Quaisquer restrições quanto à leitura de um
intelectual com um passado nacional-socialista e igualmente anti-semita merece
dois apartes feitos por pelo menos três intelectuais algo insuspeitos – ou pelo
menos suspeitos de outra coisa que não seja nazismo. O primeiro é de Marshall
Sahlins que, ao discutir que relativizar é uma forma de compreensão, ressalta
que não é por sua vez uma forma de advogar – sobre o assunto, vide aforismo Anti-relativismo3 em Esperando
Foucault, Ainda (2004). Assim, se
houver a suspeita de que eu esteja relativizando a relação com alguém cuja
atividade política tenha oferecido oxigênio para o nacional-socialismo alemão,
que esta suspeita cesse. Trata-se exatamente disso, desde que se saiba que o
ato compreensivo não é constituição de defesa. Exatamente, e aqui chegamos ao
segundo intelectual, permite que tenhamos uma perspectiva de inimigo menos
nociva do que a que herdamos da demonologia da modernidade clássica que se
dedica fundamentalmente na ampliação máxima do discurso sobre o patológico
deixando de se dedicar ao esforço ambíguo de aprender com o inimigo. Sobre o
problema é possível encontrar na historiografia de Carlo Ginzburg uma passagem
absolutamente luminar a respeito. Em seu ensaio Mitologia Germânica e Nazismo: sobre um velho livro de Georges Dumézil
(2009), Ginzburg discute sobre a recepção do livro Mythes et dieux des Germains do mesmo Georges Dumézil e de como
Marc Bloch e S. Gunterbrunner acolhem o livro com o mesmo entusiasmo,
ressaltando basicamente as mesmas características. Gunterbrunner, contudo, fala
desde o ponto de vista de alguém que valoriza o patrimônio espiritual
nacional-socialista e, por sua vez, Marc Bloch, mais caloroso na recepção, era
judeu e sua resenha fora publicada em 1940. O caso é que em um artigo de 1983
Arnaldo Momigliano detectara no mesmo livro de Dumézil traços insuspeitos de
simpatia com o nacional-socialismo, coisa que levara ao resenhista da Deutsche Literaturzeitung receber o
livro tão prontamente. Há portanto, uma série de questões a serem postas neste
embaraço da recepção de Dumézil. O desfecho de Ginzburg, no entanto,
interessa-me mais do que o resto do ensaio que, para todos os efeitos, é
excepcional. E é ele que cito aqui, pois defende uma ética de pesquisa que
incorpora com maior delicadeza aquilo que Sahlins defende em seu aforismo: “A distinção entre pesquisa científica e
teses ideologicamente motivadas, entre dados documentais e sua interpretação,
não só é possível como necessária. Ela permite utilizar determinadas pesquisas
numa perspectiva diferente daquela em que foram produzidas. Em certos casos,
porém, aqueles dados documentais, ainda que viciados por opções ideológicas,
foram obtidos também graças a elas.
Separar o joio do trigo só é possível através de uma crítica interna. Se nos
limitássemos, por exemplo, a uma recusa preconcebida de ordem ideológica em
relação às pesquisas que explicam longuíssimas continuidades raciais (Höfler)
ou arquetípicos (Eliade), estaríamos cometendo um grave erro. Isso vale a fortiori para a obra, ainda mais rica
e original, de Dumézil. Ainda mais esquiva, também: a continuidade inconsciente
entre mitos germânicos e aspectos da Alemanha nazista mostrava-se, em Mythes et dieux des Germains, como um
dado, sem remeter à raça nem ao inconsciente coletivo. Nos trabalhos
posteriores, Dumézil insistiu, pelo contrário, na continuidade consciente
daquilo que acabou por chamar de “ideologia”indo-européia das três funções.
Também essa tácita revisão autocrítica sobre um ponto central indica que,
depois de Mythes et dieux des Germains,
Dumézil virou a página.”(op.cit.:206). Levando ainda mais adiante, é
igualmente legítimo ressaltar o próprio desafio que o confronto com o inimigo
sem cair na tentação de prosseguir em seu extermínio ou mesmo da produção de
sua indignidade a qualquer custo. Há em Cultura e Imperialismo de Edward Said – o mesmo
Said que do ponto de vista de Sahlins, advoga desde o relativismo o suficiente
para afirmar que there are some things
that are better left un-Said - uma passagem que evoca algo além do respeito
intelectual. Evoca também o prazer em se deparar com o engenho de alguém que se
mostra digno de admiração, não a despeito da inimizade mas exatamente porque é,
antes de mais nada, seu inimigo: “(...) é extremamente
revigorante e inspirador não só ler o próprio lado, por assim dizer, mas também
entender de que modo um grande artista como Kipling (poucos foram mais imperialistas
do que ele) apresentou a Índia com tamanha habilidade, e como, ao fazer isso,
seu romance Kim não só derivava de
uma longa história da perspectiva anglo-indiana, mas também, à sua revelia,
anunciava que essa perspectiva era insustentável, na medida em que insistia na
crença de que a realidade indiana demandava, e até suplicava, uma tutela
britânica por tempo mais ou menos indeterminado.” (Said, 1995:22).
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