"Existem dois tipos de pessoas", e logo quero ser classificado naquela a ser violentada para encerrar o assunto. Mas isto é coisa minha, não de José Pereira Coutinho (link abaixo). A meu ver, a coisa dos outros é matéria de debate especialmente quando o outro sou eu. A divisão entre "revolucionários" e "reacionários" como tipificação válida, muito longe de qualquer tipo ideal, deixa de lado uma série de ações políticas centrais na condução da política dos Estados modernos conduzidos fundamentalmente pela indiferença e negligência que não se qualificam por nenhuma conduta ideologicamente orientada - cito somente a indiferença e a negligência para ficar somente com as mais absurdas, ainda que bastante usuais. Dito de outra forma, a divisão em dois pólos implica necessariamente numa formulação que faz da série de analogias que compõe os tais tipos ideais numa forma de identidade por via da qual seja possível condenar quem quer que seja a ser aquilo que ela obviamente não é. Dizer que existem dois tipos de pessoas é, na melhor das hipóteses, retórica vazia. É exatamente contra esse tipo de equívoco lógico que a sociologia alemã se levantou, em especial contra o positivismo de Émile Durkheim que conferia a grupos e sociedades identidade por via de séries analógicas sem que tivessem resolvido esse tipo de salto que em teoria da comunicação se chamaria transdúctil- transdução é o transporte que registra a transformação de, por exemplo, energia térmica em energia mecânica, ou que pode ser identificada na mudança de escala, como da intracelular para o ambiente pluricelular; do analógico para a identidade. Sem a devida descrição dos procedimentos, o salto resulta de um mistério bastante dramático que sempre culmina no apelo narrativo a Deus ex-machina.
A peculiaridade deste tipo de debate sobre "reacionários" e "revolucionários" implica, no final das contas, numa espécie de regime monopolista que caracteriza muito mais a forma nacional-nacionalista de resolver querelas, sempre culminando numa diversidade autoritária de administração do verbo do que alimentando a diversidade inclusive daqueles que não tem e não querem ter nada a ver com isso; estes, os idiotas que outrora seriam os pagãos cujas religiões são sempre a concretização da última fronteira cuja conversão será feita, se não pelo amor, pelo medo como nos ensinaram com sobras os nossos jesuítas, e os jesuítas dos outros.
Mas esta conversa merece outra consideração sobre uma dimensão algo patriarcalista bastante bem expresso no artigo do de José Pereira Coutinho, a respeito da afirmação de que o conservador não tem que se justificar, e quem deve se justificar é o revolucionário. Ora, se formos levar a sério a idéia estapafúrdia de que existem somente estes dois tipos que conferem identidade à ação política e que os conjuntos "reacionário" e "revolucionário" não são tipificações por analogia, temos um segundo problema relativo à justificação e a premissa do debate público. A de que quem chegou atrasado é o Outro e que as instituições e as formas de ordem já oferecem soluções suficientemente confiáveis para seguirmos adiante. Quem estiver descontente com elas que se mova em se explicar. Não consigo imaginar o número de problemas que esta afirmação oferece, assim como não consigo imaginar que ela seja minimamente suficiente para sugerir os limites de se considerar o que poderia ser um conservador. Mas ao menos três problemas podem ser elencados para termos uma idéia clara de seus limites. Em primeiro lugar, sugere uma dimensão absolutamente tutelar do exercício de poder. Em segundo lugar, trabalha com um regime profético da atividade política, quando se remete ao passado, assim como é debitária de uma noção política bastante, digamos, barroca, para citar José Antonio Maravall. E em terceiro lugar, varre para debaixo do tapete que boa parte das soluções políticas e morais oferecidas são oriundas de um tipo de novidade radical, como a Revelação. Uma coisa de cada vez.
Que me seja permitido recorrer à fórmula da comunidade de sentido. Não fiz nenhuma pesquisa de opinião e para certos assuntos creio ser evidentemente desnecessário saber qual é o perfil estatístico do problema. Vou recorrer ao que entendo como um certo senso comum. Mas não é muito difícil imaginar que a noção tutelar de poder esteja diretamente associada ao que está em discussão com relação à discussão do mérito, por exemplo. De que basta haver esforço equivalente que qualquer pessoa chegaria onde pretende chegar, diz a vulgata da meritocracia de molde american dream. E que não seja contabilizada a realidade logística de se desempenhar esforço fazendo com que haja exemplos de pobres sem que sejam apresentadas dimensões estruturais relativas à pobreza. Assim, o pobre que alçou a uma carreira digna é elevado a exemplo de que é possível chegar lá, vindo a produzir muito mais uma narrativa sobre a Graça do que sobre a justiça, filão muito bem preenchido pelas igrejas neo-pentecostais que são, neste ponto, bastante mais honestas dado que fazem coincidir Graça e Justiça no plano terreno. O pobre bem-sucedido é muito mais um herói do que um cidadão com direito à preguiça, como eu. A tutela está exatamente em determinar por via de uma ética que determina a justeza das ações dos outros em conformidade com estreiteza que caracteriza a justificação das dimensões de domínio exercido sobre os outros Assim, não importa se os critérios meritocráticos sejam absolutamente irreais; se não existem equipamentos urbanos como bibliotecas, sistemas de transporte, saneamento básico e reforma imobiliária que permitam desincumbir o cidadão comum - aquele é é só cidadão - de ser um herói. O conservador não precisa se justificar. Ele tem a situação sob controle sem que, paradoxo, esteja no controle como um comunista teria. Mas como é possível? Por causa da tradição.
Este é um ponto nevrálgico deste tipo de discussão e desta forma de caracterização do conservador, ainda que seja aceitável para definir o reacionário da mesma forma equivocada. A tradição é, não preciso insistir no ponto, um conceito disputado na base da navalhada. É comum conseguirmos identificar nos corredores universitários seus proponentes, em geral com o rosto retalhado. Contudo alguns conseguem manter a figura inalterada senão pelo tempo e destes, cito os que figuram na margem direita do Panteão. Edmund Burke é frequentemente citado como referência. Tocqueville, às vezes mas soa demasiado liberal por problematizar instituições de eficácia garantida como os diversos sistemas prisionais em perspectiva comparada. Michael Oakshott, muito menos presente no índex nacional, contudo, parece oferecer uma régua interessante para compreendermos qual é a questão. Aqui me permito abrir a guarda para ser condenado de forma expressa, dado que vou me utilizar como mediador o comentário de Martin Jay, um notário esquerdopata. Por mais que Oakshott esteja na minha lista de leituras e o problema da experiência como categoria analítica me interesse demasiadamente, minha falta de tempo me jogou aos leões. Azar. Chegamos à segunda objeção.
Oakshott fora professor em Cambridge e na London School of Economics, nascido em 1901 e morto em 1990. Em 1933 publica aquele que será o tratado-alvo destas considerações equivocadas, Experience and Its Modes. O livro é escrito com forte influência hegeliana, nos informa Martin Jay, o que nos leva às considerações pouco discutidas em território nacional, a respeito da experiência segundo o conceito de Erfahrung, e não de Erlebnis, como estamos bastante mais habituados - mesmo que não saibamos a diferença. Estamos falando, portanto, de experiência objetivada (Erfahrung), isto é, aquela que se desdobra do atrito produzido pelo encontro entre consciência e o mundo objetivo - terreno nos qual a sucessão bem-sucedida de nesgas e colisões constitui o cerne do progresso científico e, mais, a experiência da consciência. Peço que o leitor perca sua meia-hora de vida decifrando o que poderia ser isto, experiência da consciência. Afinal, não é sobre minha ignorância relativa à obra de Hegel que disserto. É sobre minha ignorância acerca do livro de Michael Oakshott.
Experience and its Modes, escreve Martin Jay e seu Songs of Experience, segue o problema proposto por Hegel ao definir uma reflexão concreta entre experiencing e what is experienced. Dito de outra forma, o que experimentamos imediatamente e o que já foi experimentado e que, portanto, tratamos como tal adentrando no terreno da consciência da experiência. E é na relação entre estes dois domínios, para todos os efeitos indissociáveis, para onde a reflexão sempre se dirige. Nenhuma celebração da vida como faria a Lebensphilosophie e tampouco nenhum tipo de margem para considerações de caráter ou marxista, ou pragmático no molde de um James Dewey - nenhuma confusão entre vita contemplativa e vita ativa. Cito a citação de Martin Jay.
"To turn pholosophy into a way of life is at once to have abandoned life and philosophy. Philosophy is not the enhancement of life, it is the denial of life. We must conclude, then, that all attempts whatever to find some prectical justification for philosophical thought and the pursuit of philosophical truth, all attempts to replace life with philosophy by subjecting life to the criticism of philosophy, must be set on one side as misguided."(edição da Cambridge, 1978, página 355)
Toda a inclinação prática da filosofia é reduzida, fenomenologicamente, à dimensão de um racionalismo instrumental gnóstico, como não poderia deixar de ser, que privilegia sua própria experiência sem considerar o acúmulo de experiências que se transformaram naquilo que há para ser conservado, dimensões objetivas que aceitam o mistério que são próprios à experimentação e que, por isso produzem formas de experiência subjugada. A tradição se transforma, através da codificação que privilegia o aprendizado do caráter misterioso da experiência humana, numa forma cumulativa de sequenciamento temporal que é, vale dizer, estrangeiro a muito daquilo que consta como conteúdo a ser preservado. E a manipulação deste conteúdo é prerrogativa daqueles que, de outra forma, são experientes no assunto, o que produz uma concepção suspeita de aristocracia que reitera condições de tutelagem como a forma adequada de condução da vida política dado que a experiência acumulada lhes ensina o mesmo conteúdo que é negado aos inexperientes lógica e historicamente. Quero dizer, não obstante a medida ajuizada de subjugar a própria experiência, segue na direção do subjugo da experiência alheia.
"To turn pholosophy into a way of life is at once to have abandoned life and philosophy. Philosophy is not the enhancement of life, it is the denial of life. We must conclude, then, that all attempts whatever to find some prectical justification for philosophical thought and the pursuit of philosophical truth, all attempts to replace life with philosophy by subjecting life to the criticism of philosophy, must be set on one side as misguided."(edição da Cambridge, 1978, página 355)
Toda a inclinação prática da filosofia é reduzida, fenomenologicamente, à dimensão de um racionalismo instrumental gnóstico, como não poderia deixar de ser, que privilegia sua própria experiência sem considerar o acúmulo de experiências que se transformaram naquilo que há para ser conservado, dimensões objetivas que aceitam o mistério que são próprios à experimentação e que, por isso produzem formas de experiência subjugada. A tradição se transforma, através da codificação que privilegia o aprendizado do caráter misterioso da experiência humana, numa forma cumulativa de sequenciamento temporal que é, vale dizer, estrangeiro a muito daquilo que consta como conteúdo a ser preservado. E a manipulação deste conteúdo é prerrogativa daqueles que, de outra forma, são experientes no assunto, o que produz uma concepção suspeita de aristocracia que reitera condições de tutelagem como a forma adequada de condução da vida política dado que a experiência acumulada lhes ensina o mesmo conteúdo que é negado aos inexperientes lógica e historicamente. Quero dizer, não obstante a medida ajuizada de subjugar a própria experiência, segue na direção do subjugo da experiência alheia.
Esta concepção de tradição sugere uma série de questões altamente delicadas, dado que não leva em conta os meios de transmissão da mesma, meios estes jogados no pacote dos mistérios. Não leva em conta, como chama a atenção a voz poética de Clio de Charles Péguy, uma certa miséria da leitura das tragédias gregas em vernáculo por um leitor moderno que, por assim fazer, não acende nem à Grécia, nem à tragédia e tampouco à antiguidade que a fazia viva - lê coisas velhas. Não levam em conta as transmissões trôpegas de conteúdos igualmente delicada porque dissocia conteúdo da justificação dos meios utilizados; a história recente da alfabetização, por exemplo, oferece um debate interessante quando, no primeiro quartel do século XIX a produção de livros de ensino auto-didata sofria a censura severa de não oferecerem como as primeiras palavras do infante as que fizessem remissão ao mistério de Deus e às coisas da única religião (Católica Apostólica Romana); hoje, com a paúra do gasto público que sempre se traduz em cortes na educação prioritariamente, o auto-didatismo a qualquer custo, especialmente se a custo zero, é alçado como um recurso antigo para todos aqueles que quiserem usufruir a meritocracia. Existe também invenção deliberada de analogias travestidas de identidade na conformação da realeza no alto-medievo, extensa e perfeitamente fotografada tanto por Georges Duby quanto por Ernst Kantorowikz com relação à qual remeto o leitor, caso este exista para este texto, em algum momento. Parece que há um nódulo que se chama a tradição que sobreviveu a estas e outras infindáveis vicissitudes e, de forma a ser justificada por via dos mistérios da vida, constitui o cerne da ordem política dado que se remete ao conteúdo das experiências vividas. Resta não perguntar como isto se deu. Afinal, que tipo de pessoa pergunta pelos meios de concretização da vida política?
O mais interessante é que esta concepção de tradição parece delegar ao passado um certo caráter profético - e isto mereceria investigações mais aprofundadas. A remissão ao mistério da vida que Oakshott evidentemente faz, e não o faz só, sugere que a resposta a problemas futuros venham do passado, o que leva muito pouco em conta que o passado fora, por sua vez, um modo do tempo presente entregue ao mar de contingências da vida política e, obviamente, da vida. Dito de outra forma, igualmente tão mal informado quanto nós, salvo pelo acúmulo de experiências que sugerem... progresso? Isto é o que não pode ser. Piadas assim não podem ser feitas, porque violam o pressuposto básico da Revelação como fonte de justificação que, todavia, nenhum conservador precisa oferecer. E aqui chegamos ao cerne do artigo em questão, sobre a dimensão delicada desta mesma justificação a qual o conservador não precisa oferecer, meu terceiro ponto. Afinal, ele é o que já estava antes. Não ele mesmo, mas como representante de uma tradição que sabe aliar como ninguém direito positivo e consuetudinário sem se esquivar da justiça. O conservador não precisa se legitimar, mas espera legitimação de outrem que chega depois mesmo que estivesse lá o tempo todo, este que chegou atrasado e quer sentar na janelinha para roubar a brisa neste bonde quente em um quartier chaud.
Sobre isso há uma passagem de Hans Blumenberg em seu The Legitimacy of Modern Age bastante providencial. Que se possa dizer que Blumenberg é teólogo, mas judeu. E este "mas" é altamente positivo, dado que, como preza certo argumento conservador, sempre aparece um judeu para salvar. Eu me agarro neste argumento com paixão, vale dizer, ainda que não exatamente com a Paixão de Cristo. Cito direto do livro, dado que este, eu li:
"Legitimacy becomes a subject of discussion only when it is disputed. The occasion for talk of legitimacy of the modern age does not lie in nhe fact that this age conceives of itself as conforming to reason and as realizing this conformity in the Enlightenment but rather in the syndrome of the assertions that this epochal conformity to reason is nothing but aggression (which fails to understand itself as such) against theology, from which in fact it has a hidden manner derived everything that belong to it."(edição do MIT, 1986:97)
"Legitimacy becomes a subject of discussion only when it is disputed. The occasion for talk of legitimacy of the modern age does not lie in nhe fact that this age conceives of itself as conforming to reason and as realizing this conformity in the Enlightenment but rather in the syndrome of the assertions that this epochal conformity to reason is nothing but aggression (which fails to understand itself as such) against theology, from which in fact it has a hidden manner derived everything that belong to it."(edição do MIT, 1986:97)
A evocação da gramática do discurso ilegítimo não é outro senão o da identificação do inimigo, uma das tradições mais confusas e complexas do arcabouço da tradição para qual Oakshott se remete. E não somente ele. Utiliza-se de uma justificativa vã da relação entre o lugar de segurança civilizatória, da qual é seu garante, e sugere que todo desafio precisa passar pelo seu crivo numa variação de cidadania derivada, especialmente quando o é, como no caso brasileiro, quando Brasil houver. Peço ao leitor que sossegue, por que não há muito. Há muito.
Que haja toda uma geração de conservadores que queiram se divorciar das ditaduras que a nobre tradição soube, no devido momento, justificar. Que queiram o maior apartamento possível de tudo o que se deu como se um pequeno engano tivesse ocorrido e que as tais ditaduras às quais se refere João Pereira Coutinho (link) em nada tivessem que responder ao aggiornamento de orientações sobre a ordem e o governo de instituições como a Escola Superior de Guerra. O caso é que enquanto a fórmula aplicada ao dissenso for a do inimigo a ser convertido ou aterrorizado tiver espaço devidamente justificado, e qualquer coisa que não seja o inimigo seja então uma forma derivada de cidadania que trafega entre os dois tipos de ação política, eu não sei como é que esta nova geração de conservadores conseguiria não se transformar naquilo que ela é todavia: uma máquina de produção de inimigos. Afinal, o termo neo-con já provou designar um grupo bastante entusiasmado com relação a isso. No mundo em que vivo, todo mundo é conservador exceto quem não é, mas todo mundo precisa dizer a quê veio a cada ato público - mesmo que o ato seja privado. Aliás, especialmente neste caso, porque parece que tudo agora é privado, exceto o que não é, assim como são todos revolucionários, especialmente os que não são.
http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/1064/noticias/nos-os-de-direita?page=1
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