quarta-feira, 2 de abril de 2014

Os espaços da fé e o território como problema de teologia política.


CERTEAU,  Michel de. La Fable Mystique, I: XVIe-XVIIe siècle.  Gallimard. Paris.
1982a.
________________________. Le lieu de l’autre : histoire religieuse et mystique.
Gallimard/Seuil. Paris. 2005.
________________________. La Fable Mystique, II : XVIe-XVIIe siècle. Gallimard. Paris.
2013.

4-

            O argumento de Michel de Certeau aponta para a afirmação de que o terreno da mística é o da inconstância da alma selvagem. Seguramente que a menção ao território como conceito constituinte do problema não deve ser absorvido sem alguma luta. No caso de seguirmos a intuição de Georges Bataille, a de que a mística deve ser destituída por completo com a finalidade de limar toda e qualquer forma de autoridade na composição posterior de seu conteúdo – o que repete a eclesiologia de Genealogia da Moral, de Friedrich Nietzsche -, a primeira fronteira é a que versa sobre o interior e o exterior (dedans; dehors). São, assim, coisas muito diferentes transpirar o êxtase e fazê-lo, de outra forma, pilar da edificação de outrem. Deixar vazar as dores sem fonte e organiza-las num objeto em que se dê a comunicação, não da dor, mas da dor ou mesmo da “dor”. A dor de outrem, ou a dor tornada um problema na forma de um livro, para todos e para ninguém. A dor que deveras sente, contudo, segue fugaz e inconstante o suficiente para que não seja o solo da Igreja. O solo e o fundamento ainda é a palavra erigida em sintaxe. A experiência é, à sua vez, música.

            Embriaguez da voz e da música escapando da história e o discurso místico se  constituirá nesta longa série litúrgica, festiva e artística, como o acúmulo onde se exacerba a diferença entre um texto sem voz (ele não “fala” mais) e de vozes insensatas (elas não articulam mais a narrativa ortodoxa). Ele se situará precisamente neste afastamento.” (Certeau, 2013:221)

            Não é difícil sugerir que o discurso místico e toda a operação editorial que se constitui ao seu redor serve como um canal diplomático entre o que está dentro e o que está fora, cuja lógica territorial interfere nas relações de troca. Que se entenda, e aí residem as restrições de Bataille, a troca presente num determinado evento experimental não garante a reprodução da mesma troca implicando que o sacrifício com finalidade premeditada não tem qualquer relação com a graça. Legislar a respeito, portanto, é tema dos mais delicados uma vez que se infere a dimensão e a constância da interferência da Revelação, assim como é por sua vez inconstante a experiência da mesma. Mas ainda custa a clareza da relação entre mística e território. Contudo, o universo jesuíta é pródigo em encenar a tensão entre administração e experiência – e a forma como ela consolida, no fim, outras formas de administração e experiência de forma a administrar a experiência.
            Vale notar que, em prosseguimento à citação, a música não é seu sistema de notação, ainda que por via dele e seu aprendizado adequado é possível retornar à música ela mesma, vindo a experimentá-la de novo. Não voltar à mesma experiência daquela música, problema a ser colocado à parte, mas à música ela mesma em sua forma reconhecível, levando adiante a hipótese mais humilde de que a segunda execução é análoga sem ser idêntica à primeira. E que este sistema de notação permite distinguir quem executa e quem, de uma certa forma, aprecia e, por fim, quem está algo ausente da constituição da cena – lembrando a profunda relação entre teatro, barroco e a Companhia de Jesus. Há quem experimenta por ordem da Graça, privilégio intransferível. Há a rede de notas e retórica em que o registro se dá de forma que a experiência sobre a qual se cala possa ser simulada em um outro ambiente. E há aqueles que, fora deste novo ambiente, são da ordem do selvagem pois não podem tocar e tampouco serem tocados pela experiência reproduzida pois estão além da fronteira. O místico, ele mesmo um selvagem, não terá direito a entrar no mesmo ambiente que ajudou a fundar.
            Antes de mais nada, a mística estuda indivíduos. Isolados. Postos no claustro sem qualquer menção à trajetória que nos permite chegar até ele na forma de sua simulação tipográfica ou, repetindo Certeau, tatuada no papel (1982a). Com exceção dos trabalhos de Ernst Troeltsch e Max Weber em The Social Teachings of the Christian Churches e em Economia e Sociedade, as considerações sobre o estabelecimento da mística como uma ciência e modo de enunciação seguem pouco exploradas. Contudo o indivíduo místico, o mesmo que encanta a literatura com suas infinitas possibilidades de fazer proliferar o maravilhoso é também posto em uma cadeia discursiva em que a experiência à qual a escrita remete possa estar sujeita à troca – mais do que meramente linguística. Assim, a mística opera também por via de escolas e grupos; discípulos e mestres; redes de comunicação e transmissão oral, escrita e itinerante; genealogias e meios; modelos de organização, como monastérios e eremitismo; procedimentos de comprovação e reconhecimento de milagres, ascese, curas; codificação sensorial; e por fim, técnicas de representação e concentração, para além de uma certa economia da honra em que a discriminação entre grandes homens e homens de poder possa se dar tanto quanto a produção de sua coincidência. Não é um objeto fácil de controlar, tão dissocializada e despolitizada (Certeau, 2013:38-39), pois inconstante ao ponto de precisar de controle constante. E o que demanda controle constante é, por definição, inconstante. Selvagem.
            Sendo algo mais concreto, não se trata de uma investigação desamarrada de suas fontes, sem lugar e sem remissões a acontecimentos. Trata-se da modernidade clássica francesa e a precipitação de toda uma literatura e um sistema discursivo ao redor da palavra mística. É neste sentido que o termo fábula , história maravilhosa de veracidade questionável, é utilizada. Algo como conto maravilhoso que revela, para além do folclore, muito pouca coisa ou quase nada de uma população de que sua organização social. Aliás, este é o juízo de Lafitau a respeito da coincidência entre os Antigos e os Selvagens – coincidência oriunda de uma certa administração das diferenças que os modernos têm com sua própria infância.
            É um ensaio sobre o frontispício de Mœurs des sauvages américains comparées aux mœurs des premiers temps, de Joseph-François Lafitau (1724). No canto direito do frontispício, uma figura feminina empunha uma pena sentada em uma escrivaninha enquanto mira um homem mais velho, alado, portando uma foice acompanhado de dois querubins (génies) portando quatro caduceus, um em cada mão. Os caduceus são representantes diretos da antiguidade e dos selvagens americanos. Do lado de fora, cenas da providência tendo como destaque Adão e Eva mais a serpente – anacronismo indisfarçável, pois já estão no céu a despeito de tudo. Temos então uma cena e um título. Comparemos um com o outro, tal qual são comparados Antigos e Selvagens, duas formas da infância da razão.
            A comparação é, antes de mais nada, uma aproximação. Em termos especificamente espaciais em que dois ou mais elementos díspares são postos na mesma tábua, quadro ou discurso como coordenados. Lafitau faz uma investigação propriamente arqueológica na qual recorre à etnologia como uma forma de testemunhar aquilo que o elemento retrovisor da documentação historiográfica produz como ponto cego da coleção do cabinet des curiosités. A comparação, assim, desarticula a ordem cronológica em favor de um esquema cuja formalização encaixa (emboîte) simbolicamente (2005:96) os termos comparados em termos de comparação gerais. No caso, compara-se a humanidade em seus tempos e feitos de origem.

            A comparação é uma “relação” que joga sobre outras indefinidamente ao gerar o “sistema” de Lafitau, isto é, “um todo cujas partes se sustentam por ligações que têm entre si”. O “sistema” se define exatamente como um texto. Assim cada comparação assume o papel de ser, neste laboratório, uma “preparação textual” efetuada pelos assistentes do escrivão. Ela transforma, pouco a pouco, a coleção em texto. Não será nem a ancestralidade, e tampouco a identidade social dos documentos dos quais trata o que “sustém” o sistema, mas a “própria relação” estabelecida dentre si – ancestralidade e identidade. Em princípio, ao inverso da historiografia, ele não é autorizado pelas peças que cita, isto é, pelo referencial intervindo como legitimação (é o “real” quem legitima a historiografia, “descrição, narração das coisas tal como elas são). Ela não é autorizada que por ele mesmo enquanto “língua” própria ou sistema de relações. Entre a comparação e a escritura, há continuidade. Uma fabrica a outra.”(Certeau, op.cit.:97)

            A cena do gabinete de curiosidades busca analogias selvagens daquilo que se apresenta como tal e que cede às mesmas analogias por não ter nada a dizer em sua defesa e tampouco a respeito de seu lugar. Já está deslocado e devidamente colecionado, cabendo somente sua forma de ordenação extrínseca estabelecida pelo tableau comparativo. Aquilo que os símbolos e instituições que antecedem no tempo a Era Moderna comunicam como sua origem reduz, e é reduzido àquilo que comunica como analogia com os povos selvagens que são, não vizinhos, mas antepassados reminiscentes que nada tem a dizer para os modernos. Mas tem muito a mostrar. São, de outra forma, objetos de um tempo indizível. Indizível pelo afastamento mas, também indizível porque o barbarismo é próprio do tempo selvagem. Selvagens são, por definição, analogias místicas. E místicos são, por analogia, selvagens. Século XVI. Francês. 1724. Lafitau. Jesuíta que ordena seus figurinos antigas (com os quais veste as personagens do frontispício) como seus confrades vestem à moda da época os Índios das “reduções” do Paraguay (Certeau, op.cit.:93). Ora, é no Paraguay que localizamos o ideal pedagógico jesuíta e a configuração acabada das tensões entre o interior e o exterior que conformam tanto o  problema da mística em uma ordem religiosa, quanto a religião em sua própria forma de organizar um território, isto é, de operar administração o que vai incluir, evidentemente, a edição dos textos místicos.

Nenhum comentário: