico é aquele em que a mediação não está organizada nos termos de uma organização, o que implica em não estar organizada como tal. O pensamento mágico se organiza como que por efeito colateral e não por um inconsciente fisiocrata imanente. A distinção existente, a de figura e fundo é a que origina algo como “o objeto e o resto” – ou indistinto.
            Outro aspecto importante é que o mágico e o religioso coincidem porque o técnico enquanto meio demanda algum equilíbrio com relação ao religioso e vice-versa exatamente porque o religioso não é um pensamento sobre a técnica, não é informativo – e é exatamente aí que o modelo de Simondon transborda de cristianismo, isto é, afirma que a vida moral não é algo circunscrito ao mundo, assim como a reflexão a seu respeito. Estando os dois domínios apartados, fazendo da técnica o exercício “de la sortie de la religion”, recuperando a fórmula primorosa de Marcel Gauchet sobre o cristianismo, entram em cena as formas de oposição entre convergência técnico-simbólica e a divergência de mesmo tipo em que determinam forças e funções centrífugas; funções centrípetas. A convergência técnica é, por outro lado o evento da individuação por meio de objetos. E se a reflexão sobre a técnica se distingue em teoria e prática, segundo aquilo que ensina a politécnica, a religião se define por ética e dogma, o que reforça a matriz cristã do argumento de Simondon com relação à religião – a que é, talvez, a sua inimiga fiel.

            Il existerait ainsi nos seulement une genèse de la technicité, mais aussi une genèse à partir de la technicité, par dédoublement de la technicité originelle en figure et fond, le fond correspondent aux fonctions de totalité indépendentes de chaque application des gestes techniques, alors que la figure, faite de schèmes définis et particuliers, spécifie chaque technique comme manière d’agir. La réalité de fond des techniques constitue le savoir théorique, alors que les schèmes particuliers donnent la pratique. Ce sont au contraire es réalités figurales des religions qui se constituent en dogme cohérent, alors que la réalité de fond devient techniques et l’éthique issue des religions, comme entre le savoir théorique des sciences, issu des techniques, et le dogme religieux, il existe à la foi une analogie, venant de l’identité de l’aspect représentatif au actif, et une incompatibilité, provenant du fait que ces différents modes de pensée sont issus soit de réalité figurales, soit de réalités de fond. La pensée philosophique, intervenant entre les deux ordres représentatifs et les deux ordres actifs de la pensée, a pour sens de le faire converger et d’instituer entre aux une médiation. » (1969 :158)

domingo, 26 de agosto de 2012

Promener pour la méthode: mode d'emploi et le cas de l'aventure


(este não é um texto apologético)

Jovem. O mundo é grande. E houve o dia em que falou sobre a vida, a mesma que, à forma dos metrôs distribuídos pela cidade e que serviram de mote para o diagnóstico de que a população havia perdido seu lugar para o trânsito avassalador de coisas grandes feito trens, todos, com seu mode d’emploi. Pode não ser à toa, pode ser peculiar que a forma de entrar na vida seja o paraquedas que tem um sistema de anti-falhas que pode, todavia, falhar. Mas é significativo que Georges Perec tenha escolhido o anteparo de uma coisa para dizer que para entrar na vida é preciso saltar. Quando abrem-se as portas para o salto, é preciso fazer a escolha com relação à qual não há nenhuma razão para definir se é melhor ir ou não, e que a única coisa que discrimina o salto à paraquedas e o suicídio é a confiança numa coisa. E é preciso se lançar.
            No final das contas, Perec se assemelha a Claude Lévi-Strauss que, em uma entrevista a Bernard Pivot discrimina dois momentos da vida de antropólogo. Primeiro, como a paixão por aventuras participa, ainda que de forma subsidiária, de sua decisão de abandonar o ensino e o estudo da filosofia. Obviamente que tudo o que veio depois, em especial sua relação com a mitologia dos povos americanos terem se convertido em uma filosofia ameríndia, desmente um tanto a afirmação do abandono. Logo em seguida vemos que o que Lévi-Strauss tinha em mente com aventura se resumia, no mais, às atividades de camping postos num jogo delicado com sua imaginação ativada por um ou outro diário de exploração que, de uma forma geral já viviam no sistema da administração e do relato posto sob alguma forma de controle que os aproximaria da prosa etnográfica que o próprio Claude Lévi-Strauss viria a estabelecer, à forma dos exercícios de filologia. E então descobrimos que Lévi-Strauss, entre a aventura e a rotina, havia definido seus movimentos relativos a sentar e ler tudo o que fosse possível. A aventura da razão, diriam, e a qual, por maior que seja, me obrigo a colocar entre aspas. “L’aventure", cher professeur.
            Obviamente que entrar na vida é coisa diferente do suicídio, posto que no organograma das operações de trânsito no edifício enorme que parece ser o mundo, sua marca se encontra nas vias impróprias para a fuga. Suicídio é um método de entrada, e não de saída. Mas ao mesmo tempo, o paraquedas com relação ao qual Perec, em uma conversa com Jean Duvignaud, se diz diminuído. Não que o paraquedas o diminua em si, mas a situação que reclama a presença do paraquedas o diminui a saltar ou não. É no momento em que simplesmente il faut se lancer que precipita aquilo que se dá como intransferível. Il faut que je. É preciso que Eu, quando o impessoal desaparece e que, na decisão de saltar, tudo se resume na mera confiança posta em uma coisa posta às costas pesando grosseiros 15 quilos.
            Em Les choses, Perec mostra ser um tanto mais aventuroso quanto mais afeito ao tédio é. É neste romance em que ele mantém a regra de contar a vida de um casal típico dos anées 60 - cuja semelhança com o casal que logo sou me assusta um outro tanto. Reside no 14e Arrondissement, vive a vida sem salários, uma pequena fortuna experimental por vez reduzidas a jantares, passeios e viagens, o tipo de aventura com data e hora para acabar cuja descrição não se permite exceder o organograma da rotina. O cenário é exaustivo, descrito com a meticulosidade que um etnógrafo deveria ter, o mesmo etnógrafo cuja tarefa infinita Lévi-Strauss declara na mesma entrevista a Bernard Pivot, não ter qualquer vocação. Mostra-se que a aventura é outra coisa. Aos poucos, os objetos multiplicados ao indeterminado são restritos a conjuntos específicos, postos em séries, como as refeições feitas na capital ou no interior do país, os livros lidos, as lojas mais caras que fazem as vezes de museus de tudo aquilo que não se poderia possuir. Listas e mais listas de coisas que compõem a vida, de mais à mais, sutilmente decepcionante. Há mesmo que dizer, alienada. Mas o lance de dados que faz do salto um destempero controlado jogado às costas feito um paraquedas  que o próprio Perec comparou ao fascismo – il faut se lancer - faz do mesmo, aos poucos como todas as coisas colecionadas em uma biografia sem saltos quaisquer, alguma outra coisa. Trata-se, afinal de uma vida cujos sacrifícios está em adquirir coisas, esta a do casal. Coisas que lhe oferecem coisas e, por vezes, algo mais – e que isto pode crescer à forma francesa que aprendi, na animation. Obviamente que tudo depende de um parágrafo, ou menos.

            Ils continuaient leurs vie cahotante: elle correspondait à leur pente naturelle. Dans un monde plein d’imperfections, elle n’etait pas, ils s’en assuraient sans mal, las plus imparfaite. Ils vivaient au jour le jour; ils dépensaient en six heures ce qu’ils avaient mis trois jour à gagner; ils empruntaient souvent; ils mangeaient de frits infâmes, fumaient ensemble leur dernière cigarette, cherchaient parfois pendant deux heures un ticket de métro, portaient des chemises reformées, écoutaient des disques usés, voyageaient en stop, et restaient, encore assez fréquemment, cinq ou six semaines sans changer de draps. Ils n’étaient pas loin de penser que, somme toute, cette vie avait son charme.

            É quando, ao invés de Eu saltar de paraquedas,  salta-Se nos paraquedas, no prazer do sofá. E tudo isso me lembra um poema de Charles Beaudelaire - um dos dois que não me saem da cabeça. 

domingo, 22 de julho de 2012

Promener pour la méthode: OULIPO



1-

            Não há roteiro. A história toda fora um arroubo dramático para reduzir o plano e o caminho a uma sequência de ações. Poderia colocar tudo na conta do bardo inglês ou dos bastardos do século de ouro espanhol. A vida é sonho e o sonho se sonha nos palcos. A vida é regida por marcas delicadas sobre as quais é necessário saber preencher com som e fúria. Com isso não digo que o movimento seja, ou precise se dar ao acaso. Leis não respeitam este panorama, e não desenham alguém como centro necessário de algo, e nisso reside a beleza e o perigo dos modelos, das constantes e das Constituições. Põem e depõem, ainda que sempre a um custo muito alto, ou mediante formas aberrantes de sacrifício em geral auto-consciente. E é neste momento que eu gostaria de exemplificar tudo com estudos e anotações sobre Poincaré, Ampère, Leibniz ou Newton. Mas eu não sei voar. 
            Há duas semanas que tudo o que sei fazer é caminhar. Saio pela porta pesada do 53, Rue du Moulin Vert e decido, não somente se à direita ou à esquerda. Decido aos poucos quais formas de tout à droit comporão o pequeno mapa da cidade que disponho, ou que sei reconhecer em tempo real. É pouca coisa, mas para deduzir um modelo formal não é necessário um conteúdo de experiência fartíssimo. É preciso entender poucas coisas, as que são indispensáveis. É como a vida, é como eu posso evocar algo como cultura; modos de usar, talvez. Assim, Paris permite que a distância entre dois pontos, mesmo que por uma diferença pequena de grau, seja muito perto ou muito longe, ao mesmo tempo, ainda que pegue de alguma forma uma reta. Tudo depende, como já disse, a forma de tout à droit que você desenha e escolhe - porque, e aí está a marca, só se pode ir à tout droit. Basta imaginar, por exemplo, dois pontos de onde se espraiam radiais; 10, 20 cortando em fatias um desenho circular fechado em seus 360 graus, compondo em sua extensão uma malha de linhas cujos cruzamentos que são interrompidos por construções estratégicas, como um presídio, uma escola militar, um cemitério ou um complexo hospitalar. As grandes linhas retas se separam em caminhos alternativos, ângulos de 10º para pontos que, no começo da divergência radial estavam a 30 metros de distância e, por causa da interrupção feita por um hospital do tamanho de Cochin estarão logo mais a 500, 700 metros de distância, se tão pouco.

2-

            Quero me comportar com mais cautela exatamente como deveria agir  um ávido comprador de livros. Estou em meio a uma mini-Meca de bibliófilos, se é que bibliófilos preferem uma Meca a um mezanino que desaparece no dia seguinte. Na verdade, cheguei à fonte de muitos delírios secretos e ressequidos de um tempo que insisto em abandonar e que, ainda assim volta com a língua de fora e ares de abanar a cauda. Meu caso fica um pouco mais grave devido à força que a publicação da arte de ser intelectual  francesa exerceu em minha vida que teve sua gênese na francofilia que meus pais nutriram no percurso de minha infância, e no final da deles. Recebi a mesma francofilia traduzida em revistas automobilística impressas em Paris e de uma mãe franco-falante orgulhosa do feito que traduzia em alta voz os manuais de instrução de duas ou três caixas de Lego que transformaram meu irmão num futuro engenheiro brilhante, o mesmo engenheiro frustrado pelas carreiras nas letras clássicas, magistério e na vida de polímata esportivo.

          Mais adiante, vim a me tornar antropólogo num país marcado profundamente por uma antropologia completamente debitária da herança cultural francesa ou, melhor, de uma certa aliança francesa. Lévi-Strauss, Paul Ricoeur, Albert Camus, Jean-Paul Sartre, Pierre Clastres (surpreendentemente, o primeiro sobre quem ouvi falar) fazem parte de um panteão de leituras graves que fiz ainda aos 18 anos, em grande parte impulsionadas pela companhia de Celso Azzan Jr. e Mark Julian Cass. Ambos professores de primeira hora, o segundo o que me ofereceu minha primeira leitura de The Rebel, ou L'homme revolté, livro que insisto em prometer retornar sem qualquer efeito prático. Mas foi com a leitura de O estrangeiro que recuperei o fôlego literário que eu havia abandonado quando ainda era moleque e leitor das investigações severíssimas conduzidas por Sherlock Holmes. Camus foi um forte calor nas têmporas, sua dilatação mesmo. Mas um só Camus não faz Panteão e claramente fugi do tema, ainda que não tivesse algum.
            A marca franco-amiga seguiu potente porque, pouco tempo depois vim a me tornar livreiro naquela que, até então era somente a loja que mais sonhava em conhecer, livraria que já se fazia presente em boa parte dos livros que eu tinha. O sebo que existia na cidade de São Carlos, o casarão demolido tão claramente quanto o desejo de estudar na França, tinha fornecimento da Livraria Berinjela. Por causa de uma teimosia forte que me degenera os rins, fui parar na mesmo Rio de Janeiro que preenchia minha estantes, que fornecia livros ao outrora grandioso Outros Contos. A carne do esqueleto de meus estudos viria a ficar obesa, como de fato se deu. Toda a gordura proveniente do acesso fácil ao tempero literário foi afetada pela predileção local pelo lúdico, pelo jogo, e pelas regras.
            Convém, obviamente definir o que eu chamo de "predileção local". Jogos de todas as formas, de todos os lugares. O jogo de cartas em Da mão para a boca, de Paul Auster; as contratações sempre adiadas para o Botafogo; as apostas feitas nas campanhas vice-gloriosas do Fluminense na Libertadores da América; o apogeu e glória de Roger Federer; OULIPO. É este o tipo de predileção local que culminou na publicação de uma revista de poesia, da qual nunca participei ou li, chamada Modo de Usar, alusão ao romance de Georges Perec sobre a vida pelo ponto de vista do método, pelas regras do jogo. É este mesmo Perec o protagonista da cena que, até onde entendo das coisas, marca de forma indelével Paris não tem fim de Enrique Vila-Matas.
            Narrador abismado. Caminha por um café movido à Georges Perec. Chega muito perto do mesmo, como que para atestar sua existência em carne e osso. Uma polegada de distância, se tanto. A reposta vem à forma de Liceu:

Jovem, o mundo é grande”.

            Afaste-se, narrador.