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sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Notas do subsolo: o pensamento selvagem.


               Imagino que o clichet me serve muito bem, o mesmo que reforça uma certa identidade entre as pesquisas em antropologia com o tipo de pensamento e população residentes em espaços selvagens. Jogados em meio ao verde opressor de uma paisagem úmida e quente de uma floresta tropical, ou com as narinas soterradas de poeira jogadas pela última ventania da savana africana, antropólogos devem saber que a razão não é o bastante. Devem saber que há mais do que sonha a vã-filosofia, e que ainda que não se saiba, há vida selvagem, há povos selvagens, há a selva. No caso, e permito-me abusar da má imagem, a selva serve como pictograma do risco e do informe, assim como da plena potência que torna presentes toda sorte de impotência do pesquisador que não sabe caçar, que não sabe o que fazer e o que não fazer numa roça, e que sequer sabe aonde pode fazer seus despejos fisiológicos sem correr riscos mais severos, dentro ou fora da natureza selvagem. Este momento em que a nudez e a mudez não é indígena, mas da impotência da ação premeditada pode ser traduzida, ainda que em má tradução, para a perda de referenciais e, de outra forma, o excesso de sinais que a situação selvagem oferece.
            Quando nos afastamos do clichet, mas não muito, é possível perceber que o selvagem tem outras extensões, e que estas extensões pertencem à selva que não é, necessariamente, silvícola. É importante ressaltar que, todo este tempo, a natureza do selvagem será relativa a um momento, a saber, o momento em que se está perdido. Peter Gow, antropólogo britânico que fez campo entre os Piro (população do Peru amazônico) escreveu um artigo para uma coletânea sobre antropologia e paisagem. Escreveu o quanto pode ser inútil estar bem preparado para transitar floresta adentro. O quanto um sistema cartográfico que alia notas de um ponto de vista aero-espacial, que é o mapa, com um sistema de orientação de pontos de referência completamente dependentes de coordenadas disponíveis num sistema visual de tipo landscape se transforma em peso morto quando se chega a uma floresta amazônica cuja densidade verde não lhe deixa enxergar sequer 10 metros adiante e, pior, a confusão de tons, sombra e movimento não permite que se faça a distinção de figura e fundo violando dimensões imprescindíveis para a orientação planejada. Mapa, bússola, sistema de coordenadas, os piro com poucas roupas e o antropólogo nu.
            Mas o selvagem não é o selvagem. Isto é importante. De acordo com uma certa sensibilidade com relação à qual procuro me aproximar lentamente – confesso que estou um tanto quanto perdido -, o selvagem não é alguém. A segunda cena tira a selva da cena selvagem. Estarei mais próximo daquilo que preciso dizer sem atropelar a sensibilidade de mais ninguém, fazendo com que alguém além de mim se sinta perdido enquanto lê o que escrevo; ouve o que falo. Para o leitor menos afeito às aventuras selvagens da atividade etnográfica, o segundo exemplo nos leva imediatamente à Paris e ao parisiense. Em seu ensaio Die Groß Städte und das Leben des Geistes, Simmel faz uma reflexão afinada com a perda das relações de referência que permitiriam a orientação espacial exatamente pela relação fina entre ter e estar perdido, o que culmina num excesso de sinais como consequência. A cena hipotética, e que imagino ser uma articulação sociológica de algo próximo de seu “eu-lírico” é a aparição de alguém que nunca esteve em Paris se vendo diante do espetáculo de luz, som, cor e movimento da Avenue Champs Elysées, por exemplo. Não estou seguro se a cena é necessariamente esta, mas como minha memória me trai e não ressinto, prossigo.
            O caso é que o ambiente produz efeitos. No caso, o de desorientação. Ainda hoje a diferença é flagrante. Alguém nascido e criado numa vila como qualquer uma ao redor de St. Brieuc que tem como orientação espacial algo simples como “linha do horizonte” e mesmo “poucos corpos similares ao seu em movimento ao redor” se vê num impasse que é algo muito similar ao impasse do número assombroso de pessoas atropeladas por carros no anos 1920-30 simplesmente porque não tinham como calcular – calcular é força de expressão – a velocidade daquilo que se movia em sua direção. Paris não oferece muitos pontos de fuga que não sejam boulevards e, quando oferece, se está num ponto muito alto, ou muito baixo o que é forte indício que está perdido há algum tempo. Simmel, obviamente, vai além. O que ele enfatiza é que o mundo parisiense, cheio de lojas, vitrines, panneaus , música, gente, movimento, oferece uma variedade de sinais tamanha que o efeito ambiental obrigatório é a perda de orientação, o que faz ser obrigatório para aquele que lá (aqui) vive o desenvolvimento da conduta blasé, isto é, que consegue se pôr indiferente à maior parte dos sinais e conseguir se ater ao mínimo relevante para a circulação. Aquele que acaba de chegar à Champs Elysées está, via de regra, perdido. Não encontra as referências fundamentais que lhe fazem intuir ser quem é e, em troca recebe um excesso de sinais que só lhe farão, em um primeiro momento, um paranóico potencial ou mesmo, iniciante.
            Como não traçar uma analogia entre o que descreve Peter Gow e Georg Simmel? Digo, assim reduzidos ao que interessa às notas que redijo, a relação parece clara porque o selvagem parece irromper neste duplo movimento entre a perda de referenciais seguros e um excesso que se impõe imediatamente. Obviamente que não quero dizer que isto é universalmente o que deve ser entendido como selvagem, mas como aquilo que nestas notas quero definir como sentimento diante do selvagem que, de outra forma pode ser definido por uma palavra somente: vertigem. O selvagem aqui será o que causa vertigem. E só.
            Seguramente que com relação ao selvagem que causa vertigem, coisa que nas linhas de Casa Grande & Senzala significa bem outra coisa, há uma outra dimensão importante que serve tanto como antecedente do problema como uma analogia importante que vão se encontrar, a dimensão e a analogia, no mesmo lugar. Quero dizer que a vertigem aqui precisa ter alguma relação como o transporte – que no  francês transport significa um modo de transe extático sobre o qual há muito o que considerar. O que por ora posso fazer é meramente exercitar o pouco que sei e imagino para que uma coisa e outra venham a ter algo mais do que um sentido improvisado. O que busco, e tenho pretensões propriamente historiográficas, é articular o improviso com a harmonia – nem tanto à moda de um trompetista como Boris Vian, mas mais atento aos vôos agudos soltos pelo sistema solar de Charles Fourier.
            Porque eu posso dizer que de St. Andrews, Escócia até a Amazônia peruana, Peter Gow fora transportado. O mesmo vale para a cena de Simmel na qual o sujeito que sofre dos efeitos de Paris fora quase que teletransportado, dado o começo abrupto da cena em que o sujeito não chega até Paris, mas está lá desde então. Mas o transporte em matéria experimental é exatamente uma das variações com relação à vertigem. E aqui eu precisaria começar a escrever tudo de novo.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Hiléia:Altamira, Gimpel, o bobo


Dentro dos meus poderes. Soa à clausura, ainda que eu estivesse em plena viagem, solto por aí, sendo que para onde eu apontasse fosse Belém eu estaria preso. Mas não é clausura. É o corpo. As ruas vazias do caminho de volta, desde o almoço com Alípio mostraram a quantidade desmedida de mangueiras, todas igualmente enormes que ornam a região central da cidade. Não por acaso, ao tentar contar uma história qualquer para um ou outro conhecido que já esteve nesta paisagem, uma história que exija reconhecer um endereço mais preciso, o chiste demanda saber se “é perto de uma mangueira”. Para todos os lados.

Tricotar entre ruas, em especial entre a avenida Nazaré e a rua José Malcher, com ambas simplesmente evacuadas surtiu o efeito de me mostrar raízes, tendo as travessas o efeito de me espalharem pela cidade possível, pondo algo de mim em circulação viva. Caso morto com estocadas descuidadas, escorreria em sangue pela corrente sangüínea logo na primeira chuva, coisa que não demoraria a acontecer; uma das duas, eu imaginei, ou ambas. O terreno da violência de Belém cultivado nos meus ouvidos desde muito antes, desde um certo atraso em vir, desde tudo o que li, e as cautelas que tanto preparam meus passeios, por fim não serviram de outra coisa senão para criar impulsos diferentes, futuros diferentes permeando as rotas e os encontros, raríssimos, que vieram a acontecer. Afinal, lá estava eu, lá estavam as ruas, lá estava o deserto de mangueiras e rotas ornamentadas por edifícios postos para pregar peças, assustar e esconderem-se de todos. Mais ninguém, e eu, com a mente vazia, e a casa do diabo. E lá estava, fantasiando minhas mortes possíveis; e começando a gostar da vida paraense e a morte que ela trazia engarrafada como um gênio maligno.



            Como cheguei até Belém de avião, e como tenho medo de voar ainda que tenha certa delícia por altitude, carreguei comigo minha vasta coleção de livros imperfeitos. Uma mochila deles que, não tardou, deixei numa casa delicadamente erguida no final do arco-íris. Nesta mochila arquivei meu estoque de leituras que teriam efeito profilático em momentos de crise – que foram vários. Assim, meus livros de René Girard, Juan Rulfo, Stanley Cavell, Eduardo Galvão e Alasdair MaCyntire me pesavam nos ombros a cada chamada de um portão de embarque lembrando ser esta uma viagem repleta de tarefas, algumas delas pouco confessáveis. Parte destas tarefas estava devidamente sinalizada pela presença, sempre heterodoxa de A morte de Matusalém de Isaac Bashvis Singer, escritor iídiche novayorkino com quem passei a travar longas jornadas de conversa e simpatia, jornadas também divididas com Amós Oz e Elias Canetti. Por toda uma zona que preza o artifício das línguas secretas, gosto de imaginar, à moda da imaginação adoentada, que ando meio judeu e, por não sê-lo sei, nos apertos de mão e símbolos dispostos na lapela, que não estou sozinho.
            A leitura dos contos de Bashevis Singer cumpria a função de toda leitura trágica ou teologicamente informada que sempre ponho no colo a cada vôo em que me sento. Uma vez dentro de um avião desejo, para fins de refreio de um ou outro faniquito, que a viagem seja a última e que ela termine na queda e na explosão que antevejo a cada vez que lembro ser minha hora de voar. Entendo que o medo seja em grande parte carregado pela antecipação de algo que, por ser contingente não pode ser antecipado. Este hiato me arremessa em uma zona infinitesimal em que o adiamento do infortúnio, do fim tantas vezes temido, transforma-se num castigo eterno, as tripas devoradas por abutres, corvos e urubus. Para sempre; a eternidade na antecipação de uma mente pobre. O mal que se busca evitar não chega jamais, até porque vir pode não ser de seu domínio. O que entendi é que para evitar o abismo, para contorná-lo me é imperativo desejá-lo enquanto for o momento de sua irrupção. Não esperar que venha, mas desejar que venha. A fenda na terra me fará saltar, diria aqui se fosse um profeta pregando no deserto.



            Voltei ao hostel na eminência de chuva forte (diria iminência, mas eminência talvez faça mais sentido) que, por força do hábito me faria parar. Não parei. Travei conferência longa sobre destinos possíveis, novos rumos cujo passeio me levou ao que acontece em crônicas ruins: detalhes pitorescos do aparelho urbano e chuva. Muita chuva. Domingo interrompido.



Alguém bate à porta. Por alguma razão, todos os contos de Bashevis Singer parecem começar assim. É assim que os ordeno, é assim que me lembro deles, é assim que eles não são. Alguém bate à porta. Porque está escuro, porque é noite, porque é inverno, porque há um incêndio, porque se está a amar. E então, alguém bate à porta – em geral é o diabo. No quarto sem janelas que já trazia marcas de acolhimento, comecei a pensar na porta. Sem janelas, uma porta. Ninguém jamais bateria àquela porta. Fechei o volume que lia, um conto em que alguém chegava até uma outra pessoa, batendo à porta mais uma vez. Não sei, na verdade. É como me lembro. Choveu de novo, mas com ímpeto e energia que só vi se repetir duas ou três vezes no percurso que viria a fazer. Dois dias depois, fiz o mesmo caminho, do quarto, subindo a escada apertada até a recepção, de forma a me espalhar na sala de TV. Choveu a mesma chuva que, impetuosa e indiscreta fez parar tudo. Na verdade, é difícil descrever um momento como esse. Uma tempestade amazônica tem uma marca indiscutível. Não é que não chova forte, de forma definitiva na cidade de Campinas. Perdem-se muros, árvores e calçamentos a cada vez que o céu pratica sua violência. Mas, ao exemplo dos passarinhos, a chuva, lá e cá, não são as mesmas. Em casa, gotas finas, de voz aguda, em meio a trovões esganiçados e repetitivos. Histeria destrutiva, pressa. Enquanto subia para ouvir a chuva no salão, e esta sensação se repetiu em cada oportunidade, o grave predominava como tom, e os golpes de vento eram feitos a punho cerrado, encerrando a questão. Os trovões não vinham em berro, mas em rumor. Tudo sob controle da chuva, enquanto o resto de nós, ou escondidos, ou escorrendo pelas travessas encarnadas.
            Obviamente que me peguei pensando. O momento patético do viajante literário que, pensativo e atrapalhado, olha para o teto, reflete e disserta. Ridículo. Escrevi em meu caderno verde:

            Tem que ver. Há uma leitura de que gosto muito – e escrevo sobre esta leitura debaixo da pior tempestade que já vi em território amazônico. E por isso mesmo que me veio à memória. Afinal, aqui, nada mais improvável do que qualquer coisa que Isaac Bashevis Singer tenha escrito. Gimpel, o bobo seria devorado e morto, ou simplesmente apodrecido. O velho manco aficcionado pela prosa do narrador, e que condena com frieza toda a poesia do mundo por causa da amizade não-contraditória que pôde nutrir com o nazismo; bom, ninguém pediria autógrafos tendo que atravessar uma chuva dessas, os livros ficariam molhados e se entregariam ao bolor da umidade posta ao sol abafado; seria um velhinho assaltado, como temia Alípio em nosso almoço; não seria. O que quero dizer é que Bashevis Singer faria suas personagens desistirem, lesos e inchados  pelo calor, desesperados ou sonolentos para aventarem qualquer cotejo ao Torah. E com isto não quero dizer que Belém é uma cidade particularmente cruel em um corte patológico. O que digo é que não há nada para uma personagem de Bashevis Singer fazer por aqui e que, talvez o melhor que fizessem fosse retornar à Val-de-Cães e, então, para a enorme casa internacional da geopolítica judia. Nesta chuva, uma coisa é certa. Nesta chuva, ninguém lê. Nesta chuva  o diabo não bate à porta.
           

sábado, 3 de março de 2012

Hiléia:Altamira - Primeiro e Segundo Atos, juntos


Tudo o que vou contar deve ser derivado de uma só frase, que diz: “eu tenho um amigo”. Daí desdobra-se uma série de eventos que, aqui devem ser narrados na busca da antipatia do leitor. Não com relação somente à história, mas com relação ao seu narrador que é, também o principal suspeito de qualquer crime que venha a ser cometido no prosseguimento destas linhas.

“Eu tenho um amigo. Ele se chama Victor. Mas toda vez que o chamo por “Victor”, seu nome me soa falso. E não só para mim. Os convivas de ambos, Victor e eu nunca sabem sobre quem estou falando quando digo algo sobre Victor. Sai sem convicção. Seu nome, para todos os efeitos é Codorna”.

Em 2000, por alguns meses, e creio que não muito mais do que 3 ou 4, moramos juntos. A cidade era outra, tudo era, também muito outra coisa. Morávamos em um apartamento térreo que, marcado por 4 assaltos repetidos em um tempo muito curto, 3 delas nos tendo como moradores, acabou nos expulsando do convívio comum. Éramos Codorna, Japoneiz  e eu. Sempre chegávamos após o crime. Felizmente, não testemunhamos a quarta inventiva, a mais violenta e que se espraiou até outros apartamentos. Este mesmo amigo que tenho, Codorna, brigou comigo e nos abandonou ainda antes do terceiro ataque. Partiu em gritos e bater de portas. Ainda assim, não creio que nenhum de nós dois tenha se incomodado muito com o assunto, mesmo no calor da hora. Nem eu, que sadicamente ri da briga ainda na ocasião, e nem ele que nunca deixou de se portar como aquele sobre quem escrevo, aquele a quem chamarei de amigo. Quando redijo “eu tenho um amigo”, quero dizer “Codorna”, assim como seus pais provavelmente repetem “Victor”, a quem educaram para demandar uma tal organização doméstica com a qual eu, leniente e réprobo nunca vim a compactuar.

Este amigo que tenho foi se espalhar por aí, em mais de uma forma. Algumas lhe dão orgulho, outras preocupação. Acabou que se envolveu na tarefa indigenista, o que é uma das formas perfeitas de fazer conjugar ambos, orgulho e preocupação. Hoje é funcionário da FUNAI. Eu tenho um amigo que trabalha para a FUNAI. E então, esta história versa sobre um triângulo amoroso. Codorna e eu, como permaneceremos na trama, não merecemos nenhuma descrição imediata. Podemos adiar até o momento em que algo será feito – e eu mesmo já posso ser definido com facilidade pelo leitor paciente e atento. Mas a FUNAI, esta necessita de definição. Afinal, como identificar, como tecer juízos sobre a FUNAI? Para que não venhamos a criar inimizades antes do tempo, e para que nenhum desleixo fácil seja reprovado sob a reprovação de uma declaração preconceituosa qualquer, creio ser de bom tom recorrer à auto-definição, a mesma que produz uma série de permissões públicas para que alguém seja um monte de coisas, inclusive índio. Assim, FUNAI:

“A Fundação Nacional do Indio – FUNAI, criada pela Lei 5.731, de 05 de janeiro de 1967, vinculada ao Ministério da Justiça, entidade com patrimônio próprio e personalidade jurídica de direito privado, é o órgão federal responsável pelo estabelecimento e execução da política indigenista brasileira em cumprimento ao que determina a Constituição Federal Brasileira de 1988.
A FUNAI tem como objetivo principal promover políticas de desenvolvimento sustentável das populações indígenas, aliar a sustentabilidade econômica à sócio- ambiental, promover a conservação e a recuperação do meio ambiente, controlar e mitigar possíveis impactos ambientais decorrentes de interferências externas às terras indígenas, monitorar as terras indígenas regularizadas e aquelas ocupadas por populações indígenas, incluindo as isoladas e de recente contato, coordenar e implementar as políticas de proteção aos grupos isolados e recém-contatados e implementar medidas de vigilância, fiscalização e de prevenção de conflitos em terras indígenas.
Missão
Coordenar o processo de formulação e implementação da política indigenista do Estado brasileiro, instituindo mecanismos efetivos de controle social e de gestão participativa, visando à proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas.
De acordo com o Decreto nº. 7.056, de 28 de dezembro de 2009, que dispõe sobre a estrutura regimental da Funai, esta tem por finalidade:
     I - exercer, em nome da União, a proteção e a promoção  dos direitos dos povos indígenas;      II - formular, coordenar, articular, acompanhar e garantir o cumprimento da política indigenista do Estado brasileiro, baseada nos seguintes princípios:
     a) garantia do reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas; b) respeito ao cidadão indígena, suas comunidades e organizações ; c) garantia ao direito originário e à inalienabilidade e à indisponibilidade das terras que tradicionalmente ocupam e ao usufruto exclusivo das riquezas nelas existentes; d) garantia aos povos indígenas isolados do pleno exercício de sua liberdade e das suas atividades tradicionais sem a necessária obrigatoriedade de contatá-los; e) garantia da proteção e conservação do meio ambiente nas terras indígenas; f)garantia de promoção de direitos sociais, econômicos e culturais aos povos indígenas; g) garantia de participação dos povos indígenas e suas organizações em instâncias do Estado que definem políticas públicas que lhes digam respeito; e
     III - administrar os bens do patrimônio indígena, exceto aqueles bens cuja gestão tenha sido atribuída aos indígenas ou suas comunidades, consoante o disposto no art 29, do Decreto nº 7.056, de 28 de dezembro de 2009, podendo também administrá-los por expressa delegação dos interessados;     
IV - promover e apoiar levantamentos, censos, análises, estudos e pesquisas científicas sobre os povos indígenas, visando a valorização e divulgação das suas culturas;
     V - acompanhar as ações e serviços destinados à atenção à saúde dos povos indígenas;
     VI - acompanhar as ações e serviços destinados a educação diferenciada para os povos indígenas;
     VII - promover e apoiar o desenvolvimento sustentável nas terras indígenas, em consonância com a realidade de cada povo indígena;
     VIII - despertar, por meio de instrumentos de divulgação, o interesse coletivo para a causa indígena;
     IX - exercer o poder de polícia em defesa e proteção dos povos indígenas.”

É no encontro de Codorna com a FUNAI, não necessariamente a que descrevemos acima, que vim a fazer a viagem que fiz. Foi por sua convocação. Por seu momento em que se portou como um moleque abusado, quando fez um risco no chão e desafiou a qualquer um passar, correndo o risco de apanhar no caso de fazê-lo. Eu tenho um amigo que trabalha na FUNAI. Depois de um primeiro trabalho ao sul da margem do Rio Grande, acabou em Altamira, cidade que serviu de objeto para o desafio que ele mesmo lançou, divulgado pelos quatro ventos, e por mim mesmo colaborando com um ou dois sopros. Cuspi na palma de minha mão direita que lhe ofereci em cumprimento selando o pacto que rezava: eu iria para Altamira. Fui à Altamira.

Mas estou me adiantando. Há muito o que dizer sobre Victor e Altamira – e mais, acerca de ambos.

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Parti para Belém no dia 11 de fevereiro. Entrei mais uma vez, contrariado em um avião que faria rota até Belo Horizonte para então seguir para Belém. Comprei a passagem ainda com o sabor da primeira e única estadia que tive na capital paraense. O gosto ruim, fruto de uma estadia desajustada no bairro do Guamá, ainda selava todo e qualquer juízo que tivesse a respeito da cidade. Que não se entenda disso qualquer manifestação de desprezo. Em absoluto. O sabor de Belém soava a uma versão pouco ajustada de derrota. Nunca entendi isso com clareza, mas quando fiz meu primeiro vôo de volta para Campinas a sensação era de surra muito bem tomada por um grupo mascarado que ataca sem ser visto. Não conseguiria identificar o agressor. Estava à noite, me atacaram pelas costas, bateram muito no meu rosto.

Foi numa das inúmeras viagens a congressos científicos que marcam toda a trajetória acadêmica de um pesquisador mediano que acabei pousando em Belém. De madrugada, a paisagem da cidade não era outra senão a sinfonia repetitiva dos pontos de luz mediados por manchas enegrecidas de cada quarteirão. De táxi, o trajeto contornava a quantidade enorme de muros extensos e casebres mal-acabados que figuram a beira de boa parte das avenidas pelas quais pude passar. O caminho até o bairro de Guamá, que repete o rio que banha as costas da cidade servia de prenúncio dos dias por vir. Valas abertas lotadas de esgoto e o aviso, repetido à exaustão para não caminharmos pelo bairro – nunca contradito por ninguém – manchavam a estadia. Eu ficaria preso num movimento pendular irritante, do hotel para o congresso. 

Não demorou muito para que, ainda que marcado pelo pêndulo triste da vida de congressista, eu avistasse o rio Guamá pela primeira vez. O restaurante do hotel dispunha de um cais que mostrava a imponência e o afastamento entre as margens que, confesso, inaugurou para mim toda uma nova fonte de dimensões. Muito mais água do que parecia razoável, certamente mais do que eu poderia conceber. E não venho aqui portador de mil formas simbólicas que fazem da água alguma fonte suprema de vitalidade e conexão ancestral com um evento qualquer. Sentei-me o mais próximo do rio que pude após ter me servido de um suco de laranja e tentei, em silêncio forjar uma frase que fosse sobre tudo aquilo. Como é possível perceber, ainda não consegui. Todo o resto desta viagem repete a incapacidade de dar o primeiro passo, seja por causa de um cerco qualquer de um bairro de péssima fama, seja porque algo mais poderoso simplesmente se prolonga, displicentemente à minha frente. 

Voltei desta vez à Belém em busca da revanche, ainda que tenha enganado alguns amigos com coisas idiotas do tipo “perder a nhaca da última estadia”. Não carregava comigo nenhum mau cheiro. Era o peso da derrota de ter ido, visto e partido como um infeliz débil mental que passava sem conseguir impor, em momento algum a arrogância de um discurso bem tramado a respeito do que vira. Tinha raiva de Belém como se fosse alguém que tivesse traçado uma linha no chão e, ao me desafiar atravessá-la, por tê-lo feito levou-me também a me acovardar. Belém foi a segunda cidade que fez um apelo convincente à minha covardia.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Hiléia:Altamira I - Introito

Odiar todas viagens, todos os viajantes. Ressalva antiga que Claude Lévi-Strauss imprime em seu Tristes Trópicos e que contrabandeia uma precaução profilática. Odeio todos os viajantes e suas viagens. A mesma profilaxia que contrabandeada, que vem dentro de uma frase notadamente antipática, revela que todo remédio provém de um veneno; todo veneno provém de um remédio, o que justifica o eterno retorno à filologia grega, pharmákon. Lévi-Strauss, quando se permite ao exercício da manifestação de opiniões pessoais, em geral soa como um velho rabugento. O tipo acaba se tornando inviável para a sensibilidade sempre jovem que rumina na paisagem vigente, na maioria crentes na figura da Terceira Idade, Melhor Idade, e outra forma de plastificação do tempo na forma de cartões de crédito dos bebês chorões formados à base de talco e suco de pêra. É difícil, de uma forma geral ouvir o que uma ressalva mal-humorada tem para oferecer. No meu caso, reconhecidamente nascido com 72 anos de idade, com cavanhaque e rabo-de-cavalo, é nos momentos de rabugice que reconheço em Lévi-Strauss um companheiro de praça, um parceiro de jogos de gamão.

Como reconhecer um viajante? Esta pergunta se relaciona com o parágrafo anterior por via de uma máxima dos debates sobre preconceito racial. Imaginando um debate acalorado entre favoráveis e desfavoráveis às cotas para negros em universidades, o contrário declara não reconhecer raça e que toda política cotista é, por fundamento racista, no que é respondido pelo pró-cotas: “quer saber quem é negro, quem não é? Pergunte a um policial!”. Ignore, peço gentilmente, a questão das cotas em si. É o dispositivo de identificação, persecutório, se quiser, para o quê chamo a atenção. Basta odiar os viajantes e todas as viagens para reconhecê-los, ainda que não com justiça. E isto ocorre especialmente quando o reconhecimento se dá inter-pares. Viajantes, que se detestam, reconhecem-se no primeiro jogo de olhares. Não obstante serem estrangeiros, estranham-se entre si fazendo de todo primeiro contato um exercício necessário de constrangimento. Se é possível aplicar às sensações alguma forma matemática, digamos que é o momento esponencial do ser-estranho.

Ainda assim, e esta é a razão de retomar a frase de Lévi-Strauss, este sujeito que é estranho e que, no limite não tem outro futuro possível senão estranhar-se ainda mais, este mesmo sujeito volta da viagem tomado pela arrogância diagnóstica. Sabe sobre tudo o que viu, anota dois ou três caderninhos, se tanto e consegue dizer como é que vivem por ali, por onde foi, como é aquele lugar, produzindo uma forma de história natural de improviso que nada faz senão apagar os traços que levariam um segundo viajante aos mesmos lugares e pessoas. É desta forma que ao viajar, não se chega a lugar algum. Há quem chame isso de turismo. Mas não é por tecer mais uma frase idosa de tão mal-humorada que redijo esta abertura que, até então nada fala sobre a viagem até a Hiléia, já muito devastada pelo cenário que me levou para Altamira. Não é uma condenação do turismo, ainda que isto tenha lá algum merecimento para tal. O que chamo a atenção é para a arrogância de todos os viajantes que, ainda que de forma inocente, parecem dar conta do que viram, e fazem do relato irresponsável uma sucessão de anedotas que parecem ser algo melhor. Por mais solene e grandiloqüente que eu venha a parecer, é assim que escrevo. Viajei e, reitero, nada do que eu escrevo deve ser lido como algo diferente de uma sucessão arrogante de anedotas de viajantes. De Altamira, do Xingu, dos heróis e vilões com quem travei contato, eu nada sei. No limite, estas são linhas cujo conteúdo deve-se odiar – como fruto de uma viagem, como produção de um viajante – e ao entender que este relato é, antes de tudo, veneno, é que a sua forma terapêutica talvez se manifeste.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

E eu, que ainda nem cheguei na Hiléia...















“Até o outro lado do rio. E não tem essa frescura de mesma pessoa, mesmo rio, duas vezes. Tem que nadar até lá, na água fria". No que apontou para uma diagonal longa e contrária à correnteza. “Porque se não for assim, você vai parar na Ilha dos Açores, moleque”. Basicamente, chegar até o outro lado do condado sem percorrer longos trechos à pé; o nadador de John Cheever sem interrupção; sem Cheever, sem narrativa, só braçadas.

Sem querer fazer uma outra comparação, e sem conseguir evitar, os rios gregos devem ser fios d´água para que alguém como Heráclito possa ter se transformado em clichet. Agora que vejo o Guamá de perto, cheio de placas para turistas, exclamando por amor ao bom Jesus para que não nadem, essa história de um mesmo homem não poder entrar no mesmo rio duas vezes, aqui, tem outro sentido. Aqui, é porque não haverá uma segunda vez. Basta olhar o tamanho daquele redemunho.

Afinal, é impossível se recuperar da visão da chuva a 5 quilômetros, chovendo na outra margem. Este não é, ainda, o grande rio. Vê-se a outra margem.