Tudo o que vou
contar deve ser derivado de uma só frase, que diz: “eu tenho um amigo”. Daí
desdobra-se uma série de eventos que, aqui devem ser narrados na busca da
antipatia do leitor. Não com relação somente à história, mas com relação ao seu
narrador que é, também o principal suspeito de qualquer crime que venha a ser
cometido no prosseguimento destas linhas.
“Eu tenho um
amigo. Ele se chama Victor. Mas toda vez que o chamo por “Victor”, seu nome me soa
falso. E não só para mim. Os convivas de ambos, Victor e eu nunca sabem sobre
quem estou falando quando digo algo sobre Victor. Sai sem convicção. Seu nome,
para todos os efeitos é Codorna”.
Em 2000, por
alguns meses, e creio que não muito mais do que 3 ou 4, moramos juntos. A
cidade era outra, tudo era, também muito outra coisa. Morávamos em um
apartamento térreo que, marcado por 4 assaltos repetidos em um tempo muito
curto, 3 delas nos tendo como moradores, acabou nos expulsando do convívio
comum. Éramos Codorna, Japoneiz e eu.
Sempre chegávamos após o crime. Felizmente, não testemunhamos a quarta
inventiva, a mais violenta e que se espraiou até outros apartamentos. Este
mesmo amigo que tenho, Codorna, brigou comigo e nos abandonou ainda antes do
terceiro ataque. Partiu em gritos e bater de portas. Ainda assim, não creio que
nenhum de nós dois tenha se incomodado muito com o assunto, mesmo no calor da
hora. Nem eu, que sadicamente ri da briga ainda na ocasião, e nem ele que nunca
deixou de se portar como aquele sobre quem escrevo, aquele a quem chamarei de
amigo. Quando redijo “eu tenho um amigo”, quero dizer “Codorna”, assim como
seus pais provavelmente repetem “Victor”, a quem educaram para demandar uma tal
organização doméstica com a qual eu, leniente e réprobo nunca vim a compactuar.
Este amigo que
tenho foi se espalhar por aí, em mais de uma forma. Algumas lhe dão orgulho,
outras preocupação. Acabou que se envolveu na tarefa indigenista, o que é uma
das formas perfeitas de fazer conjugar ambos, orgulho e preocupação. Hoje é
funcionário da FUNAI. Eu tenho um amigo que trabalha para a FUNAI. E então,
esta história versa sobre um triângulo amoroso. Codorna e eu, como
permaneceremos na trama, não merecemos nenhuma descrição imediata. Podemos adiar
até o momento em que algo será feito – e eu mesmo já posso ser definido com
facilidade pelo leitor paciente e atento. Mas a FUNAI, esta necessita de definição.
Afinal, como identificar, como tecer juízos sobre a FUNAI? Para que não
venhamos a criar inimizades antes do tempo, e para que nenhum desleixo fácil
seja reprovado sob a reprovação de uma declaração preconceituosa qualquer,
creio ser de bom tom recorrer à auto-definição, a mesma que produz uma série de
permissões públicas para que alguém seja um monte de coisas, inclusive índio.
Assim, FUNAI:
“A Fundação Nacional do Indio – FUNAI,
criada pela Lei 5.731, de 05 de janeiro de 1967, vinculada ao Ministério da Justiça, entidade com patrimônio
próprio e personalidade jurídica de direito privado, é o órgão federal
responsável pelo estabelecimento e execução da política indigenista brasileira
em cumprimento ao que determina a Constituição Federal Brasileira de 1988.
A FUNAI tem como objetivo principal promover
políticas de desenvolvimento sustentável das populações indígenas, aliar a
sustentabilidade econômica à sócio- ambiental, promover a conservação e a
recuperação do meio ambiente, controlar e mitigar possíveis impactos ambientais
decorrentes de interferências externas às terras indígenas, monitorar as terras
indígenas regularizadas e aquelas ocupadas por populações indígenas, incluindo
as isoladas e de recente contato, coordenar e implementar as políticas de
proteção aos grupos isolados e recém-contatados e implementar medidas de
vigilância, fiscalização e de prevenção de conflitos em terras indígenas.
Missão
Coordenar o processo de formulação e
implementação da política indigenista do Estado brasileiro, instituindo
mecanismos efetivos de controle social e de gestão participativa, visando à
proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas.
De acordo com o Decreto nº.
7.056, de 28 de dezembro de 2009, que dispõe sobre a estrutura regimental da Funai, esta tem por finalidade:
I - exercer, em nome da União, a proteção e a promoção dos direitos dos povos indígenas; II - formular, coordenar, articular, acompanhar e garantir o cumprimento da política indigenista do Estado brasileiro, baseada nos seguintes princípios:
a) garantia do reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas; b) respeito ao cidadão indígena, suas comunidades e organizações ; c) garantia ao direito originário e à inalienabilidade e à indisponibilidade das terras que tradicionalmente ocupam e ao usufruto exclusivo das riquezas nelas existentes; d) garantia aos povos indígenas isolados do pleno exercício de sua liberdade e das suas atividades tradicionais sem a necessária obrigatoriedade de contatá-los; e) garantia da proteção e conservação do meio ambiente nas terras indígenas; f)garantia de promoção de direitos sociais, econômicos e culturais aos povos indígenas; g) garantia de participação dos povos indígenas e suas organizações em instâncias do Estado que definem políticas públicas que lhes digam respeito; e
III - administrar os bens do patrimônio indígena, exceto aqueles bens cuja gestão tenha sido atribuída aos indígenas ou suas comunidades, consoante o disposto no art 29, do Decreto nº 7.056, de 28 de dezembro de 2009, podendo também administrá-los por expressa delegação dos interessados;
I - exercer, em nome da União, a proteção e a promoção dos direitos dos povos indígenas; II - formular, coordenar, articular, acompanhar e garantir o cumprimento da política indigenista do Estado brasileiro, baseada nos seguintes princípios:
a) garantia do reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas; b) respeito ao cidadão indígena, suas comunidades e organizações ; c) garantia ao direito originário e à inalienabilidade e à indisponibilidade das terras que tradicionalmente ocupam e ao usufruto exclusivo das riquezas nelas existentes; d) garantia aos povos indígenas isolados do pleno exercício de sua liberdade e das suas atividades tradicionais sem a necessária obrigatoriedade de contatá-los; e) garantia da proteção e conservação do meio ambiente nas terras indígenas; f)garantia de promoção de direitos sociais, econômicos e culturais aos povos indígenas; g) garantia de participação dos povos indígenas e suas organizações em instâncias do Estado que definem políticas públicas que lhes digam respeito; e
III - administrar os bens do patrimônio indígena, exceto aqueles bens cuja gestão tenha sido atribuída aos indígenas ou suas comunidades, consoante o disposto no art 29, do Decreto nº 7.056, de 28 de dezembro de 2009, podendo também administrá-los por expressa delegação dos interessados;
IV - promover e apoiar levantamentos,
censos, análises, estudos e pesquisas científicas sobre os povos indígenas,
visando a valorização e divulgação das suas culturas;
V - acompanhar as ações e serviços destinados à atenção à saúde dos povos indígenas;
VI - acompanhar as ações e serviços destinados a educação diferenciada para os povos indígenas;
V - acompanhar as ações e serviços destinados à atenção à saúde dos povos indígenas;
VI - acompanhar as ações e serviços destinados a educação diferenciada para os povos indígenas;
VII - promover
e apoiar o desenvolvimento sustentável nas terras indígenas, em consonância com
a realidade de cada povo indígena;
VIII - despertar, por meio de instrumentos de divulgação, o interesse coletivo para a causa indígena;
VIII - despertar, por meio de instrumentos de divulgação, o interesse coletivo para a causa indígena;
IX - exercer
o poder de polícia em defesa e proteção dos povos indígenas.”
É no encontro de Codorna com a
FUNAI, não necessariamente a que descrevemos acima, que vim a fazer a viagem
que fiz. Foi por sua convocação. Por seu momento em que se portou como um moleque
abusado, quando fez um risco no chão e desafiou a qualquer um passar, correndo
o risco de apanhar no caso de fazê-lo. Eu tenho um amigo que trabalha na FUNAI.
Depois de um primeiro trabalho ao sul da margem do Rio Grande, acabou em
Altamira, cidade que serviu de objeto para o desafio que ele mesmo lançou,
divulgado pelos quatro ventos, e por mim mesmo colaborando com um ou dois
sopros. Cuspi na palma de minha mão direita que lhe ofereci em cumprimento selando
o pacto que rezava: eu iria para Altamira. Fui à Altamira.
Mas estou me adiantando. Há
muito o que dizer sobre Victor e Altamira – e mais, acerca de ambos.
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Parti para Belém no dia 11 de
fevereiro. Entrei mais uma vez, contrariado em um avião que faria rota até Belo
Horizonte para então seguir para Belém. Comprei a passagem ainda com o sabor da
primeira e única estadia que tive na capital paraense. O gosto ruim, fruto de
uma estadia desajustada no bairro do Guamá, ainda selava todo e qualquer juízo
que tivesse a respeito da cidade. Que não se entenda disso qualquer
manifestação de desprezo. Em absoluto. O sabor de Belém soava a uma versão
pouco ajustada de derrota. Nunca entendi isso com clareza, mas quando fiz meu
primeiro vôo de volta para Campinas a sensação era de surra muito bem tomada
por um grupo mascarado que ataca sem ser visto. Não conseguiria identificar o
agressor. Estava à noite, me atacaram pelas costas, bateram muito no meu rosto.
Foi numa das inúmeras viagens a
congressos científicos que marcam toda a trajetória acadêmica de um pesquisador
mediano que acabei pousando em Belém. De madrugada, a paisagem da cidade não
era outra senão a sinfonia repetitiva dos pontos de luz mediados por manchas
enegrecidas de cada quarteirão. De táxi, o trajeto contornava a quantidade
enorme de muros extensos e casebres mal-acabados que figuram a beira de boa
parte das avenidas pelas quais pude passar. O caminho até o bairro de Guamá,
que repete o rio que banha as costas da cidade servia de prenúncio dos dias por
vir. Valas abertas lotadas de esgoto e o aviso, repetido à exaustão para não
caminharmos pelo bairro – nunca contradito por ninguém – manchavam a estadia. Eu
ficaria preso num movimento pendular irritante, do hotel para o congresso.
Não demorou muito para que,
ainda que marcado pelo pêndulo triste da vida de congressista, eu avistasse o
rio Guamá pela primeira vez. O restaurante do hotel dispunha de um cais que
mostrava a imponência e o afastamento entre as margens que, confesso, inaugurou
para mim toda uma nova fonte de dimensões. Muito mais água do que parecia razoável,
certamente mais do que eu poderia conceber. E não venho aqui portador de mil
formas simbólicas que fazem da água alguma fonte suprema de vitalidade e conexão
ancestral com um evento qualquer. Sentei-me o mais próximo do rio que pude após
ter me servido de um suco de laranja e tentei, em silêncio forjar uma frase que
fosse sobre tudo aquilo. Como é possível perceber, ainda não consegui. Todo o
resto desta viagem repete a incapacidade de dar o primeiro passo, seja por
causa de um cerco qualquer de um bairro de péssima fama, seja porque algo mais
poderoso simplesmente se prolonga, displicentemente à minha frente.
Voltei desta vez à Belém em
busca da revanche, ainda que tenha enganado alguns amigos com coisas idiotas do
tipo “perder a nhaca da última estadia”. Não carregava comigo nenhum mau
cheiro. Era o peso da derrota de ter ido, visto e partido como um infeliz débil
mental que passava sem conseguir impor, em momento algum a arrogância de um
discurso bem tramado a respeito do que vira. Tinha raiva de Belém como se fosse
alguém que tivesse traçado uma linha no chão e, ao me desafiar atravessá-la,
por tê-lo feito levou-me também a me acovardar. Belém foi a segunda cidade que
fez um apelo convincente à minha covardia.
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