terça-feira, 22 de abril de 2014

Notas desde atrás dos muros: os espaços da fé e território como problema de teologia política.


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CERTEAU,  Michel de. Le lieu de l’autre : histoire religieuse et mystique.
Gallimard/Seuil. Paris. 2005.
 ECKHART, Mestre. O Livro da Divina Consolação e outros textos seletos. Vozes.
Petrópolis. 1999.
EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno:
encontros culturais, aventuras teóricas. UFMG. Belo Horizonte. 2000
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SCHMITT, Carl. Théologie politique. Gallimard. Paris. 1988.
WILDE,  Guillermo. Religión y poder en las misiones guaraníes. Editorial Sb.
Buenos Aires. 2009.


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            Há que se perguntar se seria ofensivo tentar medir a dimensão em que a mística jesuíta é, por fim, o recurso à encenação que antecipa a Autopsicografia de Fernando Pessoa. E de alguma forma é o que parece apontar o curto ensaio de Michel de Certeau sobre Ignacio de Loyola e seus Exercícios Espirituais. Não é a primeira vez que o historiador jesuíta recorre ao expediente da simulação para compor um quadro acerca da mística. E que o recurso à encenação tem faces diferentes a depender da escala em que a mesma impõe. Que a administração dos exercícios do espírito ao que faz o retiro não é a mesma coisa que a administração das almas na organização das missões – em termos nos quais organização ressoa no conceito de redução, isto é, a vida urbana cristã em versão miniatura ou, de outra forma, reduzida aos traços essenciais – caricatura? Relativo à formação de agrupamentos característicos das missões guaranis no Paraguay dos século XVII e XVIII:

La fundación de un pueblo expresaba, en la visión de los jesuitas, la instauración de un verdadero orden cristiano. En esa singular visión, la idea de civilidad era intrínseca  la de la religión católica. De allí que la “reducción” fuera básicamente reducción a vida política y cristiana. Pero el dominio no se ejercería únicamente en el nivel del urbanismo, sino también en de los cuerpos pues, en última instancia, la ciudad era una reproducción en escala macro des cuerpo humano y sus partes. De allí que el uso de los lugares, las vestimentas y posturas corporales fuera objeto de estricta vigilancia y control (Hespanha, 1994:95). La geografía visual de los pueblos se ve reforzada por los castigos corporales y la mortificación de los cuerpos, prácticas que ya aparecen prefiguradas en los Ejercicios Espirituales de Ignacio de Loyola (Barthes, 1997).” (Wilde, 2009).[1]

A passagem citada do livro de Wilde faz uma manipulação delicada, digo, põe as mãos num arquivo que de fato se dedica aos textos que descrevem a administração das missões guaranis no Paraguay, as meninas dos olhos de Lafitau e outros tantos jesuítas. Assim como Eisenberg (2000), lê as cartas jesuítas com a finalidade de investigar no detalhe a imaginação administrativa e seu percurso na própria administração da vida missionária que, obviamente, inclui as populações guaranis. Mas a manipulação mais delicada, que Wilde faz desdobrar do trabalho de Barthes sobre Ignacio de Loyola, sugere uma certa imaginação comum entre a administração da alma de outrem com a alma própria, fazendo coincidir o governo de si com o governo dos outros. Este desdobramento confere apressadamente razão à fórmula de Carl Schmitt (1998) que define secularização como desdobramento dos conceitos teológicos em teoria moderna de Estado. Sugere, sem considerar a mudança de escala entre si e outrem, identidade entre os exercícios a despeito da mudança de escala ao mesmo tempo que, no mesmo espírito em que consideram sem fazer qualquer menção a força da sugestão de que um documento administrativo é tão católico quanto o poderia ser um texto místico; ou da mística. E vice-versa.
É temeroso fazê-lo, contudo, a partir de textos secundários e não a partir da fortuna jesuítica. Contudo, como o que está em questão é a elaboração e aprofundamento de um problema em questão – o lugar do outro como um problema de teologia política -, é possível que este movimento seja válido mesmo que de forma meramente tentativa. E assim é preciso aprender a medir a distância entre, por exemplo, as cartas jesuíticas e um documento como os Exercícios Espirituais de Ignacio de Loyola. O retrato que José Eisenberg (2000) faz do fundador da Companhia de Jesus merece, talvez, uma leitura mais cuidadosa. Até porque o que faremos é, por enquanto, uma mirada desde a mirada alheia, uma forma muito fiel ao espírito jesuíta.
Eisenberg dedica o primeiro capítulo de seu livro ao noster modus operandi que tem sua introdução na vida do cavaleiro Iñigo de Oñez y Loyola que, ferido em 1521 em uma batalha contra os franceses em Pamplona, retirou-se para o castelo em Loyola em fins de recuperação. Sugestivamente, o seu castelo, quando e onde leu Vita Christi de Ludolfo da Saxônia e Flos Sanctorum de Jacobus de Voragine, sobre a vida de Jesus Cristo e a vida dos santos, respectivamente. Que seja marcado ser uma leitura que tenha conduzido Ignacio à vida religiosa, passagem enunciada pelo próprio Ignacio em sua Autobiografia e aceita por Eisenberg sem mais; é pouco razoável que seja, contudo, uma bibliografia suficiente, ainda que adequada para o tipo de narrativa de descoberta vocacional. É no ano seguinte que, já no esforço de desvencilhar das marcas do cavaleiro Iñigo na vida fora da rota de Manresa que Ignacio lê Imitatio Christi de Thomas à Kempis, livro que parece emprestar à teologia política o lugar que a mimese merece. Esta é a cidade em que redigiu seus Exercícios Espirituais que, não obstante as inspirações já anotadas tem filiação nos escritos do abade Garcia Cisneros com quem ele havia travado contato no mosteiro de Montserrat no ano anterior. De cavaleiro a peregrino sem nunca ter deixado de ser, nem um, nem outro. A viagem à Jerusalém, cidade que lhe recebe no outono de 1523 reforça isso.
A alcunha de alumbrados aos seguidores de Ignacio por via da leitura e prática dos exercícios é um capítulo à parte a ser melhor descortinado por leituras futuras, especialmente pela ressonância que o termo tem com a fortuna dos iluminados da era moderna particularmente justificável como hipótese tanto pela constância de intelectuais iluministas formados em redutos jesuítas – como Dennis Diderot – quanto pela forma pela qual a articulação entre o governo de si e o governo dos outros se dá como uma espécie de relação serial. Os efeitos propriamente políticos desta forma de governo de si toma a forma, antes de mais nada, de perseguição dado o fato de os exercícios oferecerem um desafio ao ministério dos sacramentos. Ignacio foi encarcerado, vindo a ser absolvido quarenta e dois dias depois pela Inquisição. Liberto, sai de Alcalá para ir à Salamanca, onde seria preso mais uma vez.
Michel de Certeau (2009), em L’espace du désir sugere como síntese algo que pode oferecer algumas das razões de Ignacio ter sido diversas vezes preso em centros de ortodoxia teológica de forma a ser acolhido somente no Collège de Montaigu, na Paris de 1528 – onde figuras como Erasmo e Lutero também cumpriram etapa de formação. Vejamos:

Esta “maneira de proceder” é uma maneira de dar lugar (faire place) ao outro. Ela se inscreve então, ela mesma no processo em cujo ela mesmo fala, a partir do “princípio” e que, em seu desdobramento total, consiste em seu texto dar lugar ao “Diretor”; do diretor, dar lugar ao retirante; deste, das lugar ao desejo que lhe vem desde o Outro. Deste ponto de vista o texto faz aquilo que diz ao se formar ao se abrir, sendo produto do desejo de outro. É um espaço construído para este desejo.” (2009:247)

            O desejo que mostra sua forma em uma apresentação algo psicanalítica é desdobramento do volo, ou vontade, volição do texto de Ignacio. O ensaio de Certeau reitera a relação que o discurso que manifesta a volição, ou no caso, o desejo pelo Outro como a forma de considera-lo como princípio fazendo com que aquele que se exercita tenha como epicentro de sua atividade o destinatário da ação. O que faço aqui, faço com vistas em Deus – fórmula que parece responder com alguma precisão algumas das prescrições do Livro da Divina Consolação.
            O destinatário da ação implica que a ação cumpre um itinerário. E este itinerário cumpre ser, por sua vez, o postulado de um “Fundamento” no qual se prevê a premissa do valor do itinerário sem que o mesmo tenha etapas  pré-definidas como verdade substantiva. É, de outra forma, um esquema de movimento (op.cit.:244) que parece responder a algumas premissas coreográficas que compõe a metáfora dramatúrgica que inundara a vida intelectual ibérica no alvorecer da sua era moderna particular. É, de outra forma, uma partitura cujo primeiro fora para o qual aponta é para fora do texto que, em si, não contém nada de especial.

            Os Exercícios fornecem somente um conjunto de regras e de práticas relativas às experiências que não são descritas e tampouco justificadas, que não são introduzidas no texto cuja representação não se faz em parte alguma pois são exteriores ao mesmo dada a forma do diálogo oral entre o instrutor e o retirante, ou da história silenciosa das relações de Deus e seus dois correspondentes.” (op.cit.:239)

            Da orden de proceder à  noster modus procedendi há uma variação pronominal nada pequena. E esta variação parece encenar a diferença entre os Exercícios Espirituais  e as reduções que, todavia, respondem pelo mesmo apelo jesuíta. Os exercícios ocupam àquele que se presta ao retiro por quatro semanas, ou quatro atos, nos lembra Michel de Certeau. O tempo de retiro é composto em topoi, composições de lugares de toda sorte – que mais tarde se desdobram nos exercícios mnemônicos como os palácios da memória eternizados por Matteo Ricci – divididos nas semanas correspondentes. Um itinerário. Devem haver lugares tradicionais de prece; cenários artificiais com motivos de meditação; composições gestuais;  indicações sobre a iluminação de lugares específicos, como a escuridão da terceira semana e a claridade, na quarta; trajetórias de retorno e reprise; simulações que demandassem ao retirante estivesse em outras disposições e situações, como de humor ou se morto. Michel de Certeau chama de não-lugar o que me parece, no final das contas, a ênfase na negação do ali como dêitico de lugar. Por exemplo, a Espanha que não acolheu os esforços primeiros de Ignacio de Loyola, ainda que louvassem a fama do cavaleiro Iñigo que não encontrou outra coisa para ler em seu castelo que não fossem histórias exemplares.  


[1] A bibliografia citada por Guillermo Wilde é proveniente de Las categorías del político y de lo jurídico en la época moderna de António Manuel Hespanha na revista Ius fugit (3-4) e do livro de Roland Barthes Sade, Fourier, Loyola. O capítulo de Wilde disserta sobre a  civilização dos pagãos guaranis, o que de qualquer forma significa conversão ao cristianismo.

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