terça-feira, 6 de março de 2012

Hiléia:Altamira II


Existe uma classe de pessoas que é, ela mesma o sinônimo de uma classe de relações. Digo assim, que existe sem que se esteja seguro de sua definição. Mas imagino que eu possa dizer desta forma, e que ter amigos não é margem suficiente para dizer algo com segurança. Inclusive há alguma filosofia que diz que ninguém chama outra pessoa de amigo de forma impune. Mais do que isso, chamar alguém de amigo é uma forma velada de evocar o pronome “eu”, de dizer algo e, nisto estar implicado em qualquer coisa que se tenha dito. De alguma forma, quando chamo alguém de amigo, faço a exigência de que eu mesmo seja chamado para depor. No final das contas, por ter começado esta narrativa por uma acusação, e chamar alguém de amigo significa acusá-lo, isto é, defini-lo à revelia de seu consentimento, acabaria por ter que me justificar. Precisaria dizer porque alguém é meu amigo. Afinal, o fazemos para seu diametral oposto, no caso de inimizade.

Numa breve coleção de casos que fazem de alguém, amigo de outrem, é possível sempre se prevenir com alguns dramas possíveis que justifiquem a acusação. Alguém é amigo desde que tomaram um porre numa noite em especial; porque salvou sua vida após ter engasgado com um caroço de azeitona, e mesmo encontrar um caroço no angu; porque recebeu alguém com carinho e consideração; porque emprestou uma caneta na prova final de trigonometria de alguém; porque se envolveram em uma briga de torcida e foram presos na mesma algema. Mas no caso, Codorna é meu amigo ainda que eu não me lembre por quê, como foi ou como teria sido diferente. Fosse uma história, não saberia contar. E, é bom que se entenda, ainda que eu não saiba dizer como foi possível e qual seqüência de eventos foi produzida para que tudo viesse à tona, me é possível acusá-lo como amigo sem prejuízos. Pelo visto, imaginei que deveria ser assim, me veio à mente a mesma idéia que se precipitou na ponta de meu indicador, e ponto. Ei-lo, meu amigo. Sem contestação. Disso, as conseqüências. São várias, e todas parecem estar enormemente atreladas a alguma forma de compromisso afetivo, uma variação característica da expressão obrigatória de sentimentos. A primeira, e a mais efetiva delas é a correspondência.

Durante anos, mesmo após o fim do curso em ciências sociais, mantivemos correspondência expressa. Um pouco desleixada, em especial se comparado com a que mantive com outros amigos do período, os mais atinados com alguma justificativa a respeito do começo da amizade. Afinal, não me lembro de quando Codorna apareceu como amigo. A questão é que a coisa desandou. A falta de correspondência já havia se transformado em aliança temporária na partilha de um mesmo abrigo, o que se deu pouco tempo antes de acusá-lo ser meu amigo. Codorna e eu viemos a dividir o mesmo teto, nos obrigando a muito mais coisas do que em geral a amizade exige. Acabamos que nos exigimos cada vez mais, até que chegamos a um limite. A história que não sei narrar termina em dispersão. Que não se entenda que o limite foi o dia em que rompemos a chutos e pontapé. Nem de perto isso é um desafio. Desafio foi quando Codorna chamou todos os moleques da rua no campinho de areia, traçou uma linha no chão e desafiou a cada um de nós a passar por ela. Cuspiu no chão, apontou pro pé, fez o ritual inteiro. Imagino que falo por todos os amigos de Codorna que nos sentimos, de uma forma geral, emasculados com a cena. Ele tinha ido longe demais.

Confesso que nunca entendi o salto que ele havia dado, e este talvez tenha me orientado a buscar lhe escrever com maior repetição. De um leitor de Milan Kundera e pesquisador da assistência de saúde mental universitária, Codorna se reapresentou no envolvimento do porte de uma contratação pela FUNAI para trabalhar no Rio Grande do Sul junto a populações guaranis. Mas, vale dizer, qual a razão de registrar que sua ida para o sul seja, de alguma forma um salto. Assim, preciso de estereótipos para me explicar. Se há algo que compete à atividade antropológica, em especial a que se dedica a produzir e comentar etnografias, é a apologia da distância. Tudo que é longe, difícil e arriscado soa a ofício real, a medalha de honra ao mérito. O delírio, especialmente se acompanhado por uma dose ou outra de ayahuasca, configura o paraíso reconquistado pela atividade do pesquisador, especialmente se com custo de uma ou duas infecções de malária ou febre tifóide, três cicatrizes, algumas pinturas tribais e um nome adquirido por adoção em campo por alguma família falante de tupi, caribe ou arwak. Pagando na forma da perda da saúde e da orientação espacial, a disciplina científica da antropologia compõe sua glória de ser e fazer antropologia no exercício de ir ao longe, o que faz com que a herança dos missionários católicos soe tão ultrajante na mesma medida em que parece justa. Missionários, naturalistas, antropólogos dividem, no âmago, a mesma missão teórica. Ir – por muito tempo -, voltar, contar.

Não suficiente esta marca, a de que a glória da antropologia está na jornada longa, há uma barreira interna, digo, de que aqueles que ficam por perto dificilmente fazem o caminho da roça e, muito menos, da floresta, tão fortemente desestimulada pela história da Chapeuzinho Vermelho. Existe a classe de antropólogos que estão para a observação do que está por perto. E se há algo a ser dito hoje, é que há antropólogos em todos os lugares. Todos os lugares. Shoppings, listas de e-mail, festas da uva, academias de ginástica, redes sociais e, até mesmo em lugares insuspeitos como universidades e unidades de atendimento de saúde mental. Codorna é mestre em antropologia social por ter produzido uma longa dissertação sobre o sofrimento da depressão em uma universidade do interior paulista. Fui em sua defesa, vi destilar seus argumentos, me deixei não convencer por alguns deles. Meses após assistir sua defesa,  tenho notícias do salto. Codorna estava no Rio Grande do Sul trabalhando como contratado da FUNAI. Seu trabalho travava relações com a população guarani no mesmo estado. Nunca entramos em detalhes sobre o que fazia, mas o que sabia fora suficiente para me satisfazer.

Tempos depois, vingado o trauma do falecimento de um amigo em comum, a distância que Codorna começara a percorrer veio a se tornar intransponível. Ou quase. Foi selecionado para trabalhar, também em regime de contratação em Altamira, cidade de base do consórcio Norte Energia na construção da Usina Elétrica de Belo Monte. E aqui, e espero ser perdoado pela utilização do mesmo recurso que utilizei para escrever sobre a FUNAI, pois deixarei que a auto-identificação faça as vezes da apresentação deste consórcio.

“Conheça a Norte Energia

A concessão para a construção da hidrelétrica, no município de Vitória do Xingu, foi objeto de leilão realizado no dia 20 de abril de 2010. A outorga coube à Norte Energia S.A por um prazo de 35 anos.
A Norte Energia S. A, composta por empresas estatais e privadas do setor elétrico, empreiteiras, fundos de pensão e de investimento e empresas autoprodutoras, firmará contratos de comercialização de energia elétrica no ambiente regulado, com as concessionárias de distribuição, no montante de R$ 62 bilhões, relativos ao fornecimento de 795 mil MWh.
Para explorar o potencial hidrelétrico, a concessionária recolherá à União, como pagamento pelo uso de bem público, o valor anual de R$ 16,6 milhões, além de cerca de R$ 200 milhões que serão pagos à União, ao estado do Pará e aos municípios impactados, referentes à compensação financeira pela utilização de recursos hídricos.
Com estimativa de iniciar as operações no dia 31 de dezembro de 2014 e a comercialização do serviço em fevereiro de 2015, Belo Monte será a maior usina hidrelétrica 100% brasileira e a terceira maior do mundo. Sua construção deve gerar cerca de 20 mil empregos no pico das obras.
A UHE de Belo Monte terá capacidade instalada de 11.233,1 MW de potência e geração anual prevista de 38.790.156 MWh ou 4.571 MW médios e reservatório com área de 516 km quadrados. A conclusão do empreendimento está prevista para 10 anos, com início de operação da última máquina em 31.01.2019.
Para compatibilizar os interesses energéticos com a sustentabilidade ambiental, a área alagada foi diminuída. A usina teve o reservatório reduzido em relação ao projeto inicial e a área de alagamento diminuiu 60%. Enquanto a média nacional de áreas alagadas pelas usinas hidrelétricas é de 0,49 km² por MW instalado, Belo Monte impactará apenas 0,04 km² por MW instalado.
O empreendimento integra o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que é uma prioridade do governo federal. Sua entrada em ação propiciará mais oferta de energia e mais segurança para o Sistema Interligado Nacional (SIN), com melhor aproveitamento das diferenças hidrológicas de cheia e seca entre as diversas regiões do País.
A Norte Energia S.A não conta com isenções de impostos diferentes daquelas concedidas às outras usinas ou a qualquer empreendimento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) ou daqueles localizados em área de atuação da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam).
A Licença Prévia de Belo Monte foi concedida pelo Ibama em 01/02/2010, tendo como um dos requisitos a realização de audiências públicas as quais foram realizadas e contaram com a participação de cerca de 5.000 pessoas. Conforme a própria denominação, esta Licença exige o cumprimento de um conjunto de condicionantes dentro de prazos estipulados. Adicionalmente, para efeito de obtenção da Licença de Instalação, os planos socioambientais devem ser detalhados e constar do Relatório do Projeto Básico Ambiental (PBA).
No caso de Belo Monte, as ações socioambientais propostas no EIA/RIMA foram consolidadas em Planos (19), Programas (53) e Projetos (58), abrangendo as áreas de gestão ambiental e institucional, meio físico, meio biótico e meio socioeconômico. Ressalta-se que grande parte das condicionantes reforçam ou complementam o conjunto de Planos, Programas e Projetos propostos no EIA/RIMA.
Os benefícios do projeto Belo Monte transcendem à implantação de uma fonte de geração renovável e econômica para suprir necessidades do Estado do Pará, da região Norte e do Brasil. A exemplo de outros aproveitamentos hidrelétricos, existem benefícios associados à preservação ambiental de áreas na bacia hidrográfica, além do aumento dos indicadores de desenvolvimento humano nos municípios abrangidos. A inserção regional do projeto UHE Belo Monte vai alavancar o desenvolvimento na região.
Somente a título de pagamento da Compensação Financeira pela Utilização de Recursos Hídricos (CFURH), mais conhecida como royalties, a Norte Energia S.A contribuirá anualmente com cerca de R$ 160 milhões, sendo R$ 70 milhões destinados ao estado do Pará e outros R$ 88 milhões aos municípios da área de influência da usina.
Adicionalmente, a UHE Belo Monte está inserida no Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável (PDRS) do Xingu, que faz parte da parceria entre o Governo Federal e o Governo do Estado do Pará, tendo como objetivo promover o desenvolvimento sustentável da região, com foco na melhoria da qualidade de vida dos diversos segmentos sociais, a partir de uma gestão democrática, participativa e territorializada.
A participação da UHE Belo Monte está associada ao Eixo Temático 2 – Infraestrutura para o Desenvolvimento/Energia, no qual aportará, segundo o Edital do Leilão, cerca de R$ 500 milhões.”

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Não gosto de me enxergar como covarde. Na verdade, se há algo que me dói é reconhecer não somente meus momentos de recuo, mas também sua quantidade generosa. Já saí de uma cidade com o rabo entre as pernas e não gostaria de repetir a cena. No entanto, repeti. E por isso, nunca mais perdoei Belém. Obviamente que isto é, no mais somente um lamentável vício europeu de condenação de algo que, lamentavelmente não pode ser o responsável pelo que fez. Ainda assim, essa forma de condenação de toda uma cidade que não leva em conta nenhum de seus moradores foi a única forma que tive para reagir contra uma cidade na qual cheguei e da qual parti, na ida e na volta, na calada da madrugada. Como fazem os covardes, os ladrões e os sertanejos.
A dois quarteirões do congresso, me diziam, tome um ônibus. Ainda assim será perigoso, e deverá tomar um táxi para que esteja garantido. Cinco minutos de caminhada impedidos por um bairro que nunca soube qual era. Nunca pude dizer grande coisa sobre o Guamá. Na verdade, nem pequenas coisas senão aquilo que me ajudava a respirar a atmosfera repressora de sua fama, corroborada pelo cartaz que avisava sobre o problema do tráfico de órgãos. Dois ou três cidadãos com o branco dos olhos avermelhados serviriam de amostra para aquilo que se transformou na média – e isto seria a cidade. Sem mais. Poderia dizer a mesma coisa sobre Guamá quando fizer remissão ao rio. Por isso, deixarei de me repetir.
De volta a Belém, dois anos depois. Ainda covarde, chego num vôo que pousa à uma da madrugada. A mesma sensação eterna de chegar ao litoral, o mormaço úmido de quem sai do ar-condicionado de um avião, entrega às testemunhas a minha desorientação. Desta vez, sigo para a Cidade Velha, em muito afastada do bairro de outrora e, ainda assim algumas das precauções são exaustivamente repetidas. Cautela – e o alvo da cautela é sempre uma parte invisível da população, praticante de roubos, furtos e outra sorte de violência. Turista, estrangeiro, tanto faz. Com tanta gente invisível a única certeza que sempre tinha é de que eu, em minha figura jamais passaria desapercebido. E isto terá se mostrado real da forma mais banal. Estrangeiro, turista e visível.
Minha única missão em Belém, além de ser o portal de chegada aérea no Pará, seria a de esperar o sinal verde de Codorna. Enquanto voava para lá, ele mesmo estaria em viagem de campo, visitando alguma aldeia parakanã, araweté, ou sabe-se lá de quem mais, o que impossibilitaria minha estadia em Altamira. Deveria esperar. Belém seria meu porto de espera e, por causa disso meu ambiente especulativo sobre os rumos de minha viagem futura. Afinal, para Altamira por chão, ar ou água? Aos poucos percebi que Belém estaria, com o perdão da rima, além. Qualquer decisão seria contaminada pelo simples fato de estar lá. Um quarto sem janelas, banheiro sem chuveiros e a sensação de que tinha atravessado uma membrana qualquer, a sensação física de fronteira que faria da viagem algum tipo de filme ruim. Espero que não cheguemos tão longe com tudo isso. Ainda não tinha amanhecido na Cidade Velha, o que em nada impede já ser tarde demais.
O dia seguinte, reclamou Ana Paula, recepcionista do hostel, deveria ser regado com as mesmas cautelas de qualquer lugar. A palavra chave parecia ser evitar. Pleno domingo no centro da cidade implica significa, no final das contas, que se tenha muito cuidado. Afinal, as ruas estão vazias. Procure sempre movimento. Assim, no movimento, após um café da manhã na padaria que depois me serviria de rotina, segui rumo à Praça da República, onde se encontra o Theatro da Paz, vizinho do Teatro experimental. Dia de feira de artesanato. Fui além. Segui por toda a Avenida Nazaré até sua conversão em Magalhães Barata para visitar o museu do Museu Paraense Emilio Goeldi, o que me pareceu obrigatório, ainda que pudesse ser decepcionante. Evitei, contudo, todo tipo de encontro e deixei de lado aquilo que mais poderia ser prezado por um possível leitor, neste exato momento: uma máquina fotográfica.
Assim, toda a visita foi movida pelo percurso lento de um leitor. Cheguei ao museu, devidamente cercado por seus muros e mais as centenas de árvores que lhe fazem roda, filtrada na ciranda íntima das onças e pássaros guradados em seu desenho. O museu, como tal, se encontra ao centro e, para não frustrar meu pessimismo, se encontrava vazio pela metade. Passeei pelas amostras de material coletados por gente da estirpe de Curt Nimuendaju e de Eduardo Galvão, e tive melhor dimensão do projeto institucional do museu que, como todas as atividades científicas mais graves do país, se congelaram durante a Primeira República sem qualquer revogação.
Pela primeira vez desde que a antropologia se tornou minha profissão, mesmo sem conseguir tirar disso conseqüências mais práticas, assisti a uma exposição de coleções com algo mais do que mero interesse. Vi na coleção de tantos indigenistas e antropólogos algo mais grave, ainda que sem conseguir nomear, apontar ou mesmo intuir o quê. Identificar diferenças por via de peças, sem me reportar ao meu próprio milieu de formação, reconhecendo nas máscaras algo mais apurado do que sobrevivências ou representações de valores serviu de aconchego para o coração sempre egocêntrico de um estudioso. Que se entenda que, mesmo antropólogo, não faço parte dos viajantes que tanto trabalham na fixação das glórias da disciplina. Na verdade, sou daqueles que, à moda da física teórica busca rearticular diferenças no seio do mais visivelmente doméstico refazendo distâncias curtas em cadeias infinitesimais, ampliando a figura potencializando diferenças mais banais. Daí o tamanho do meu prazer, o de reconhecer o que não é de minha obrigação. Aí reside a alegria no florescimento da orientação em um universo estranho. Infelizmente a lembrança do que vi e reconheci, hoje reside nas peças que não fotografei porque era melhor evitar. Afinal, em Belém. A cidade poderia, como da outra vez ficar com tudo. Preferi ceder ao medo e entregar o que tivesse antes mesmo de consegui-lo.

 Desconfio que, a partir daqui perderei o pouco respeito que já tive. 

2 comentários:

Newspaper of Josephine disse...

Ola! Vivo na cidade de Altamira e frequento ha algim tempo im centro espirita. Gostaria dr ter conhecimento sobre rituais com ayahuasca na regiao sabe me infornar?
Abraco Denise ( denise.d77@gmail.com )

Refrator de Curvelo (na foto do perfilado, restos da reunião dos Menos que Um) disse...

Denise;

Na região de Altamira eu não sei te dizer. Sei que os rituais são conduzidos na região de Marabá, ainda que não saiba dizer por quem.

O caso é que sou bastante mal informado a respeito das práticas em questão e peço desculpas por não saber te informar.

Abraço.