sexta-feira, 16 de março de 2012

Hiléia:Altamira, Gimpel, o bobo


Dentro dos meus poderes. Soa à clausura, ainda que eu estivesse em plena viagem, solto por aí, sendo que para onde eu apontasse fosse Belém eu estaria preso. Mas não é clausura. É o corpo. As ruas vazias do caminho de volta, desde o almoço com Alípio mostraram a quantidade desmedida de mangueiras, todas igualmente enormes que ornam a região central da cidade. Não por acaso, ao tentar contar uma história qualquer para um ou outro conhecido que já esteve nesta paisagem, uma história que exija reconhecer um endereço mais preciso, o chiste demanda saber se “é perto de uma mangueira”. Para todos os lados.

Tricotar entre ruas, em especial entre a avenida Nazaré e a rua José Malcher, com ambas simplesmente evacuadas surtiu o efeito de me mostrar raízes, tendo as travessas o efeito de me espalharem pela cidade possível, pondo algo de mim em circulação viva. Caso morto com estocadas descuidadas, escorreria em sangue pela corrente sangüínea logo na primeira chuva, coisa que não demoraria a acontecer; uma das duas, eu imaginei, ou ambas. O terreno da violência de Belém cultivado nos meus ouvidos desde muito antes, desde um certo atraso em vir, desde tudo o que li, e as cautelas que tanto preparam meus passeios, por fim não serviram de outra coisa senão para criar impulsos diferentes, futuros diferentes permeando as rotas e os encontros, raríssimos, que vieram a acontecer. Afinal, lá estava eu, lá estavam as ruas, lá estava o deserto de mangueiras e rotas ornamentadas por edifícios postos para pregar peças, assustar e esconderem-se de todos. Mais ninguém, e eu, com a mente vazia, e a casa do diabo. E lá estava, fantasiando minhas mortes possíveis; e começando a gostar da vida paraense e a morte que ela trazia engarrafada como um gênio maligno.



            Como cheguei até Belém de avião, e como tenho medo de voar ainda que tenha certa delícia por altitude, carreguei comigo minha vasta coleção de livros imperfeitos. Uma mochila deles que, não tardou, deixei numa casa delicadamente erguida no final do arco-íris. Nesta mochila arquivei meu estoque de leituras que teriam efeito profilático em momentos de crise – que foram vários. Assim, meus livros de René Girard, Juan Rulfo, Stanley Cavell, Eduardo Galvão e Alasdair MaCyntire me pesavam nos ombros a cada chamada de um portão de embarque lembrando ser esta uma viagem repleta de tarefas, algumas delas pouco confessáveis. Parte destas tarefas estava devidamente sinalizada pela presença, sempre heterodoxa de A morte de Matusalém de Isaac Bashvis Singer, escritor iídiche novayorkino com quem passei a travar longas jornadas de conversa e simpatia, jornadas também divididas com Amós Oz e Elias Canetti. Por toda uma zona que preza o artifício das línguas secretas, gosto de imaginar, à moda da imaginação adoentada, que ando meio judeu e, por não sê-lo sei, nos apertos de mão e símbolos dispostos na lapela, que não estou sozinho.
            A leitura dos contos de Bashevis Singer cumpria a função de toda leitura trágica ou teologicamente informada que sempre ponho no colo a cada vôo em que me sento. Uma vez dentro de um avião desejo, para fins de refreio de um ou outro faniquito, que a viagem seja a última e que ela termine na queda e na explosão que antevejo a cada vez que lembro ser minha hora de voar. Entendo que o medo seja em grande parte carregado pela antecipação de algo que, por ser contingente não pode ser antecipado. Este hiato me arremessa em uma zona infinitesimal em que o adiamento do infortúnio, do fim tantas vezes temido, transforma-se num castigo eterno, as tripas devoradas por abutres, corvos e urubus. Para sempre; a eternidade na antecipação de uma mente pobre. O mal que se busca evitar não chega jamais, até porque vir pode não ser de seu domínio. O que entendi é que para evitar o abismo, para contorná-lo me é imperativo desejá-lo enquanto for o momento de sua irrupção. Não esperar que venha, mas desejar que venha. A fenda na terra me fará saltar, diria aqui se fosse um profeta pregando no deserto.



            Voltei ao hostel na eminência de chuva forte (diria iminência, mas eminência talvez faça mais sentido) que, por força do hábito me faria parar. Não parei. Travei conferência longa sobre destinos possíveis, novos rumos cujo passeio me levou ao que acontece em crônicas ruins: detalhes pitorescos do aparelho urbano e chuva. Muita chuva. Domingo interrompido.



Alguém bate à porta. Por alguma razão, todos os contos de Bashevis Singer parecem começar assim. É assim que os ordeno, é assim que me lembro deles, é assim que eles não são. Alguém bate à porta. Porque está escuro, porque é noite, porque é inverno, porque há um incêndio, porque se está a amar. E então, alguém bate à porta – em geral é o diabo. No quarto sem janelas que já trazia marcas de acolhimento, comecei a pensar na porta. Sem janelas, uma porta. Ninguém jamais bateria àquela porta. Fechei o volume que lia, um conto em que alguém chegava até uma outra pessoa, batendo à porta mais uma vez. Não sei, na verdade. É como me lembro. Choveu de novo, mas com ímpeto e energia que só vi se repetir duas ou três vezes no percurso que viria a fazer. Dois dias depois, fiz o mesmo caminho, do quarto, subindo a escada apertada até a recepção, de forma a me espalhar na sala de TV. Choveu a mesma chuva que, impetuosa e indiscreta fez parar tudo. Na verdade, é difícil descrever um momento como esse. Uma tempestade amazônica tem uma marca indiscutível. Não é que não chova forte, de forma definitiva na cidade de Campinas. Perdem-se muros, árvores e calçamentos a cada vez que o céu pratica sua violência. Mas, ao exemplo dos passarinhos, a chuva, lá e cá, não são as mesmas. Em casa, gotas finas, de voz aguda, em meio a trovões esganiçados e repetitivos. Histeria destrutiva, pressa. Enquanto subia para ouvir a chuva no salão, e esta sensação se repetiu em cada oportunidade, o grave predominava como tom, e os golpes de vento eram feitos a punho cerrado, encerrando a questão. Os trovões não vinham em berro, mas em rumor. Tudo sob controle da chuva, enquanto o resto de nós, ou escondidos, ou escorrendo pelas travessas encarnadas.
            Obviamente que me peguei pensando. O momento patético do viajante literário que, pensativo e atrapalhado, olha para o teto, reflete e disserta. Ridículo. Escrevi em meu caderno verde:

            Tem que ver. Há uma leitura de que gosto muito – e escrevo sobre esta leitura debaixo da pior tempestade que já vi em território amazônico. E por isso mesmo que me veio à memória. Afinal, aqui, nada mais improvável do que qualquer coisa que Isaac Bashevis Singer tenha escrito. Gimpel, o bobo seria devorado e morto, ou simplesmente apodrecido. O velho manco aficcionado pela prosa do narrador, e que condena com frieza toda a poesia do mundo por causa da amizade não-contraditória que pôde nutrir com o nazismo; bom, ninguém pediria autógrafos tendo que atravessar uma chuva dessas, os livros ficariam molhados e se entregariam ao bolor da umidade posta ao sol abafado; seria um velhinho assaltado, como temia Alípio em nosso almoço; não seria. O que quero dizer é que Bashevis Singer faria suas personagens desistirem, lesos e inchados  pelo calor, desesperados ou sonolentos para aventarem qualquer cotejo ao Torah. E com isto não quero dizer que Belém é uma cidade particularmente cruel em um corte patológico. O que digo é que não há nada para uma personagem de Bashevis Singer fazer por aqui e que, talvez o melhor que fizessem fosse retornar à Val-de-Cães e, então, para a enorme casa internacional da geopolítica judia. Nesta chuva, uma coisa é certa. Nesta chuva, ninguém lê. Nesta chuva  o diabo não bate à porta.
           

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