Então, uma linha é desenhada no mapa
cujo torneio define uma zona para além da qual
a regência é a salvação
onde busca-se refúgio.
Há quem chame esta disciplina,
a que agracia os eleitos,
de soteriologia, soteropolitanos.
Outros,
de política migratória em tempos de guerra.
Custa saber a diferença quando a linha cristã exige
livret cristão,
a cidadania operária para entrar no paraíso.
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quarta-feira, 25 de novembro de 2015
quarta-feira, 7 de janeiro de 2015
Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.
TYLOR,
Edward Burnett. Primitive Culture:
researches into the development of mythology, philosophy, religion,
language, art and custom. John Murray.Londres. 1873 [1871]
16-
Em seu argumento que contrapõe a eficiência industrial da cultura contra a
inutilidade do simbolismo direto das superstições, dentre as quais estariam
seguramente o cálculo do futuro por via de profecias, Tylor se pergunta a
respeito da sobrevivência dessas coisas inúteis que, sugere, tiveram alguma
utilidade outrora. É evidente que a noção de utilidade é flagrantemente
anacrônica, mas é ela quem estabelece a relação entre fins e meios pelos quais
os critérios de racionalidade na planificação, tanto da economia como da
política. Assim, em especial no que tangem os atos de fala e sua função, é na
alteração dos meios que uma determinada fórmula eficaz se transforma numa
espécie de maneirismo em que a função não se altera, mas já não encontra
qualquer correspondência com o meio em questão.
O papel das superstições, neste caso, se
restringe à esfera da dominação na forma da justificação como subterfúgio da
linguagem, criando a cena na qual um erro lógico – ou um erro de atribuição de
valor – é encaminhado de forma apropriada. Seguindo à risca os métodos de
prestidigitação, induz o paciente a olhar para o outro lado, ou o distrai
criando movimentos que fazem de um gesto banal
em evento com contornos circenses. A finalidade toda parece ser, por fim,
uma espécie de liturgia política em que a potencia do gesto faz com que o
sacerdote, o mágico, o xamã encarne uma autoridade ainda maior. Assim:
“Prophecy tends to fulfil itself,
as where the magician, by putting into victim’s mind the belief that fatal arts
have been practised against him, can slay him with this idea as with material
weapon. Often priest as well a magician, he has the whole power of religion at
his back; often a man in power, always un unscrupulous intriguer, he can work
witchcraft and statecraft together, and make his left had help his right.”
(Tylor, 1871:121)
Não ha qualquer distinção entre magia e
religião, dado que ambos estão relegados ao império dos maus hábitos e, por
isso, são indistintos. E com magia e religião, o universo a ser debatido é o
apogeu e o declínio de certas opiniões. Assim, religião é algo que se diz a
respeito de algo enquanto outra coisa se dá – ou seja, nada que seja
especificado com clareza. Uma sobrevivência cultural implica na sobrevivência
de certas fórmulas recuperadas ou mantidas em uma trajetória diacrônica própria
aos exercícios de imaginação e arqueológica. Como, por exemplo, a condenação de
anátema que, todavia, não exerce dos mesmos dispositivos jurídicos como ato de
condenação uma vez que, a Igreja Romana, antes disposta como parte da ordem
territorial, fora desterritorializada – um outro nome a ser dado ao dispositivo
jurídico de “secularização”, o que para Tylor atende pelo nome de iluminismo – a forma excelente de
produzir diferença no mar de formas indiferentes da superstição religiosa, esta
redundância.
“Reform of religion was no cure
for the disease of men’s minds, for in such things the Puritan was no worse
than the Inquisitor, and no better. Papist and Protestant fought with one
another, but both turned against that enemy of human race, the hag who had sold
herself to Satan to ride upon a broomstick, and suck children’s blood, an to be
for life and death of all creatures the most wretched. But with new
enlightenment there came in the very teeth of law and authority a change in European
opinion.” (Tylor, 1871:125)
O iluminismo, em especial em seu veio
libertino, veio para acabar com o diabo que é, obviamente, a maior das
superstições.
quarta-feira, 31 de dezembro de 2014
Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.
TARDE, Gabriel. Les
lois de l’imitation. Les empêcheurs de penser en rond/Seuil. Paris. 2001.
TYLOR,
Edward Burnett. Primitive Culture:
researches into the development of mythology, philosophy, religion,
language, art and custom. John Murray. Londres. 1873 [1871].
13- Que me seja permitido, aqui, simplesmente
repetir um trecho de uma nota anterior.
- “Se
há fumaça, há fogo. Se na relação indiciária o que entra em questão é a
contiguidade entre sinal e objeto, a crítica ao fetichismo como fórmula do
mal-entendido, ou de um mau hábito de pensamento, está em extrapolar uma
relação de contiguidade a toda uma cadeia causal maior e mais sutil. Este erro
faz com que todos os que o cometam estejam, digamos, na infância da razão o que
significa que a racionalidade e a irracionalidade são ambas potências de casa
ato de juízo e que, com a finalidade do seu melhor desenvolvimento – Primitive Culture advoga em favor de uma
antropologia do desenvolvimento – devem ser orientados segundo a ordem do
método, a uma espécie de administração tutelar:
“The Maori may give a sample of
the character of its rules: they hold it unlucky in an owl hoots during a
consultation, but a council of war is encouraged by prospect of victory when a
hawk flies overhead; a flight of birds to the right of the war-sacrifice is
propitious if the villages of the tribe are in the quarter, but if the omen is
in the enemy direction, the war will be given up.”(Tylor, 1873:108)
O vôo do falcão é índice de um certo
futuro emitidos desde o presente àquele que testemunha, transmitido desde
alhures. A crítica que a antropologia contemporânea poderia fazer a esta
passagem, e a todas as demais, culminaria em super-inflar o problema do
contexto, fazendo com que os requisitos de uma teoria do conhecimento baseado
no conceito de representação como duplo das séries empíricas apreendidas pelos
órgãos dos sentidos e organizadas conceitualmente sofram de hipertrofia. Dito
de outra forma, Tylor estaria agindo como os primitivos que ele classifica como
tal ao isolar toda uma relação possivelmente complexa entre os maori e as corujas,
considerando-a um erro de atribuição reduzindo causalidade às relações de
caráter indiciário. Assim, relações de caça, orientação meteorológica, espacial
que seguramente compreendem um complexo de relações entre corujas e maori – e o
contrário – não estariam sendo considerados. Grande parte do esforço
etnográfico comprometido com a temática do realismo da descrição etnográfica
persiste na tarefa, para todos os efeitos ética, em descrever com vistas em
dizer e comprovar que o primitivo vitoriano – algo semelhante ao religioso dos
libertinos – não existe. Contudo, o primitivo é algo mais difícil de capturar
porque ele sempre tende a ser alguma outra coisa.”(9)
O jornal é o meio que pensa para o leitor.
Não somente reporta eventos que, uma vez acontecidos são considerados
pertinentes à comunidade de assinantes e leitores – o que é um problema
retórico, pois o jornal não é necessariamente redigido pensando em pensar para
os leitores acidentais -; o jornal publica tendências, aponta o futuro por via
de técnicas diversas. Uma delas é exatamente a estatística, que cumpre a função
de avisar sobre os perigo iminentes.
“As
folhas públicas se transformaram socialmente então naquilo que são vitalmente os órgãos dos sentidos. Cada escritório de
redação não será mais que um confluente de diversos escritórios de burocracia,
algo semelhante à retina como feixe de nervos especiais recebendo, cada um, sua
impressão característica, ou como o tímpano é um feixe de nervos acústicos. Aqui
a estatística é uma espécie de olho embrionário semelhante ao dos animais
inferiores que então enxergam somente o necessário para reconhecerem a
aproximação de um inimigo, ou de uma presa; ainda assim, é um serviço e tanto
que nos oferece vindo a nos impedir assim de correr sérios riscos.”(Tarde,
2001:195)
Assim, há o momento da produção. E então a
estatística é observação, coleta de dados, registro, catalogação e organização
arquivística; é também a produção de cronologia temática dispondo de sinais
para a entrada e saída, a conexão com outros arquivos presididos com a mesma
constância, com as mesmas escalas temporais de forma a permitirem a indução da
diacronia sincronizada – a estatística é, portanto, um esforço da anulação da
diferença entre o tempo estrutural e o tempo cronológico, o que só seria
possível na tradução estatística de todos os tempos e de todas as coisas
diluídos num mar de combinatória vindo, assim, a simular todo um mundo. No
momento de produção o que vemos é um exercício impessoal de composição de tudo aquilo
que mais adiante será estatística vindo a ceder, no momento de sua publicação
em que a fisionomia registrada numa curva literalmente mostra a sua face, ainda
que de perfil. Ver a estatística não é, em medida alguma, o mesmo que
produzi-la. O ato de ver a curva implica, para aquele que vê na curva um
produto estatístico, no mesmo que capturar o movimento de algo sem que seja,
absolutamente, o movimento de alguém. Assim,
que se move é a criminalidade, os nascimentos, os casamentos, os
suicídios. Ver as curvas sinuosas em seus movimentos bruscos repete os passos
de quem observa as curvas agudas do vôo das andorinhas. Afinal, o que vemos
como produto da atividade estatística é um desenho que é, também, a abertura
premonitória para o futuro[1].
[1] « Pourquoi,
dirais-je, les dessins statistiques tracés à longue source papier par des
accumulations de crimes et de délits successifs transmis en procès-verbeaux aux
parquets, des parquets, en états annuels, au bureau de statistique à Paris, et
de ce bureau, en volumes brochés, aux magistrats des divers tribunaux, pourquoi
ces silhouettes, qui expriment elles aussi, et traduisent aux yeux des amas et
des séries de faits coexistants ou successifs, sont-elles réputées seules
symboliques, tandis que la ligne tracée dans ma rétine par le vol d’une
hirondelle est jugée une réalité inhérente à l’être même qu’elle exprime et qui
consisterait essentiellement, ce nous semble, en figures mobiles, en mouvements
dans l’espace figuré ? Est-ce que, au fond, il y a moins de symbolique que
là ? Est-ce que mon image rétinienne, ma courbe graphique rétinienne du vol de cette hirondelle n’est pas
seulement l’expression d’un amas de faits (les divers états de cet oiseau) que
nous ‘avons aucune raison de regarder comme analogues le moins du monde à notre
impression visuelle ? » (Tarde, 2001 :192)
domingo, 23 de novembro de 2014
Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma da religião.
COHEN,
Bernard Jerome. Revolution in Science.
Belknap/Harvard. Londres/Cambridge. 1985.
COUSIN, Bernard;
CUBELLS, Monique; MOULINAS, René. La
pique et la croix: histoire religieuse de la Révolution
Française. Centurion.
Paris. 1989.
FRAZER,
James George. The golden bough: the magic
art (2/13 vol.). Macmillan. Londres.1990 [1913].
KOSELLECK, Reinhart. Futuro
passado: contribuição à semântica dos tempos históricos.
Rio de Janeiro. Contraponto. 2006.
1- 1879 segue
sendo um marco inescapável. O processo revolucionário que parte de um esforço
nacional para uma reforma fiscal e orçamentária (budgetaire) se
transformou em signo de ruptura no tempo ao ponto que o conceito de revolução
foi, ele mesmo, revolucionado. Aquilo que outrora enunciava a retomada do ciclo
normal própria das órbitas celestes, por exemplo em De revolutionibus orbium coelestium de Copérnico, (Koselleck,2006;
Cohen, 1985) em que a revolução se dá quando a trajetória percorrida pelos
astros e a retomada em um espaço arbitrariamente definido como Delta Zero marca
a presença de um mesmo astro em t=2, isto é, num segundo momento – com o perdão
da notação newtoniana. Começar de novo a mesma trajetória no tempo, eis o que
fora a revolução como processo e eis o mesmo processo então revolucionado por
uma outra revolução.
Esta
revolução nova parece acrescentar uma outra nota ao processo no qual não é a
regularidade indefectível da natureza quem conduz os esforços, mas a ação
humana que assume uma outra dimensão, propriamente humanista e portanto
protagonista de seu próprio meio, fazendo da retomada da ordem como a extinção
de relações postas anteriormente. Não se trata somente de uma substituição de
postos como na morte ritual – e real – do sacerdote do templo de Diana em Nemi
(Frazer, 1990), mas uma alteração dos termos de relação que fundamentam a
organização social instituindo, no caso da Revolução Francesa, a organização
social ela mesma. O processo revolucionário que pretendera ser uma correção de
rumos alterou a noção de rumo correto, o que por fim combina com a imagem de um
motim em uma enorme galera que culmina na alteração do que é um rumo correto
alterando a noção de destino – da perfeição à perfetctibilidade, por exemplo.
Dito de outra forma, trata-se da filosofia da história entendida como ato
governamental.
O que faço
nos dois parágrafos anteriores é um sumário bastante generalista. É
desnecessário ressaltar os riscos de um exercício de pesquisa que tenha como
ponto de partida algo desta natureza que, diante das requisições e cautelas de
um discurso acadêmico-científico, é bastante grosseiro. Dizer que o processo
Revolucionário francês começa como um ato governamental para, por fim mudar
aquilo que significa governar, parece ser tudo, menos preciso. A imprecisão da
idéia, ainda assim, parece tentadora. Obviamente que esta sugestão não pretende
se indispor com uma outra, a que atenta para uma dimensão sociológica dos
processos históricos que afirma que, por fim, um dado evento com as proporções
da Revolução Francesa se encontrava gestado com enorme antecedência e que a depender
da diretriz narrativa pretendida, a Revolução teria uma data de partida
diferente. Suas origens culturais não seriam, portanto, suas origens
sociológicas, alterando sua datação no caso da distinção de fato ter alguma
relevância. E talvez tenha, mas como distinção, digamos, nativa. E isto faria
de minha grosseria algo interessante porque boa parte das categorias nativas em
movimento no período pós-revolucionário ressoarão no pensamento sociológico na
forma de categorias analíticas e conceitos sociológicos. O que estou dizendo é
que após a Revolução dificilmente o pensamento sociológico poderia ser
discriminado das reformas que se inserem como postulado das políticas de
Estado. Seguramente que a sociologia pode ser relacionada a diversas outras
dimensões da história moderna, mas, repito que dificilmente poderia ser
dissociada do esforço persistente de reforma do Estado que conduziu grande
parte das políticas conduzidas pela França pós-revolucionária.
Visto de um
ponto de vista não-especializado o jogo de sucessivas reformas tem uma
aparência de mover as coisas de lugar, quando não a de tirar para então
substituir por outras cuja crônica se transforma na narrativa dos arcanos do
Estado e seus demiurgos que logo se transformam em biografias coletivas que
atendem por um nome só: Império de Napoleão, de Louis Philippe, o governo de
Thiers. Não são somente nomes masculinos, mas períodos e unidades de espaço nos
quais incidem os gestos de governo de cada uma destas personagens, nem sempre
de corpo presente, mas por via da presença da chancela e, quando não, de sua
forja. Assim, o que fazer com deposições como a da coroa que caiu guilhotina
abaixo; ou mesmo da expulsão da religião pela porta dos fundos? Expulsão? É
preciso ver mais de perto este sinal que pode ser, no mais das vezes, invertido
ou pelo menos severamente atenuado exatamente porque este mesmo sinal é
diversas vezes confundido com o sinal da cruz.
No documento
da Constituição civil do clericato de 12 de julho de 1790 a Igreja é
varrida do solo francês. O processo já duramente questionado se torna uma
fratura ainda mais agressiva e, convém lembrar, diversas vezes criminosa
durante o ano II da Revolução (1793-1794) quando as raízes do culto sofrem
golpes com vistas na sua total extirpação do seio da vida pública, período no
qual se desenham substitutos na forma de festas cívicas. Daí por diante, depois
da abolição do dízimo, da nacionalização dos bens da Igreja e da supressão das
ordens religiosas a fronteira é posta: entre a religião e o Estado há uma
fronteira na qual a França deixa de ter uma religião oficial. O culto religioso
é uma atividade, quando não ilegal, dali por diante extra-oficial. Mas quais os
demais efeitos da deposição para além da descrita? Porque é preciso destacar um
ponto importante:
“Em 1789 a Igreja ocupa, na França, o primeiro plano ao mesmo tempo político, social, intelectual e moral. O clericato é a primeira ordem do reinado, sendo a única ordem organizada em escala nacional tendo suas assembleias com relação às quais voltaremos a falar (Cousin et. al, 1989, voltarão a falar - não eu). O catolicismo é religião de Estado de forma que nenhuma outra confissão é, em princípio, tolerada após a revogação do édito de Nantes pelo édito de Fontainebleau, de 1685.” (Cousin et al.: 13).
“Em 1789 a Igreja ocupa, na França, o primeiro plano ao mesmo tempo político, social, intelectual e moral. O clericato é a primeira ordem do reinado, sendo a única ordem organizada em escala nacional tendo suas assembleias com relação às quais voltaremos a falar (Cousin et. al, 1989, voltarão a falar - não eu). O catolicismo é religião de Estado de forma que nenhuma outra confissão é, em princípio, tolerada após a revogação do édito de Nantes pelo édito de Fontainebleau, de 1685.” (Cousin et al.: 13).
Isto não
quer dizer, obviamente, que o processo Revolucionário se transformou numa festa
ecumênica em que todas as religiões puderam vir à luz, mas que se formou algo
peculiar mediante uma proibição universal do culto público religioso. Por via
desta proibição que atingia inclusive aquela que outrora fora a religião
oficial – e uma das razões de ser da crise econômica, vale lembrar -, um ato
governamental produzia um cenário em que todas as religiões indiferiam entre si
dado que equivalentes. Este gesto, nesta escala, produzia uma certa indiferença
com relação à fé, à crença e tudo aquilo o mais que os antropólogos modernos
passaram a chamar de categorias nativas que, em não poucos casos caberiam na
alcunha “teologia”. No caso, a católica.
segunda-feira, 18 de agosto de 2014
O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.
-->
7-
-->
FRAZER,
James George. The golden bough: the magic
art (2/13 vol.). Macmillan. 1990 [1913].
HOCART,
Anthony Maurice. Kings and councillors:
an essay in the comparative anatomy of human society. University of Chicago Press.
Chicago.1970.
HUME, David. Investigação
acerca do entendimento humano. Unesp. São Paulo. (1999[1748]).
7-
-->
O que vemos em Frazer é que a arte da magia repousa em dois ramos. Um a
respeito da prática da magia e outro, sua teoria. Um e outro são pseudo-formas;
pseudo-arte e pseudo-ciência, respectivamente. Afinal, por se tratar de uma
investigação evolucionista, o selvagem é pseudo-civilizado isto é, contém o
civilizado em germe da mesma forma que o civilizado contém o selvagem como ameaça
cuja fronteira está no limite da epiderme. Esta configuração toma forma, como
bem se sabe, nas variações modernas do ceticismo em grande parte incarnada por
David Hume, quem podemos sugerir ser em grande parte um ancestral direto de
James Frazer, inclusive na arte de reconhecer que certas coisas acontecem.
Trata-se da décima sessão de An Enquiry
concerning Human Undesrtanding, que versa sobre os milagres que, antes de
mais nada, são coisas que acontecem. Pas d’événement, pas de miracle parce que
d’abord, le miracle est une chose à voir.
Hume põe em questão o argumento da
presença real do corpo de Cristo no sacramento Cristão, o mesmo corpo que
outrora serviu de analogia para a justificação do Estado na cristandade. O
problema inicial, o mesmo que traça uma espécie de fundação do empirismo
moderno, diz respeito aos relatos fidedignos relativos aos eventos relatados e
a instituição da confiança nos testemunhos. Porque nem sempre se trata de má-fé
do religioso ou do homem do povo, mas de uma profunda desarticulação com relação
aos critérios de descrição e da constância dedicada à observação metódica que
discrimina não somente a longa permanência no sítio que localiza a percepção
como destaca os termos que guiam a observação in loco. Afinal, os apóstolos não são, sob nenhum ponto de vista,
naturalistas.
“Assim,
a evidência que temos para a veracidade da religião cristã é menor que a
evidência para a veracidade de nossos sentidos, porque já não era maior que
esta nem mesmo nos primeiros autores de nossa religião, devendo certamente
diminuir ao passar deles para seus discípulos, e ninguém pode depositar nos
relatos destes tanta confiança no objeto imediato de seus sentidos. Ora, uma
evidência mais frágil jamais pode desfazer uma mais forte, e assim, por mais
que a doutrina da presença real estivesse claramente revelada na escritura, dar
a ela nosso assentimento seria diretamente contrário às regras do raciocínio
correto. Ela contradiz os sentidos, apesar de que nem a escritura, nem a
tradição nas quais se supõe que esteja sustentada trazem consigo tanta
evidência quanto os sentidos, quando consideradas meramente como evidências
exteriores, sem que nossos corações dela tomem conhecimento pela operação
imediata do Espírito Santo.” (Hume, 1999:143-144)
Temos então um exemplo do combate à
superstição a partir de um ponto de partida muito particular, que é o que toma
a religião segundo questões postas pela teoria do conhecimento. Ao contrário do
que propõe a história do direito e, em parte, o tema da secularização como
história política da religião, aqui a religião não aparece como forma forte que
degenera nas formas modernas, mas ao contrário a forma em potencia se
atualizando em planos perfécteis – a perfectibilidade é, aqui, imanente. A
proliferação de milagres em meio à história profana é um problema a ser
resolvido. Cabe a ressalva de que, como todo cético, Hume não considera a
experiência um meio infalível para promover a orientação no mundo. Isto não
impede, contudo, que ele possa elencar uma hierarquia de formas de acesso ao
conhecimento do mundo que é, para todos os efeitos, experimental antes de tudo
que é, antes de mais nada, potencialmente falha. Contudo, ele toma partido
antes da observação do que da observância das leis, o que altera profundamente
o que se pode compreender como estrutura da mediação e, com isso, a forma de se
relacionar com um acontecimento.
“Nem
todos os efeitos seguem-se com igual certeza de suas supostas causas.
Verifica-se que alguns acontecimentos estiveram constantemente conjugados em
todas as épocas e lugares; outros, porém, mostram-se mais variáveis e frustram
algumas vezes nossas expectativas, de tal modo que, em nossos raciocínios
relativos a questões de fato, coexistem todos os graus imagináveis de
confiança, desde a máxima certeza à mais diminuta evidência moral.” (Hume,
1999:145)
Com evidência moral entenda-se,
obviamente, àquilo que a vida religiosa foi reduzida. Com grau de evidência,
por sua vez, compreende-se o regime de probabilidade em que se exercita o
conflito das evidências de forma a estabelecer proporções da repetição da
incidência que relaciona causa e efeito produzindo assim camadas estatísticas
que pesam em favor de uma ou outra versão. Estatística é, convém lembrar, uma
ciência de Estado assim como uma percepção do estado de relações que permite
que o investigador não seja refém da autoridade de um testemunho somente e que
possa se aplicar na coletânea de relatos. E é o regime de probabilidades que
orienta, assim, a investigação daquilo que acontece vindo estabelecer no regime
das causalidades, a forma posta em evidência como a de maior regularidade
guardando assim a dimensão preciosa das regularidades ocultadas da experiência,
seja por pertencerem a ordens infinitesimalmente grandes, infinitesimalmente
pequenas ou radicalmente distintas da experiência adquirida, como no caso do
príncipe indiano que submetido ao calor dos trópicos não acredita na
possibilidade da água congelada, o que é fundamentalmente racional.
Nisso, o milagre. O acontecimento não
somente como exceção da regularidade, o que é meramente o inesperado, mas
também como a suspensão das leis da natureza. Afinal, quais são as chances de
um milagre acontecer de novo? Quais são as probabilidades? A absoluta exceção
do milagre é de tal ordem que se torna impossível instituir a partir dele
qualquer autoridade com vistas no relato porque como acontecimento ele não faz
nada mais do que irradiar como novidade e obrigar ao relato que destaque que,
por fim, ele aconteceu e nada além disso. O efeito fundamental sobre aquele que
o testemunha é o efeito das maravilhas, das mirabilia,
seja porque aconteceram, o que é uma dimensão sempre suspeita dado que depende
do relato, seja porque alguém relata vindo a sofrer suficientes distorções a
ponto de fazer com que todos os testemunhos sejam por fim dignos de descrédito
mostrando que o fantástico e o maravilhoso é antes de mais nada, um erro de
escalonamento quando não o mero exercício de tornar a narrativa algo mais
interessante e se promover com isso. Assim, o relato que poderia pretender
transmitir algo de verdadeiro cede em graus diversos àquilo que é meramente
verossímil, ainda que seja muito pouco provável. Preferindo contar uma boa
história no lugar de algo que se mostre regular, normal e repetitivo, a
narrativa sobre os milagres oferecem uma sorte de ficção que exagera contornos,
excessivamente afetiva e nada preocupada no exame do caso. Todos os olhos na
qualidade do testemunho, naquilo que efetivamente há para ver. É muito difícil
distinguir, assim, a antiguidade fabulosa
de James Frazer dos povos bárbaros particularmente suscetíveis em compartilhar
histórias milagrosas. E talvez não seja necessário.
Que os dois primeiros volumes de O ramo de ouro sejam uma teoria da magia
e que a mesma responde melhor a certas questões de caráter prático do que
teórico, isto é claro. No entanto, o papel que a magia desempenha como um
regime de semelhanças associadas merece tanta atenção porque é um complexo de
associações entre termos assemelhados que parece nos levar a algum lugar em
especial: o sacerdócio de Nemi. Entendendo que se trata da sucessão pelo
assassinato cujas regras de sucessão Frazer se propõe a reconstituir, nada
melhor que estabelecer o paralelo, para todos os efeitos adequado, da história
da religião com o exercício pericial da cena de um crime e chamar o exercício
de “método comparativo”.
O caso que, com poder consideravelmente
menor, as regras de sucessão do sacerdócio Nemi não encontram paralelo na
antiguidade clássica e conseguir explica-las efetivamente demanda uma ginástica
fenomenal não somente porque não se correspondem com qualquer outro costume
antigo como pertencem ao campo de investigação própria da antropologia social
moderna. Trata-se de um costume bárbaro cuja racionalidade está obviamente em
questão. É preciso confiar, contudo, na continuidade da mente humana que serve
como fiador do mecanismo evolutivo que preserva as hipóteses de Frazer cuja
história natural permite que de alguma forma seja possível percorrer a história
ao contrário, voltando ao ponto senão de origem, àquele que permite borrar a
distinção entre selvageria e antiguidade, ambos fonte, imanência e, de alguma
forma, sobrevivência.
“Accordingly, if we can show that
a barbarous custom, like that of the priesthood of Nemi, has existed elsewhere,
we can detect the motives which led to its institution; if we can prove that
these motives have operated widely, perhaps universally, in human society,
producing in varied circumstances a variety of institutions specifically
different but generically alike; if we can show, lastly, that these very
motives, with some of their derivative institutions, were actually at work in
classical antiquity; then we may fairly infer that at a remoter age the same
motives gave birth to the priesthood of Nemi. Such an inference, in default of
direct evidence as to how the priesthood did actually arise, can never amount
demonstration. But will be more or less probable according to the degree of
completeness with which it fulfils the conditions I have indicated. The object
of this book is, by meeting these conditions, to offer a fairly probable
explanation of the priesthood of Nemi.” (Frazer, 1990:10)
O que Frazer sugere fazer é exatamente
trabalhar com o que Anthony Maurice Hocart sugeriu ser o domínio das provas
circunstanciais em seu Kings and
Councillors. É na leitura de Hocart, inclusive, que duas coisas saltam aos
olhos. A primeira, sobre o grau de penetração do paradigma indiciário nesta
forma de administração da prova de forma que a investigação arqueológica que
nos conduz à antiguidade e à selvageria, ao mesmo tempo, se utiliza do aparato
próprio da antropologia forense em que são os rastros de alguém que interessam,
e que nos conduz ao agente e suas intenções – como o será na figuração ao redor
do assassinato do sacerdote de Nime. A segunda diz respeito à necessidade e, ao
mesmo tempo, a precariedade do uso artificial de analogias para o exercício
comparativo em antropologia que se conduz pela variety of institutions specifically diferente but generically alike.
Hocart abre seu livro dissertando sobre as
regras do jogo de seu programa de
pesquisa pautado por uma analogia explícita com a investigação pericial
criminal. E é exatamente a cena de um crime que lhe serve de figura em que se
dispõe do corpo, mas não de testemunhas. O que ele sugere é que as evidências
diretas são superestimadas caso não sejam testemunhas do ato e, ainda assim,
lembremos, réu confesso não elimina a necessidade de investigação pericial. Não
é outra a vitória da biologia ao recusaras evidências diretas e recorrer ao
enorme expediente da evidências circunstanciais que faz da evolução das
espécies a forma de coletar e acolher a enorme diversidade de fatos sem
recorrer à premissa da empiria.
“There is one branch of human
history which has no direct evidence to build on, and no hope of any. That is
comparative philology. No one expects that we shall ever recover documents
containing specimens of that lost speech from which Latin, Greek, Sanskrit, English,
and such languages, are descended. Writing was not adopted by its users till
long after it had split up into languages very distinct from one another. Our
earliest Greek inscriptions hardly go back to 1000 B.C., at the very least a
millennium after this splitting up. This absence of all direct evidence has
proved a blessing in disguise. It has forced linguists to drop the wasteful an
ineffective frontal attack, to which archaeologists are addicted, for a more
decisive and economical flanking movement. They have been driven to the
comparative method.” (Hocart, 1970:15)
O método comparativo persegue divergências
constitutivas da história de seu objeto exatamente porque os rastros que o
mesmo deixa fazem com que ele divirja da primeira impressão coletada. O caminho
que leva até o original – e o tema se torna profundamente atrelado à questão da
mímesis – visa eliminar as diferenças com vistas naquilo que em um primeiro
momento é a regularidade das semelhanças que permitem deduzir, a partir disso,
a forma original que desencadeou todas as variações morfológicas. É a comparação
entre formas que oferecem uma semiótica particular, aguda e, mais uma vez, à
revelia do contexto. É a intensidade da analogia que faz com que o grau de
reincidência de uma forma na outra é que indica haver algo para além da
superfície, como no caso-teste em que Agni é comparado com Hermes (Hocart,
1970:17-19) no qual são tantas as similaridades entre os mitos narrados que
deve haver algo para além da mera aparência – e é aí que se trata de um
exercício de anatomia comparada, e que as narrativas pertencem a um mesmo
gênero porque sua fábula cumpre quase a mesma narrativa. Mais uma vez, generically alike que tem, por fim, uma
dimensão estrutural. O acontecimento é investigado com vistas em sua estrutura
entendida como suas condições de possibilidade, não naquilo ou quem ele
representa. Todos os abusos da história conjectural partem daí. Seus méritos,
idem. Um deles é de não ter aberto mão dos acontecimentos em favor de seus
representantes.
domingo, 17 de agosto de 2014
O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.
AGAMBEN, Giorgio. O
sacramento da linguagem: arqueologia do juramento. UFMG. Belo Horizonte. 2011.
DURKHEIM, Émile. Lições
de sociologia. Martins Fontes. São Paulo. 2002.
FRAZER, James George. The
golden bough: the magic art (2/13 vol.). Macmillan. 1990 [1913].
MAUSS, Marcel. Sociologia
e Antropologia. Cosac & Naify. São Paulo. 2003 [1950].
6- Esta não é uma discussão muito presente no debate antropológico, sobre o
acontecimento. O que acontece é algo que, por razões muito importantes e
precisas, se retirou imediatamente do horizonte teórico para que cedesse espeço
para as variações temáticas das representações coletivas que tem como
fundamento básico o projeto de sociologia política de Durkheim. Afinal, o que é
uma representação coletiva senão a semiótica das corporações que ele tão bem
defendeu em A divisão do trabalho social
e nos cursos que oferecia na Sorbonne a partir de 1890? E o que são as
corporações senão mediadores da mediação entre a população civil e o Estado? E
o que é isto senão um léxico jurídico que se interpõe ao acontecimento da vida
diária? O reflexo disto, e do elogio da laicidade francesa, se encontra no exercício da
sociologia que se concentra no esforço radical e proclamado de isolar a mística do
Estado, fazendo da República o reino deste mundo. É assim que a sua defesa do
individualismo como forma indiscutivelmente melhor de organização da sociedade
de massas culmina numa elaboração particular em que é difícil discernir sua
sociologia de um projeto de Estado e de planificação da vida coletiva:
“A verdade é que o Estado não é por
si mesmo um antagonista do indivíduo. O individualismo só é possível por meio
dele, embora ele só possa servir à sua realização em condições determinadas.
Pode-se dizer que é ele que constitui a função essencial. Foi ele que subtraiu
a criança à dependência patriarcal, à tirania doméstica, foi ele que livrou o
cidadão dos grupos feudais, mais tarde comunais, foi ele que livrou o operário e o patrão da
tirania corporativa, e, se ele exerce sua atividade com muita violência, ela só
é viciada, em suma, porque se limita a ser puramente destrutiva. Eis o que
justifica a extensão cada vez maior de suas atribuições. Essa concepção do
Estado é, portanto, individualista, sem todavia confinar o Estado à
administração de uma justiça totalmente negativa; reconhece-lhe o direito e o
dever de desempenhar um papel dos mais extensos em todas as esferas da vida
coletiva, sem ser místico.” (Durkheim, 2002:89)
Existe na sociologia francesa, esta que se dedica à estrutura social como
forma planificada da vida coletiva dedicada fundamentalmente à reprodução das
condições de vida – connatus sociológico-
, a dificuldade bastante conhecida de se reportar ao acontecimento. Por muito
tempo, creio que de forma profundamente equivocada, a tensão se projetava na
polaridade entre indivíduo e sociedade, como se a questão fosse
fundamentalmente interna à ordem jurídica dos povos, em especial os povos
modernos. No entanto, toda a sociologia francesa em questão não é outra coisa
senão um elogio ao indivíduo e ao individualismo, ainda que seja um elogio
feito de forma blasé articulado na
expressão c’est pas mal. Um elogio
contudo que se articula no plano das representações do indivíduo, e não na individuação
como acontecimento. Eis aí a enorme diferença da seleção de trechos escolhidos
por Frazer com relação aos selecionados por Hubert & Mauss e a forma pela
qual editam a vida primitiva.
A teoria geral da magia que encontramos no ensaio de Hubert & Mauss é
uma teoria dos contextos da magia em que mesmo sendo ela um desafio, é um
desafio à organização social e portanto, também sujeita ao tipo de acordo
coletivo de tipo contrato, o mesmo que o direito negativo tem com o ato
criminoso e aquele que o perpetra. Assim, o tipo criminoso acompanha o ato;
mágico é tanto uma pessoa quanto um ato. É uma teoria dos papéis sociais no
exercício de suas funções, um enorme investimento no universo do officium (Mauss, 2003). No caos do
universo primitivo de onde são sacadas as mais diversas formas da origem dos
costumes que são conectadas como fontes filogenéticas do comportamento humano,
não é de se surpreender que mesmo aqueles empenhados com todas as suas força em
investigar o universo antropológico desde as zonas de indistinção aguda entre
tipos de fenômenos – discriminados com a força da laicização revolucionária
francesa em que a religião é, antes de tudo, o selvagem da organização social
humana -; mesmo estes entendem que direito e religião margeiam um ao outro sendo,
igualmente, um o caso limite do outro. É aqui então que o recurso plácido das
“distinções analíticas” entre, por exemplo, “direito” e “religião”, “religião”
e “sociedade” e “magia” e “religião” correspondem uma edição do primitivo,
ainda que não de qualquer primitivo. Do primitivo ao lado. É assim que Louis
Gernet disserta sobre pre-droit como
fase originária do direito pagão e Paolo Prodi fala sobre um instinto primordial que leva à separação
futura da religião com relação à política (Agamben, 2011:24).
“O caso de Mauss constitui um bom
exemplo para mostrar como a pressuposição do conjunto sacral age decididamente,
embora venha a ser, pelo menos em parte, neutralizada pela atenção especial
dada aos fenômenos que define seu método. A Esquisse de uma teoria geral da magia, de 1902, começa com uma
tentativa de distinguir fenômenos mágicos frente à religião, ao direito e à
técnica, com os quais muitas vezes tinham sido confundidos. No entanto, a
análise de Mauss se depara todas as vezes com fenômenos (por exemplo, os ritos
juríico-religiosos que contêm uma imprecação, como a devotio) que não é possível atribuir a uma única esfera. Assim,
Mauss é levado a transformar a oposição dicotômica religião-magia numa oposição
polar, traçando dessa maneira um campo, definido pelos dois extremos do
sacrifício e do malefício, e que apresenta, necessariamente, umbrais de
indecidibilidade. É sobre estes umbrais que ele concentra o seu trabalho. O
resultado, conforme observou Dumézil, é que já não haverá para ele fatos
mágicos, por um lado, e fatos religiosos, por outro; aliás, “o seu objetivo
principal consistiu em ressaltar a complexidade de todos os fenômenos e a
tendência da maior parte dos mesmos de irem além de qualquer definição, por se
situarem simultaneamente em níveis diversos” (Dumézil, Idées romaines).” (Agamben, 2011:25-26)
O que Agamben não nota é que este além da definição positiva é, antes de
mais nada, a esfera da infração e da violação de interditos que clivam a
diferença entre sacrifício e malefício. E então a relação genealógica
que se utiliza do tempo profundo não é tão relevante quanto é a relação
pragmática com aquilo que Hubert & Mauss compreendem como a relação entre
tradição, classificação e organização social. Na definição da magia, na segunda parte do Esquisse vemos como este movimento se dá em que a magia é classificada como tal segundo
determinações específicas. Assim, mágico
é o indivíduo que efetua mágicas; representações
mágicas são ideias e crenças que correspondem à magia; os ritos são, por fim, os atos. Sendo magia
algo da esfera da tradição – o que nos joga imediatamente para eventos que do
ponto de vista filogenético e evolutivo, se deram pelo menos antes do Antigo
Regime -, são operações passivas de repetição, então as representações mágicas
nutrem da seguinte relação com as técnicas de magia:
“Nas técnicas, o efeito é concebido
como produzido mecanicamente. Sabe-se que ele resulta diretamente da
coordenação dos gestos, dos instrumentos e dos agentes físicos. Vemo-lo seguir
imediatamente a causa; os produtos são homogêneos aos meios; o disparo faz
partir o dardo e o cozimento se faz com fogo. A existência mesma das artes
depende da percepção contínua dessa mesma homogeneidade das causas e dos
efeitos. Quando uma técnica é ao mesmo tempo mágica e técnica, a parte mágica é
que escapa a essa definição. Assim, numa prática médica, os encantamentos, as
observâncias rituais ou astrológicas são mágicas; é aí que jazem as forças
ocultas, os espíritos, e que reina todo um mundo de ideias que faz que os movimentos,
os espíritos, e que reina todo um mundo de ideias que faz os movimentos, os
gestos rituais, sejam reputados detentores de uma eficácia muito especial,
diferente de sua eficácia mecânica.”(Mauss, 2003:57)
Percebe-se que, em primeiro lugar, há a distinção entre o técnico e o
mágico, se é para seguirmos o exemplo. Mas aqui, bem ao modo calvinista de definir
administração da eucaristia, o mágico corresponde ao plano do simbólico e que,
como tal, acontece como se fosse uma outra coisa. É a classificação dos atos na
correspondência com o universo simbólico que lhe dá significado. E aqui, quase
escrevi sentido. Preferi guardar o termo para que seja usado em momento
propício em que esta passagem citada de Hubert & Mauss seja confrontada.
Mas não no que diz respeito ao simbólico cujo calvinismo tanto influenciam as
mais diversas de pesquisas modernas sobre religião – sugestivamente, talvez não
a Frazer. O que está em questão é o mecaniscismo subjacente em que as relações
entre causas e efeitos determinam a anterioridade e a posterioridade, assim
como o princípio que legisla a respeito do que acontece fazendo da lei um
antecedente tanto lógico quanto cronológico de qualquer coisa que aconteça. Física social.
sexta-feira, 25 de abril de 2014
ENQUANTO LEIO CARL SCHMITT - uma nota de rodapé.
-->
Quaisquer restrições quanto à leitura de um
intelectual com um passado nacional-socialista e igualmente anti-semita merece
dois apartes feitos por pelo menos três intelectuais algo insuspeitos – ou pelo
menos suspeitos de outra coisa que não seja nazismo. O primeiro é de Marshall
Sahlins que, ao discutir que relativizar é uma forma de compreensão, ressalta
que não é por sua vez uma forma de advogar – sobre o assunto, vide aforismo Anti-relativismo3 em Esperando
Foucault, Ainda (2004). Assim, se
houver a suspeita de que eu esteja relativizando a relação com alguém cuja
atividade política tenha oferecido oxigênio para o nacional-socialismo alemão,
que esta suspeita cesse. Trata-se exatamente disso, desde que se saiba que o
ato compreensivo não é constituição de defesa. Exatamente, e aqui chegamos ao
segundo intelectual, permite que tenhamos uma perspectiva de inimigo menos
nociva do que a que herdamos da demonologia da modernidade clássica que se
dedica fundamentalmente na ampliação máxima do discurso sobre o patológico
deixando de se dedicar ao esforço ambíguo de aprender com o inimigo. Sobre o
problema é possível encontrar na historiografia de Carlo Ginzburg uma passagem
absolutamente luminar a respeito. Em seu ensaio Mitologia Germânica e Nazismo: sobre um velho livro de Georges Dumézil
(2009), Ginzburg discute sobre a recepção do livro Mythes et dieux des Germains do mesmo Georges Dumézil e de como
Marc Bloch e S. Gunterbrunner acolhem o livro com o mesmo entusiasmo,
ressaltando basicamente as mesmas características. Gunterbrunner, contudo, fala
desde o ponto de vista de alguém que valoriza o patrimônio espiritual
nacional-socialista e, por sua vez, Marc Bloch, mais caloroso na recepção, era
judeu e sua resenha fora publicada em 1940. O caso é que em um artigo de 1983
Arnaldo Momigliano detectara no mesmo livro de Dumézil traços insuspeitos de
simpatia com o nacional-socialismo, coisa que levara ao resenhista da Deutsche Literaturzeitung receber o
livro tão prontamente. Há portanto, uma série de questões a serem postas neste
embaraço da recepção de Dumézil. O desfecho de Ginzburg, no entanto,
interessa-me mais do que o resto do ensaio que, para todos os efeitos, é
excepcional. E é ele que cito aqui, pois defende uma ética de pesquisa que
incorpora com maior delicadeza aquilo que Sahlins defende em seu aforismo: “A distinção entre pesquisa científica e
teses ideologicamente motivadas, entre dados documentais e sua interpretação,
não só é possível como necessária. Ela permite utilizar determinadas pesquisas
numa perspectiva diferente daquela em que foram produzidas. Em certos casos,
porém, aqueles dados documentais, ainda que viciados por opções ideológicas,
foram obtidos também graças a elas.
Separar o joio do trigo só é possível através de uma crítica interna. Se nos
limitássemos, por exemplo, a uma recusa preconcebida de ordem ideológica em
relação às pesquisas que explicam longuíssimas continuidades raciais (Höfler)
ou arquetípicos (Eliade), estaríamos cometendo um grave erro. Isso vale a fortiori para a obra, ainda mais rica
e original, de Dumézil. Ainda mais esquiva, também: a continuidade inconsciente
entre mitos germânicos e aspectos da Alemanha nazista mostrava-se, em Mythes et dieux des Germains, como um
dado, sem remeter à raça nem ao inconsciente coletivo. Nos trabalhos
posteriores, Dumézil insistiu, pelo contrário, na continuidade consciente
daquilo que acabou por chamar de “ideologia”indo-européia das três funções.
Também essa tácita revisão autocrítica sobre um ponto central indica que,
depois de Mythes et dieux des Germains,
Dumézil virou a página.”(op.cit.:206). Levando ainda mais adiante, é
igualmente legítimo ressaltar o próprio desafio que o confronto com o inimigo
sem cair na tentação de prosseguir em seu extermínio ou mesmo da produção de
sua indignidade a qualquer custo. Há em Cultura e Imperialismo de Edward Said – o mesmo
Said que do ponto de vista de Sahlins, advoga desde o relativismo o suficiente
para afirmar que there are some things
that are better left un-Said - uma passagem que evoca algo além do respeito
intelectual. Evoca também o prazer em se deparar com o engenho de alguém que se
mostra digno de admiração, não a despeito da inimizade mas exatamente porque é,
antes de mais nada, seu inimigo: “(...) é extremamente
revigorante e inspirador não só ler o próprio lado, por assim dizer, mas também
entender de que modo um grande artista como Kipling (poucos foram mais imperialistas
do que ele) apresentou a Índia com tamanha habilidade, e como, ao fazer isso,
seu romance Kim não só derivava de
uma longa história da perspectiva anglo-indiana, mas também, à sua revelia,
anunciava que essa perspectiva era insustentável, na medida em que insistia na
crença de que a realidade indiana demandava, e até suplicava, uma tutela
britânica por tempo mais ou menos indeterminado.” (Said, 1995:22).
quinta-feira, 24 de abril de 2014
Notas desde atrás do muro: Os espaços da fé e território como problema de teologia política.
EISENBERG, José. As
missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros
culturais, aventuras teóricas. UFMG. Belo Horizonte. 2000.
CERTEAU, Michel. Le lieu de l’autre : histoire religieuse et
mystique.
Gallimard/Seuil. Paris. 2005.
6-
O itinerário
de Ignacio que o leva até Paris não é, contudo, é a linha de chegada desta
história e tampouco uma espécie de ponto de fuga. Viveu na capital francesa, a
mesma França cujo exército que lhe valera o ferimento e que viria a feri-lo uma
vez mais, em 1535. Sua estadia no Collège de Montaigu fora adiado uma vez que
dominicanos haviam assumido a direção do mesmo imprimindo o ensino da Summa de Sto. Tomás próprias do ensino
escolástico com relação ao qual Ignacio era avesso. Fora a razão de sua
transferência para o Collège de St. Barb com vistas no estudo do nominalismo
desenvolvidas em Louvain no século anterior, particularmente na teologia de
Jean Gerson – por muito tempo creditado como autor de Imitatio Christi. Foi em St. Barb que conheceu Francisco Xavier e
todo o grupo que mais tarde se tornaria o núcleo fundador da Companhia de
Jesus. Sendo preso mais uma vez, exatamente neste período, que Ignacio fora
preso mais uma vez, exatamente nas vésperas de sua segunda viagem para
Jerusalém. A Inquisição, mais uma vez, o processara por causa dos Exercícios Espirituais.
“Irritado, ele foge para a Espanha, mas não
sem ter combinado com seus companheiros de se encontrarem em Veneza, de onde
partiriam para Jerusalém. Tomou um barco de Barcelona a Gênova , chegando a
Veneza em janeiro de 1536, enquanto seus companheiros partiram a pé de Paris,
chegando à cidade italiana um ano depois. O grupo dispersou-se pela região de
Veneza para aguardar o término do inverno; nas cidades onde se instalaram,
buscavam recrutar outros devotos para a viagem. Combinaram que, se alguém lhes
perguntasse de que organização faziam parte, responderiam que eram da
“Companhia de Jesus”, sendo Cristo seu único superior. Enquanto isso, Inácio
viajaria para Roma para mostrar ao Papa uma versão da Fórmula do Instituto, o
documento fundador da ordem jesuítica. “(Eisenberg, 2000:31)
Independente
de seu conteúdo, a circulação dos Exercícios
Espirituais se encontrava flagrantemente comprometido. A presença frequente
da Inquisição na trajetória do documento e de seu redator faz refletir a marca
ambígua própria das considerações iniciais de Michel de Certeau acerca de dois
aspectos privilegiados por sua historiografia da cristianismo moderna: a
heresia e a mística. O primeiro termo sugere haver uma legibilidade de um conflito social própria do cristianismo em uma
disposição binária desde o papel exercido por intelectuais da Igreja em
conflito próprios à dinâmica da mesma (2009:23-26). A reconstituição dos
procedimentos que narram a heresia desde a acusação conseguem dimensionar a
irrupção dos acontecimentos que não somente produzem conflito, mas alteram a
ordem que desde um ponto de vista doutrinal, sugere um componente perene da
ordem política frequentemente identificada com a expressão dos dogmas. Lido
desde a história da Companhia de Jesus em seus momentos de formação, é difícil
acreditar que quase 500 anos depois o Papa viria a ser, justamente, um jesuíta.
Os séculos
XVI e XVII, a aurora da modernidade igualmente batizada como Modernidade
Clássica narram eventos algo perturbadores. É, ao contrário do que reza a
imaginação comum sobre a Idade Média, o ápice da perseguição às bruxas e
feiticeiras (witchcraze); é o período
em que as investigações sobre demonologia adquirem feições obsessivas muitas
das vezes consideradas de forma muito aproximada com a elaboração do poder
soberano e divino da coroa, como no caso dos escritos de Jean Bodin; é
igualmente o período de maior atividade da Inquisição e quando as execuções
conduzidas, não por ela, mas pelo braço secular vieram a se transformar em
verdadeiros eventos em praça pública; o escolasticismo católico é desafiado
internamente pelo neo-platonismo que culmina em, dentre tantas coisas,
luteranismo; é também o período de consolidação da relação entre Igreja, Estado
e território no qual o controle dos hereges assume novas conformações da mesma
forma em que se dá a paulatina extinção do crime de feitiçaria, feito levado à
cabo em primeiro lugar na França libertina de fins do século XVII, a mesma que
incuba e germina a doutrina fundadora da raison
d’État. Assim, é possível ler cada um dos desafios e ameaças citadas neste
parágrafo como uma forma nova de distúrbio à ordem civil lida na conformação do
direito público, conjunto de leis que interfere diretamente na dinâmica de tudo
aquilo que é consuetudinário. Isto incluirá, seguramente, a relação da Igreja
com a sua tradição e com tudo aquilo que poderá reconhecer como cristandade.
“Difícil e violento, o rearranjo do espaço
religioso em Igrejas ou “partidos” não anda em par somente com uma gestão
política das diferenças; ela introduz em cada um desses grupos a necessidade de
manipular os costumes e crenças em proveito próprio segundo uma reinterpretação
prática das situações organizadas anteriormente segundo outras determinações
vindo então a produzir sua unidade a
partir de dados tradicionais e de procurar os instrumentos intelectuais e os
meios políticos que lhes permitam um novo emprego ou a “correção” de condutas e
pensamentos. A tarefa de educar e o
cuidado com os métodos caracterizam
a atividade de “partidos” religiosos e de todas as novas congregações, cada vez
mais conformadas ao modelo estatal.” (op.cit.:26)
Educação e
metodologia. O período inaugural jesuíta participa, como é possível ver, da
fundação e instituição de algo maior do que a própria Companhia de Jesus. É
possível dizer, ainda que com exagero próprio das caricaturas, que estamos
falando de um capítulo da modernidade em particular em que a instituição
jesuíta é protagonista. É aqui que é possível recuperar uma outra dimensão,
bastante mais difusa, de sua história na medida em que a mesma se torna
indistinta da história do barroco.
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