quinta-feira, 24 de abril de 2014

Notas desde atrás do muro: Os espaços da fé e território como problema de teologia política.


EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais, aventuras teóricas. UFMG. Belo Horizonte. 2000. 
CERTEAU, Michel.  Le lieu de l’autre : histoire religieuse et mystique.
Gallimard/Seuil. Paris. 2005.


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            O itinerário de Ignacio que o leva até Paris não é, contudo, é a linha de chegada desta história e tampouco uma espécie de ponto de fuga. Viveu na capital francesa, a mesma França cujo exército que lhe valera o ferimento e que viria a feri-lo uma vez mais, em 1535. Sua estadia no Collège de Montaigu fora adiado uma vez que dominicanos haviam assumido a direção do mesmo imprimindo o ensino da Summa de Sto. Tomás próprias do ensino escolástico com relação ao qual Ignacio era avesso. Fora a razão de sua transferência para o Collège de St. Barb com vistas no estudo do nominalismo desenvolvidas em Louvain no século anterior, particularmente na teologia de Jean Gerson – por muito tempo creditado como autor de Imitatio Christi. Foi em St. Barb que conheceu Francisco Xavier e todo o grupo que mais tarde se tornaria o núcleo fundador da Companhia de Jesus. Sendo preso mais uma vez, exatamente neste período, que Ignacio fora preso mais uma vez, exatamente nas vésperas de sua segunda viagem para Jerusalém. A Inquisição, mais uma vez, o processara por causa dos Exercícios Espirituais.

            Irritado, ele foge para a Espanha, mas não sem ter combinado com seus companheiros de se encontrarem em Veneza, de onde partiriam para Jerusalém. Tomou um barco de Barcelona a Gênova , chegando a Veneza em janeiro de 1536, enquanto seus companheiros partiram a pé de Paris, chegando à cidade italiana um ano depois. O grupo dispersou-se pela região de Veneza para aguardar o término do inverno; nas cidades onde se instalaram, buscavam recrutar outros devotos para a viagem. Combinaram que, se alguém lhes perguntasse de que organização faziam parte, responderiam que eram da “Companhia de Jesus”, sendo Cristo seu único superior. Enquanto isso, Inácio viajaria para Roma para mostrar ao Papa uma versão da Fórmula do Instituto, o documento fundador da ordem jesuítica. “(Eisenberg, 2000:31)

            Independente de seu conteúdo, a circulação dos Exercícios Espirituais se encontrava flagrantemente comprometido. A presença frequente da Inquisição na trajetória do documento e de seu redator faz refletir a marca ambígua própria das considerações iniciais de Michel de Certeau acerca de dois aspectos privilegiados por sua historiografia da cristianismo moderna: a heresia e a mística. O primeiro termo sugere haver uma legibilidade de um conflito social própria do cristianismo em uma disposição binária desde o papel exercido por intelectuais da Igreja em conflito próprios à dinâmica da mesma (2009:23-26). A reconstituição dos procedimentos que narram a heresia desde a acusação conseguem dimensionar a irrupção dos acontecimentos que não somente produzem conflito, mas alteram a ordem que desde um ponto de vista doutrinal, sugere um componente perene da ordem política frequentemente identificada com a expressão dos dogmas. Lido desde a história da Companhia de Jesus em seus momentos de formação, é difícil acreditar que quase 500 anos depois o Papa viria a ser, justamente, um jesuíta.
            Os séculos XVI e XVII, a aurora da modernidade igualmente batizada como Modernidade Clássica narram eventos algo perturbadores. É, ao contrário do que reza a imaginação comum sobre a Idade Média, o ápice da perseguição às bruxas e feiticeiras (witchcraze); é o período em que as investigações sobre demonologia adquirem feições obsessivas muitas das vezes consideradas de forma muito aproximada com a elaboração do poder soberano e divino da coroa, como no caso dos escritos de Jean Bodin; é igualmente o período de maior atividade da Inquisição e quando as execuções conduzidas, não por ela, mas pelo braço secular vieram a se transformar em verdadeiros eventos em praça pública; o escolasticismo católico é desafiado internamente pelo neo-platonismo que culmina em, dentre tantas coisas, luteranismo; é também o período de consolidação da relação entre Igreja, Estado e território no qual o controle dos hereges assume novas conformações da mesma forma em que se dá a paulatina extinção do crime de feitiçaria, feito levado à cabo em primeiro lugar na França libertina de fins do século XVII, a mesma que incuba e germina a doutrina fundadora da raison d’État. Assim, é possível ler cada um dos desafios e ameaças citadas neste parágrafo como uma forma nova de distúrbio à ordem civil lida na conformação do direito público, conjunto de leis que interfere diretamente na dinâmica de tudo aquilo que é consuetudinário. Isto incluirá, seguramente, a relação da Igreja com a sua tradição e com tudo aquilo que poderá reconhecer como cristandade.

            Difícil e violento, o rearranjo do espaço religioso em Igrejas ou “partidos” não anda em par somente com uma gestão política das diferenças; ela introduz em cada um desses grupos a necessidade de manipular os costumes e crenças em proveito próprio segundo uma reinterpretação prática das situações organizadas anteriormente segundo outras determinações vindo então a produzir sua unidade a partir de dados tradicionais e de procurar os instrumentos intelectuais e os meios políticos que lhes permitam um novo emprego ou a “correção” de condutas e pensamentos. A tarefa de educar e o cuidado com os métodos caracterizam a atividade de “partidos” religiosos e de todas as novas congregações, cada vez mais conformadas ao modelo estatal.” (op.cit.:26)

            Educação e metodologia. O período inaugural jesuíta participa, como é possível ver, da fundação e instituição de algo maior do que a própria Companhia de Jesus. É possível dizer, ainda que com exagero próprio das caricaturas, que estamos falando de um capítulo da modernidade em particular em que a instituição jesuíta é protagonista. É aqui que é possível recuperar uma outra dimensão, bastante mais difusa, de sua história na medida em que a mesma se torna indistinta da história do barroco.

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