sábado, 3 de março de 2012

Hiléia:Altamira - Primeiro e Segundo Atos, juntos


Tudo o que vou contar deve ser derivado de uma só frase, que diz: “eu tenho um amigo”. Daí desdobra-se uma série de eventos que, aqui devem ser narrados na busca da antipatia do leitor. Não com relação somente à história, mas com relação ao seu narrador que é, também o principal suspeito de qualquer crime que venha a ser cometido no prosseguimento destas linhas.

“Eu tenho um amigo. Ele se chama Victor. Mas toda vez que o chamo por “Victor”, seu nome me soa falso. E não só para mim. Os convivas de ambos, Victor e eu nunca sabem sobre quem estou falando quando digo algo sobre Victor. Sai sem convicção. Seu nome, para todos os efeitos é Codorna”.

Em 2000, por alguns meses, e creio que não muito mais do que 3 ou 4, moramos juntos. A cidade era outra, tudo era, também muito outra coisa. Morávamos em um apartamento térreo que, marcado por 4 assaltos repetidos em um tempo muito curto, 3 delas nos tendo como moradores, acabou nos expulsando do convívio comum. Éramos Codorna, Japoneiz  e eu. Sempre chegávamos após o crime. Felizmente, não testemunhamos a quarta inventiva, a mais violenta e que se espraiou até outros apartamentos. Este mesmo amigo que tenho, Codorna, brigou comigo e nos abandonou ainda antes do terceiro ataque. Partiu em gritos e bater de portas. Ainda assim, não creio que nenhum de nós dois tenha se incomodado muito com o assunto, mesmo no calor da hora. Nem eu, que sadicamente ri da briga ainda na ocasião, e nem ele que nunca deixou de se portar como aquele sobre quem escrevo, aquele a quem chamarei de amigo. Quando redijo “eu tenho um amigo”, quero dizer “Codorna”, assim como seus pais provavelmente repetem “Victor”, a quem educaram para demandar uma tal organização doméstica com a qual eu, leniente e réprobo nunca vim a compactuar.

Este amigo que tenho foi se espalhar por aí, em mais de uma forma. Algumas lhe dão orgulho, outras preocupação. Acabou que se envolveu na tarefa indigenista, o que é uma das formas perfeitas de fazer conjugar ambos, orgulho e preocupação. Hoje é funcionário da FUNAI. Eu tenho um amigo que trabalha para a FUNAI. E então, esta história versa sobre um triângulo amoroso. Codorna e eu, como permaneceremos na trama, não merecemos nenhuma descrição imediata. Podemos adiar até o momento em que algo será feito – e eu mesmo já posso ser definido com facilidade pelo leitor paciente e atento. Mas a FUNAI, esta necessita de definição. Afinal, como identificar, como tecer juízos sobre a FUNAI? Para que não venhamos a criar inimizades antes do tempo, e para que nenhum desleixo fácil seja reprovado sob a reprovação de uma declaração preconceituosa qualquer, creio ser de bom tom recorrer à auto-definição, a mesma que produz uma série de permissões públicas para que alguém seja um monte de coisas, inclusive índio. Assim, FUNAI:

“A Fundação Nacional do Indio – FUNAI, criada pela Lei 5.731, de 05 de janeiro de 1967, vinculada ao Ministério da Justiça, entidade com patrimônio próprio e personalidade jurídica de direito privado, é o órgão federal responsável pelo estabelecimento e execução da política indigenista brasileira em cumprimento ao que determina a Constituição Federal Brasileira de 1988.
A FUNAI tem como objetivo principal promover políticas de desenvolvimento sustentável das populações indígenas, aliar a sustentabilidade econômica à sócio- ambiental, promover a conservação e a recuperação do meio ambiente, controlar e mitigar possíveis impactos ambientais decorrentes de interferências externas às terras indígenas, monitorar as terras indígenas regularizadas e aquelas ocupadas por populações indígenas, incluindo as isoladas e de recente contato, coordenar e implementar as políticas de proteção aos grupos isolados e recém-contatados e implementar medidas de vigilância, fiscalização e de prevenção de conflitos em terras indígenas.
Missão
Coordenar o processo de formulação e implementação da política indigenista do Estado brasileiro, instituindo mecanismos efetivos de controle social e de gestão participativa, visando à proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas.
De acordo com o Decreto nº. 7.056, de 28 de dezembro de 2009, que dispõe sobre a estrutura regimental da Funai, esta tem por finalidade:
     I - exercer, em nome da União, a proteção e a promoção  dos direitos dos povos indígenas;      II - formular, coordenar, articular, acompanhar e garantir o cumprimento da política indigenista do Estado brasileiro, baseada nos seguintes princípios:
     a) garantia do reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas; b) respeito ao cidadão indígena, suas comunidades e organizações ; c) garantia ao direito originário e à inalienabilidade e à indisponibilidade das terras que tradicionalmente ocupam e ao usufruto exclusivo das riquezas nelas existentes; d) garantia aos povos indígenas isolados do pleno exercício de sua liberdade e das suas atividades tradicionais sem a necessária obrigatoriedade de contatá-los; e) garantia da proteção e conservação do meio ambiente nas terras indígenas; f)garantia de promoção de direitos sociais, econômicos e culturais aos povos indígenas; g) garantia de participação dos povos indígenas e suas organizações em instâncias do Estado que definem políticas públicas que lhes digam respeito; e
     III - administrar os bens do patrimônio indígena, exceto aqueles bens cuja gestão tenha sido atribuída aos indígenas ou suas comunidades, consoante o disposto no art 29, do Decreto nº 7.056, de 28 de dezembro de 2009, podendo também administrá-los por expressa delegação dos interessados;     
IV - promover e apoiar levantamentos, censos, análises, estudos e pesquisas científicas sobre os povos indígenas, visando a valorização e divulgação das suas culturas;
     V - acompanhar as ações e serviços destinados à atenção à saúde dos povos indígenas;
     VI - acompanhar as ações e serviços destinados a educação diferenciada para os povos indígenas;
     VII - promover e apoiar o desenvolvimento sustentável nas terras indígenas, em consonância com a realidade de cada povo indígena;
     VIII - despertar, por meio de instrumentos de divulgação, o interesse coletivo para a causa indígena;
     IX - exercer o poder de polícia em defesa e proteção dos povos indígenas.”

É no encontro de Codorna com a FUNAI, não necessariamente a que descrevemos acima, que vim a fazer a viagem que fiz. Foi por sua convocação. Por seu momento em que se portou como um moleque abusado, quando fez um risco no chão e desafiou a qualquer um passar, correndo o risco de apanhar no caso de fazê-lo. Eu tenho um amigo que trabalha na FUNAI. Depois de um primeiro trabalho ao sul da margem do Rio Grande, acabou em Altamira, cidade que serviu de objeto para o desafio que ele mesmo lançou, divulgado pelos quatro ventos, e por mim mesmo colaborando com um ou dois sopros. Cuspi na palma de minha mão direita que lhe ofereci em cumprimento selando o pacto que rezava: eu iria para Altamira. Fui à Altamira.

Mas estou me adiantando. Há muito o que dizer sobre Victor e Altamira – e mais, acerca de ambos.

_________________________________________________________________________________

Parti para Belém no dia 11 de fevereiro. Entrei mais uma vez, contrariado em um avião que faria rota até Belo Horizonte para então seguir para Belém. Comprei a passagem ainda com o sabor da primeira e única estadia que tive na capital paraense. O gosto ruim, fruto de uma estadia desajustada no bairro do Guamá, ainda selava todo e qualquer juízo que tivesse a respeito da cidade. Que não se entenda disso qualquer manifestação de desprezo. Em absoluto. O sabor de Belém soava a uma versão pouco ajustada de derrota. Nunca entendi isso com clareza, mas quando fiz meu primeiro vôo de volta para Campinas a sensação era de surra muito bem tomada por um grupo mascarado que ataca sem ser visto. Não conseguiria identificar o agressor. Estava à noite, me atacaram pelas costas, bateram muito no meu rosto.

Foi numa das inúmeras viagens a congressos científicos que marcam toda a trajetória acadêmica de um pesquisador mediano que acabei pousando em Belém. De madrugada, a paisagem da cidade não era outra senão a sinfonia repetitiva dos pontos de luz mediados por manchas enegrecidas de cada quarteirão. De táxi, o trajeto contornava a quantidade enorme de muros extensos e casebres mal-acabados que figuram a beira de boa parte das avenidas pelas quais pude passar. O caminho até o bairro de Guamá, que repete o rio que banha as costas da cidade servia de prenúncio dos dias por vir. Valas abertas lotadas de esgoto e o aviso, repetido à exaustão para não caminharmos pelo bairro – nunca contradito por ninguém – manchavam a estadia. Eu ficaria preso num movimento pendular irritante, do hotel para o congresso. 

Não demorou muito para que, ainda que marcado pelo pêndulo triste da vida de congressista, eu avistasse o rio Guamá pela primeira vez. O restaurante do hotel dispunha de um cais que mostrava a imponência e o afastamento entre as margens que, confesso, inaugurou para mim toda uma nova fonte de dimensões. Muito mais água do que parecia razoável, certamente mais do que eu poderia conceber. E não venho aqui portador de mil formas simbólicas que fazem da água alguma fonte suprema de vitalidade e conexão ancestral com um evento qualquer. Sentei-me o mais próximo do rio que pude após ter me servido de um suco de laranja e tentei, em silêncio forjar uma frase que fosse sobre tudo aquilo. Como é possível perceber, ainda não consegui. Todo o resto desta viagem repete a incapacidade de dar o primeiro passo, seja por causa de um cerco qualquer de um bairro de péssima fama, seja porque algo mais poderoso simplesmente se prolonga, displicentemente à minha frente. 

Voltei desta vez à Belém em busca da revanche, ainda que tenha enganado alguns amigos com coisas idiotas do tipo “perder a nhaca da última estadia”. Não carregava comigo nenhum mau cheiro. Era o peso da derrota de ter ido, visto e partido como um infeliz débil mental que passava sem conseguir impor, em momento algum a arrogância de um discurso bem tramado a respeito do que vira. Tinha raiva de Belém como se fosse alguém que tivesse traçado uma linha no chão e, ao me desafiar atravessá-la, por tê-lo feito levou-me também a me acovardar. Belém foi a segunda cidade que fez um apelo convincente à minha covardia.

Nenhum comentário: